Anselmo em 1964, na revolta dos marinheiros:
não, ele não era agente da CIA...
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Quase caí pra trás quando vi. Ontem à noite, eu já me preparava para dormir, zapeando à toa na televisão, quando acabei me fixando em um programa de entrevistas, o Canal Livre, da TV Bandeirantes. O entrevistado, para minha surpresa, era ninguém mais, ninguém menos, do que o "Cabo" Anselmo!
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Se você chegou agora, eu vou dizer de quem se trata: o "Cabo" Anselmo, ou José Anselmo dos Santos, é um dos personagens mais polêmicos e misteriosos dos chamados "anos de chumbo" da ditadura militar no Brasil. Basta dizer que é a figura mais deplorada e odiada pelos remanescentes da esquerda armada brasileira, que o acusam de delator e de agente duplo, imputando-lhe a responsabilidade por não sei quantas mortes de militantes. Ele se tornou famoso anos antes, quando foi o líder da chamada revolta dos marinheiros, a quebra da disciplina e da hierarquia militar que serviu de estopim ao golpe de 64 e à queda do governo populista de João Goulart. Preso pela primeira vez, fugiu da cadeia para juntar-se aos exilados brasileiros que orbitavam em torno de Leonel Brizola no Uruguai. De lá, foi para Cuba, onde treinou para ser guerrilheiro e voltar ao Brasil, onde pretendia derrubar pelas armas os militares que haviam tomado o poder. Parece que foi no período em que esteve na ilha que ele começou a se desencantar com o ideal comunista, que antes abraçara com fervor. Ao constatar a realidade da ditadura de Fidel e Raúl Castro, bem diferente do que prega até hoje a propaganda esquerdista, Anselmo começou um processo de autocrítica, que de certa forma se prolonga nos dias atuais. De volta ao Brasil, na clandestinidade, é preso em maio de 1971, em São Paulo, pelo famoso delegado do DOPS paulista Sérgio Paranhos Fleury. É aqui que começa a fase mais obscura de sua trajetória. Torturado, é colocado diante da seguinte opção: ou aceita colaborar com a repressão, tornando-se um delator, ou terá o mesmo destino de alguns de seus companheiros: a cova. Anselmo aceita a primeira opção. "Ofereceram-me a oportunidade de ficar vivo", contou ele em 1999 ao repórter Percival de Souza, em seu ultimo depoimento antes do de domingo.
.Rebatizado como "Jônatas", Anselmo passou então, por medo de morrer (mas também por desilusão ideológica), a entregar seus ex-companheiros da organização a que pertencia, a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), formada basicamente da fusão de ex-militares cassados com militantes trotskistas ultra-radicais. Durante três anos, de 1971 a 1973, vários caíram por sua causa. Até que, em janeiro de 1973, a direção da VPR, exilada no Chile, descobre que ele era um traidor e ordena seu imediato "justiçamento". A revelação chega aos militantes da VPR em Recife (PE), onde a organização pretendia instalar um foco guerrilheiro: Anselmo estava trabalhando para a repressão e deveria morrer. A decisão é tomada. Mas antes de ser cumprida, os agentes do DOPS, que vinham monitorando o grupo com a ajuda de Anselmo, agem a tempo: seis membros da VPR, inclusive a companheira de Anselmo, uma paraguaia chamada Soledad Barret Viedma - que estaria grávida dele, segundo se diz, mas ele nega - são emboscados e mortos a tiros de metralhadora. Seus corpos aparecem em uma chácara no município de Abreu e Lima, na Grande Recife, crivados de balas. Quanto a Anselmo, sumiu no mundo, após uma operação plástica que lhe mudou as feições. Começava aí o mito do famigerado "Cabo" Anselmo, o traidor, o infiltrado, o bandido.
.A entrevista de Anselmo na TV é histórica por várias razões. Em primeiro lugar, até onde eu sei, é a primeira vez que o "cabo" - na verdade, marinheiro de primeira classe -, hoje com 67 anos, mostrou a cara na televisão, depois de quase quarenta anos de fuga. Ali estava, perante uma bancada de jornalistas encabeçada por Bóris Casoy e Fernando Mitre, um senhor de barbas e cabelos grisalhos, quase totalmente brancos, tentando desesperadamente limpar seu nome. Infelizmente, não vi toda a entrevista, peguei-a no meio do caminho. Mas deu para perceber que Anselmo está de volta. Desta vez, não mais à luta armada, mas a uma luta pessoal, pelo restabelecimento do próprio nome.
