Quando eu era criança e estava na escola, era obrigado a participar de uma encenação que, com o tempo, aprendi a detestar. Todas as quintas-feiras à tarde, íamos, os alunos, em fila indiana até o pátio do colégio para assistir ao hasteamento da bandeira e cantar, com o peito estufado e a cabeça erguida, o hino nacional. Era uma época, em pleno governo do general João Figueiredo, último presidente do ciclo militar iniciado em 1964, de forte civismo. Lembro bem das aulas de Educação Moral e Cívica, disciplina criada para instilar nas crianças e adolescentes o amor à Pátria e o orgulho pelas próprias raízes (embora àquela altura já tivesse adquirido outros contornos, haja visto que a escola em que eu estudava adotava, para a matéria, um livro de Frei Betto). Tive que decorar a letra não só do hino de Osório Duque Estrada, com sua ordem invertida e seus floreios parnasianos, suas margens plácidas e raios fúlgidos, mas também, se bem me lembro, o da Bandeira, o da Independência e o da República (o meu favorito, pois era o único que falava em Liberdade)...
Naquela mesma época - para ser mais exato, em 1982 -, o Brasil viveu um dos momentos de maior exaltação patriótica de que se tem notícia, graças à Copa do Mundo na Espanha. Era uma época em que os grandes craques do futebol brasileiro - Zico, Sócrates, Júnior, Éder, Falcão - não pediam dispensa da seleção por causa de contratos milionários com times europeus. O "amor à camisa" falava mais alto do que os cifrões, e os jogadores eram mais famosos pelos gols que faziam do que pelos carrões de luxo ou pelas namoradas glamourosas que colecionavam. Foi num clima assim, de elevado espírito nacionalista, que assisti ao escrete canarinho comandado por Telê Santana encantar o mundo com um futebol que, desde então, jamais se repetiu e, desconfio, jamais se repetirá.
Foi a primeira vez que eu me lembro de ter sentido no peito aquilo que se convencionou chamar de orgulho patríótico. Assim como dez em cada dez brasileiros, de todas as idades, eu estava, naqueles dias, encantado: a seleção dava show nos gramados espanhóis, a taça do mundo, depois de doze anos de espera, parecia enfim ao alcance da mão (aos oito anos incompletos, eu não sabia ainda o que era ser campeão do mundo). O País inteiro estava embalado pela perspectiva de vitória. Éramos 120 mihões em ação, pra frente Brasil, um só coração, como dizia a música.
Então veio aquele jogo fatídico com uma desacreditada Itália, no estádio Sarriá. Um tal de Paolo Rossi fez três gols contra o Brasil, que só marcou dois, e aí acabou o sonho. Se alguma vez uma nação inteira caiu do cavalo, se um país chorou amargurado por uma derrota (aliás, imerecida), foi naquele dia. Como todos os meninos brasileiros, fiquei extremamente frustrado. Passei a odiar aquele italiano estraga-prazer, que havia tido a audácia de roubar o titúlo à melhor seleção brasileira que eu já vi jogar. Como todos os meninos brasileiros, fiquei uns dois dias chorando de raiva, totalmente inconsolável. Até hoje, a "tragédia de Sarriá" é assunto de conversa em muita mesa de bar, em rodas de amigos que já passaram dos trinta.
Com o tempo, à medida que se passavam os anos e as Copas do Mundo, comecei a enxergar a coisa com olhos mais críticos. Hoje, acredito que Paolo Rossi e a seleção italiana, com seu feio futebol de resultados, prestaram um serviço inestimável ao Brasil e aos brasileiros. Creio que, ao nos retirar da disputa pelo título mundial, os italianos cumpriram um papel importantíssimo para a elevação da consciência nacional: ao nos privar da cobiçada Copa do Mundo, a Itália impediu que, tal como ocorreu em 1958, 1962, 1970, 1994 e 2002, os brasileiros ficassem anestesiados, entorpecidos, embotados por mais uma patriotada. A conquista da Copa seria apenas mais uma orgia narcísico-nacionalista embalada por sonhos de grandeza, a superdimensionar nossas supostas virtudes e esconder nossos inúmeros e graves defeitos. Ao nos fazer descer do salto e atingir profundamente nossa auto-estima, o revés de 82 teve um efeito extremamente benéfico para a consciência crítica do brasileiro. A derrota nos fez bem. Grazie, amici.
