Ontem tive uma discussão muito interessante e acalorada no trabalho sobre o assim chamado "golpe" que derrubou o golpista boliviariano Manuel Zelaya do governo em Honduras. Quem começou o debate, é bom dizer, não fui eu. Como o dito-cujo estava em visita ao Brasil, e como pedissem minha opinião sobre o assunto, não pude resistir. Apesar do tumulto - como sempre acontece, fui interrompido diversas vezes e não consegui concluir vários raciocínios -, acho que consegui expressar meu ponto de vista de maneira mais ou menos clara. Mas o que achei mais curioso foram três argumentos que me foram colocados por um dos debatedores, que insistia em chamar de "golpistas" os que tomaram o poder no país da América Central e em rejeitar essa mesma classificação a Zelaya:
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"O que houve em Honduras foi golpe; já Zelaya não pode ser chamado de golpista, pois foi deposto antes de concretizar seus desígnios autoritários. O mesmo pode ser dito de Jango, em 1964, e de Salvador Allende no Chile: tinham tendências autoritárias, mas não deram golpe; logo, não eram golpistas".
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O argumento é capcioso. Parte da premissa de que só existe golpismo após o fato consumado, e que somente então é que é possível tirar daí alguma conclusão. À primeira vista, parece correto, indo de encontro a qualquer interpretação contrafactual da História, e fiando-se apenas na frieza dos fatos. Além disso, aproxima-se da crítica feita à "guerra preventiva" de Bush - com a diferença de que, em vez desta, teríamos aqui um "golpe preventivo". Enfim, parece algo perfeitamente lógico. Mas não é.
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Não é, por um motivo muito simples: Zelaya não foi deposto pelo que pretendia ou queria fazer - a reforma da Constituição hondurenha por meio de referendo, considerado ilegal -, mas pelo que estava efetivamente fazendo: seu governo já se havia chocado frontalmente com as leis e com os demais Poderes do país, o Legislativo e o Judiciário, tendo ele tentado - não quis tentar, ele tentou - usar as Forças Armadas do país como sua milícia particular. No dia marcado para o referendo, 28/06, ele intimou o comandante do Exército a levar adiante a consulta declarada ilegal e inconstitucional, não deixando outra alternativa àquele senão agir conforme determina a Constituição, declarando-o deposto e instalando um governo provisório em seu lugar para dar prosseguimento ao calendário eleitoral. Antes disso, ao convocar o tal referendo ele já se havia colocado fora da Lei. Isso já foi tão explicado que me dá até um certo tédio repetir esses fatos aqui.
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Em outras palavras: Zelaya, e não Roberto Micheletti, agiu como um golpista, não se limitando às meras intenções: ele tentou, sim, um golpe civil. Assim como Jango e Allende, aliás, que foram também derrubados - aqui, sim, por golpes militares - não porque tivessem "tendências autoritárias", mas porque haviam de fato rompido com a legalidade institucional (se têm dúvidas quanto a isso, recomendo estudarem um pouco mais a História, e não a versão branco-e-preto que nos foi transmitida durante gerações pelo lado derrotado).
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Além do mais, esse tipo de atitude - na verdade, falta de atitude - diante de quem tenta rasgar a Constituição para eternizar-se no poder e destruir a democracia, sob a capa de um raciocínio ex-post facto, serve apenas para justificar a omissão e a pusilanimidade. Foi a mesma posição adotada pelas democracias ocidentais diante da marcha avassaladora do nazi-fascismo na década de 30: de concessão em concessão, ajudaram a preparar a catástrofe. Foi por isso que apoiei a guerra contra Saddam Hussein no Iraque: porque contra tiranos desse naipe, assim como contra terroristas, não há como agir senão preventivamente. Se dependesse dos que se opuseram à guerra, teria sido necessário esperar até Saddam usar as tais armas de destruição em massa para agir contra ele (aliás, ele usou sim, contra os curdos, em 1988, e só não conseguiu a bomba atômica porque Israel agiu em 1981. Preventivamente). Aliás, se dependesse dos que foram contra a guerra, Saddam ainda estaria no Kuwait.
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O mesmo no caso de Honduras: se depender dos que defendem argumentos como o citado aí em cima, Zelaya já deveria ter voltado ao país e se declarado ditador. Aliás, é exatamente isso que ele está tentando - e não só querendo - fazer.
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Em resumo, de acordo com o raciocínio exposto acima, um crime só é crime depois de consumado. É preciso esperar, portanto, até que o estuprador consume seu ato para prendê-lo. Até onde eu sei, porém, tentativa de estupro ainda é crime de acordo com o Código Penal.
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"Praticamente o mundo inteiro, a OEA, a ONU, a União Européia, os EUA condenaram o 'golpe' em Honduras e querem o retorno de Zelaya. Então o mundo inteiro está errado e só você está certo? Quem tem mais legitimidade: você ou Barack Obama?"
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Aqui tenho somente uma coisa a dizer: respeito profundamente quem defende esse tipo de argumento. Isso porque, embora discorde de todas elas, tenho um profundo respeito pelas religiões. O argumento da autoridade - "quem é você para ousar contestar a opinião de Roma?" - é um dos pilares da mentalidade religiosa. Sendo a autoridade em questão não a da Igreja ou do Papa, mas a de Santo Barack Hussein Obama, é até covardia. Mas, como já escrevi aqui antes, é preciso mais do que isso para me impressionar. Sei que não sou ninguém. Mas não deixo de sentir uma pontinha de orgulho ao saber que estou defendendo um ponto de vista diametralmente oposto ao de Lula ou Obama. Até onde eu sei, a verdade de uma tese ainda é determinada pela Lógica, não pela quantidade ou pela autoridade dos que nela acreditam. Aqui não vale o Obama locuta, causa finita.
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"Quando é que você vai deixar de ser massa de manobra de Diogo Mainardi e de Olavo de Carvalho?"
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Fico até com certa dúvida se devo comentar ou não esse tipo de observação. Mas, tudo bem, vamos lá. Eu ficaria preocupado se, em vez dos dois autores citados acima, alguém tentasse me apresentar como mero papagaio de um, digamos, Emir Sader ou uma Marilena Chauí. Mas, como se está falando não destes, mas de dois conhecidos arautos da "direita", realmente não me importo. Aliás, minto: fico até orgulhoso. Isso quer dizer que, mesmo tendo em relação a um deles algumas discordâncias pontuais, eu estou no caminho certo, não me deixando policiar pelas patrulhas esquerdistas. Além do mais, "massa de manobra" é brincadeira. Francamente...
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Aí está. Três exemplos ilustrativos de argumentos usados nesses dias para justificar o golpismo bolivariano e negar à democracia o direito de se defender dos que querem usá-la para destruí-la. Desnecessário repetir, mas a pergunta que eu fiz aqui outro dia continuará sem resposta: Por que os que hoje condenam o "golpe" que derrubou Zelaya não deram um pio quando este se dedicava a destruir a democracia em Honduras? Sei que vou esperar até o inferno congelar por uma resposta, mas fica a questão.
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