.Mais do que uma entrevista, o que se viu na noite de domingo, na verdade, foi a morte de um mito, talvez o último mito engendrado pela ditadura militar. O mito do "Cabo" traidor, "agente da CIA" e responsável pela aniquilação de inúmeros guerrilheiros, transformado mesmo no principal culpado, segundo a vasta historiografia esquerdista sobre o regime de 64, pela destruição da guerrilha urbana no Brasil. Quem estava ali, respondendo às perguntas dos jornalistas, era o homem José Anselmo dos Santos, o esquerdista desiludido, usado pelas forças da repressão para capturar companheiros de luta, e desde então obrigado a viver escondido, como um fugitivo, aos deus-dará, sem direito sequer a uma carteira de identidade com seu verdadeiro nome.
.A mitificação do "Cabo" Anselmo, o maior bicho-papão das esquerdas brasileiras nos últimos tempos, é uma invenção de derrotados e ressentidos. Como todo mito, esse cumpre também uma função política e psicológica. Após a aniquilação da luta armada, no começo dos anos 70, era preciso achar um bode expiatório, de forma a desviar a atenção dos erros que conduziram à derrota. A figura de Anselmo - na verdade, um soldado raso da guerrilha - caía a esse papel como uma luva. Logo começaram a circular as estórias mais delirantes envolvendo seu nome, que buscaram inflar seu papel no massacre de militantes, como se ele tivesse sido o principal responsável pelas mortes - como se, não fosse por ele, o projeto guerrilheiro tivesse alguma chance de ser vitorioso. Não demorou até que começassem a dizer que ele era espião e "agente da CIA" antes mesmo do golpe de 64 - tese defendida, sem qualquer base factual, por historiadores de esquerda, como Moniz Bandeira. Tudo isso com um único propósito: isentar de culpa os esquerdistas e colocar a responsabilidade inteiramente sobre os ombros de um único homem, o "traidor". Era uma forma, além disso, de a esquerda justificar os próprios crimes cometidos em nome da "revolução", como os "justiçamentos" de militantes suspeitos de traição ou vacilação ideológica. Anselmo, o traidor, seria o único culpado por tudo, a prova da infinita perfídia dos inimigos do povo, contra a qual são necessários o máximo rigor e a máxima vigilância.
.O próprio Anselmo é o primeiro a desmitificar seu papel na História. Não, ele não era "agente provocador", muito menos a soldo da agência de espionagem norte-americana, antes ou depois de 1964. Não, não foi ele o maior responsável pelo fim do delírio guerrilheiro no Brasil e pela destruição da VPR. Foi, sim, mais um personagem do drama humano que foi a luta armada dos anos 60 e 70. Um personagem que destoa dos demais, em primeiro lugar, por ter passado para o outro lado, invertendo assim a trajetória do maior ícone da esquerda radical do período, Carlos Lamarca - a quem ninguém na esquerda chama de traidor das Forças Armadas -, e, em segundo lugar, por ter feito também uma escolha ideológica, baseada no desencantamento com as teses de esquerda. Anselmo percebeu, talvez já em Cuba, que a causa pela qual ele estava lutando, o comunismo, não era melhor que a ditadura dos militares, e leva um choque. Ele rejeita categoricamente a versão heróica e mitificada da luta armada, tendo percebido que, se o regime militar era autoritário e antidemocrático, o regime que os guerrilheiros pretendiam instalar no Brasil não era preferível àquele, muito pelo contrário. Era em nome do objetivo de transformar o Brasil em uma nova Cuba que os guerrilheiros praticavam o terrorismo, matando inclusive pessoas inocentes. Quando percebe isso, porém, Anselmo estava num beco sem saída. Uma vez militante de uma organização armada de esquerda, simplesmente não havia como voltar atrás e se desligar da luta - alguns tentaram fazê-lo, como Márcio Leite de Toledo, e foram sumariamente assassinados por seus próprios companheiros. Também não havia como não colaborar com a polícia: ou Anselmo colaborava com a repressão, ou se tornava mais uma vítima de uma guerra suja. Tratou-se de uma das escolhas mais difíceis e perigosas que alguém poderia fazer. Anselmo escolheu o lado da repressão, acreditando que, ao tirar de circulação aqueles jovens fanatizados, estava fazendo também um favor a eles.