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Cheguei a essa conclusão depois de ter analisado a fundo o sentido do nacionalismo. Tenho pelo menos dois grandes motivos para não ser nacionalista. Um deles é político-filosófico; o outro é, se preferirem, estético.
Do ponto de vista político-filosófico, ir contra a maré do nacionalismo no Brasil significa contestar uma visão de mundo que insiste em transferir a fatores externos - a exploração das empresas multinacionais, o imperialismo etc. - a responsabilidade última de todos os nossos males. No decorrer do século XX, esta foi a ideologia oficial do Estado brasileiro, baseada na concepção varguista e terceiro-mundista que sempre associou desenvolvimento a intervencionismo e dirigismo estatal. Uma teoria evidentemente falsa, vide os exemplos dos ex-países socialistas do Leste Europeu ou da Etiópia, um dos países mais miseráveis do mundo e que, no entanto, jamais foi colônia de ninguém. Embora um pouco enfraquecida nos anos 90, essa visão voltou com força no governo Lula, estando profundamente arraigada em nosso subconsciente. O nacionalismo brasileiro tornou-se uma forma bastante conveniente de esconder as verdadeiras causas de nossos problemas e negar nossas responsabilidades. Logo, contestá-lo é contestar uma visão que está na base do nosso atraso.
Além disso, não ser nacionalista traz a vantagem de preservar o senso crítico, a capacidade de pensar independentemente da crença geral e da multidão. Há algo de imbecilizante, de inegavelmente infantil e irracional, na idéia de deixar-se levar irrefletidamente pelo entusiasmo da multidão por um símbolo ou um pedaço de pano, ainda mais se a única razão para tanto é o orgulho pelas próprias raízes. Ora, o orgulho pelas próprias raízes é um sentimento altamente excludente e deletério, que está na origem das piores tragédias e genocídios da história da humanidade. Foi em nome do orgulho pelas próprias raízes que sérvios, bósnios e croatas se massacraram nos anos 90. Foi em nome desse mesmo sentimento que ocorreram as duas grandes guerras mundiais. Sem falar na idéia de uniformidade, inerente ao discurso nacionalista, a qual praticamente elimina qualquer possibilidade de pensamento discordante e dissensão, a base mesma da democracia. Não é à-toa que todos os regimes totalitários são extremamente nacionalistas. O nacionalismo traz sempre embutida a idéia de superioridade, de que se é melhor que o outro, o que não raro leva a assassinatos em massa. Paradoxalmente, por trás desse sentimento de superioridade esconde-se, quase sempre, um indisfarçável complexo de inferioridade - afinal, se somos mesmo melhores, por que sentimos tanta necessidade de proclamar que o somos? A superioridade, como a liderança, não se proclama; exerce-se.
Esteticamente, há também fortes motivos para não ser nacionalista no Brasil. A começar pela bandeira nacional. Falando sério, já viram bandeira mais feia? Aquele losango amarelo, sob um fundo verde, com um círculo azul no meio... existe combinação mais esdrúxula? Não por acaso, nenhum outro país seguiu esse modelo em seu pavilhão nacional. E as cores? Os brasileiros adoram a bandeira brasileira, vestem-se com ela, beijam-na, mas quase ninguém conhece o verdadeiro significado do verde e amarelo. Pergunte a qualquer pessoa, mesmo as mais instruídas, e elas responderão que o verde simboliza as matas, e o amarelo, o ouro, forma bastante romântica de esconder a própria ignorância. Que matas, que ouro, que nada. Consultem os livros de História e lá encontrarão: o verde é a cor da Dinastia de Bragança, última Casa Real a governar Portugal, a qual pertencia D. Pedro I. O amarelo é a cor da Casa de Habsburgo, ramo ao qual pertencia a esposa austríaca do primeiro Imperador. O brasileiro só louva o que desconhece. E aquele lema, "Ordem e Progresso"? Nada mais positivista, nada mais autoritário. Sobra o azul e as estrelas, mas, aqui, a combinação não funciona: olhando-se de permeio, tem-se a impressão de que a bandeira nacional é uma rosca de parafuso, ou um exercício preliminar de geometria.
E o hino? Sim, o que dizer do nosso glorioso hino nacional? Acaso alguém sabe o que significa "garrida" ou "fúlgido"? E o "penhor dessa igualdade"? Não admira que quase nenhum brasileiro saiba a letra dessa canção estapafúrdia. Se ao menos ela dissesse alguma coisa inteligível... Por mais nacionalista que alguém seja, não poderá negar que, do ponto de vista estético, o hino brasileiro é um desastre, uma aberração, com letra incompreensível e acordes de ópera bufa italiana. Nada que se compare ao esplendor guerreiro da Marselhesa ou aos acordes, verdadeiramente belos, do hino norte-americano. Definitivamente, nossos bosques não têm mais vida. Nem nossas vidas mais amores.
Pode-se argumentar que o nacionalismo brasileiro é diferente, manifestando-se principalmente no esporte, em especial o futebol. Seria, portanto, um sentimento salutar, de congraçamento. Respondo que não há nacionalismo salutar, pois, mesmo no esporte - aliás, principalmente no esporte -, o que está em jogo não são algumas cervejas numa tarde de domingo, mas algo muito mais sinistro e irracional. Quando ouço a gritaria histérica de um Galvão Bueno por causa de um gol da seleção brasileira ou a insuportável choradeira por causa de um Ayrton Senna, me convenço que há algo intrinsecamente ruim nesse sentimento. Não raramente, ele degenera em briga e confusão. Foi uma partida de futebol, por exemplo, que deflagrou uma guerra inútil entre Honduras e El Salvador nos anos 60. Não há nada de bom nisso, assim como não pode haver nada de positivo em dividir a humanidade entre corintianos e palmeirenses, ou entre vascaínos e flamenguistas.
É claro que não ser nacionalista não significa renunciar a alguma forma de vínculo com a terra natal. Sentimentalmente, continuo ligado à cidade e à província em que nasci, mesmo morando longe há vários anos. Mas reconheço que, apesar de algumas qualidades, o lugar padece de sérios problemas, de graves vícios de formação, que um discurso ufanista apenas agravaria. Apontar esses vícios e essas deficiências é a minha maneira de desejar vê-los superados, tal como na famosa frase de Dostoievsky (ou seria de Gogol?): "se queres ser universal, canta primeiro a tua aldeia".
Há uma outra razão para não ser nacionalista. A época da Copa de 82 foi também de grande crise no Brasil. De recessão econômica e inflação galopante. Desconfio que, num clima assim, os governantes de plantão se aproveitariam de uma eventual conquista brasileira para colher os louros da vitória e fazer demagogia. Como fizeram em 1970. Como fizeram no Pan. O nacionalismo é uma praga. Não por acaso, segundo uma definição clássica, é o último refúgio do velhaco.
Um comentário:
Bem...
Es um cromo, quem me dera a mim andar em uma escola assim, uma escola com respeito com rigor com futuro!
Agora vejam so o que voces fizeram com a vossa liberdade? VIRAM? AGORA ATUREM NA E ESPERO QUE SEJAM ESFAQUEADOS PELOS VOSSOS PROPRIOS FILHOS!!!!!!! PARA APRENDEREM A AMAR O VOSSO PAIS E AS VOSSAS RAIES!
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