.Anselmo nega que tenha matado ou torturado quem quer que seja e, ao que consta, está falando a verdade. Também rejeita enfaticamente ter sido o culpado pelas mortes de militantes, o que é discutível. Para ele, os companheiros de luta que caíram fizeram uma escolha consciente, sabiam dos perigos em que estavam envolvidos. Em vez de botar a culpa na repressão, única e simplesmente, ele prefere responsabilizar as esquerdas, em especial os dirigentes das organizações armadas, que arrastaram centenas de jovens idealistas para a morte em uma luta sem possibilidade de sucesso. Sente-se um injustiçado, e, de certa forma, realmente é. Afinal, todos foram anistiados - terroristas, torturadores, assaltantes de bancos, sequestradores -; todos, menos ele. Agora ele reivindica seus direitos de cidadão, como o de ter uma carteira de identidade. O direito a ter um nome e um rosto, em primeiro lugar.
.Muita gente na esquerda certamente se morde de raiva e indignação ao ver Anselmo requerer, junto à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, o direito a ser anistiado. Consideram isso o cúmulo do cinismo etc. Gostariam mesmo que ele fosse "justiçado", se não pelas armas, pelo menos com palavras. Mas o fato é que ele tem tanto direito a esse requerimento quanto qualquer pessoa que teve os direitos políticos cassados e que foi torturada nos órgãos de segurança do regime militar. A Anistia, apesar do que afirmam Tarso Genro e Paulo Vanucchi, foi para os dois lados, não somente para os que queriam seguir os passos de Che Guevara ou Mariguella. E não adianta dizer que tortura é um crime imprescritível - terrorismo também é. Ressalte-se ainda que Anselmo não pleiteia nenhuma indenização milionária, como as que foram regiamente concedidas a muitos que mataram, sequestraram e explodiram bombas, mas, até onde eu sei, deseja que lhe sejam restituídos os proventos que perdeu, como ex-marinheiro cassado pelo golpe de 64. Além disso, ele quer que o outro lado da História seja ouvido. Creio que ele está no seu direito ao fazer isso.
.Anselmo não foi herói, nem vilão. Foi, isto sim, mais uma vítima dos anos de chumbo, que arrastaram consigo muitas pessoas fanatizadas por um ideal totalitário. É fácil condená-lo, de um ponto de vista simplista, como um delator ou traidor, um sujeito execrável, um canalha. Mas não se pode negar que sua opção ideológica foi menos nefasta do que a adotada pela esquerda radical do período, e que, a seu modo, ele acreditava estar agindo da melhor forma possível para combater um mal maior. Muitos remanescentes da esquerda armada ainda hoje não têm essa consciência, ou falsificam a História para apresentar-se como democratas. É fácil também discordar das opiniões de Anselmo sobre o Brasil atual, descartando-as como teses "de direita" etc. - sua visão ideológica, hoje, aproxima-se bastante do que pensam os militares nacionalistas (perguntado sobre o que acha do governo Lula, ele falou várias vezes sobre as concessões aos "banqueiros internacionais" etc.). Mas não é esse o ponto. A questão é um homem que quer recuperar sua dignidade, quando tantos que fizeram até pior que ele são hoje aclamados como heróis pelas hostes esquerdistas.
.Nas considerações finais da entrevista, Anselmo conclamou a "juventude desinformada" do Brasil a não se deixar levar apenas por um lado da História. Ao final, constatando a futilidade de sua opção ideológica de juventude, ele desabafa: "fui um otário". Alguém pode dizer que ele está errado?
Um comentário:
Texto e análise muito interessantes. Não assisti à entrevista, mas agora vou buscá-la no youtube.
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