segunda-feira, julho 16, 2007

UM CONTO DE DUAS TRAIÇÕES



Em 26/01/1969, o capitão do exército Carlos Lamarca fugiu, juntamente com mais dois militares, do quartel de Quitaúna (SP), onde servia. Levou consigo uma Kombi com 63 fuzis, várias metralhadoras e farta munição, que foram entregues a duas organizações da esquerda radical que praticavam a luta armada contra o regime militar instaurado no Brasil em 1964.

Lamarca abandonou as Forças Armadas que jurara defender para se juntar à guerrilha, primeiro como militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), depois do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Como tal, participou de várias ações armadas, como assaltos a bancos, seqüestros de diplomatas e assassinatos, tendo sido o responsável direto, pelo menos, por três mortes: a de um guarda civil, de um tenente da PM/SP - executado a coronhadas de fuzil depois de ter sido capturado - e de um segurança do Embaixador da Suiça, fuzilado quando tentava impedir o seqüestro do mesmo. Em 17/09/1971, a trajetória de Lamarca, ou "Cid", ou "Daniel", ou "Cirilo" - nomes que usava na clandestinidade - chegou abruptamente ao fim, no sertão da Bahia, na forma de uma rajada de metralhadora desferida pelos agentes da repressão, a qual pôs termo à sua vida, juntamente com a do militante que o acompanhava.
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Recentemente, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça resolveu promover o ex-capitão Carlos Lamarca, "Cid", ou "Daniel", ou "Cirilo", à patente de coronel. Com isso, sua viúva passou a ter o direito de receber uma pensão equivalente a de general-de-brigada e seus filhos, que foram com ela para o exílio em Cuba após a deserção do marido, receberão a bolada de 100 mil reais cada, a título indenizatório. Em 1995, a Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça, criada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, já havia reconhecido que Lamarca fora morto sem chances de defesa, tendo concedido a sua família uma indenização de 150 mil reais, em valores da época, pelo ocorrido.

A indenização a seus familiares e a promoção póstuma de Lamarca causaram furor e indignação nas Forças Armadas, em particular entre antigos militares que participaram do combate às guerrilhas. Estes as consideram um acinte, um deboche às vítimas do terrorismo. Para eles, Lamarca é um traidor.
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José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, foi o líder da revolta dos marinheiros que, em 25/03/1964, ao marcar a quebra da hierarquia e da disciplina nas Forças Armadas, foi o estopim do golpe militar que derrubou o governo João Goulart, uma semana depois. Preso após o golpe, ele fugiu da prisão para exilar-se no Uruguai e depois em Cuba, onde recebeu treinamento de guerrilha. Ao retornar ao Brasil, depois do AI-5, foi novamente preso em 30/05/1971, desta vez pela equipe do delegado paulista Sérgio Fleury. Nessa ocasião, segundo seu depoimento ao jornalista Percival de Souza (Eu, Cabo Anselmo, São Paulo: Ed. Globo, 1999), Anselmo foi torturado e colocado diante de uma escolha: ou aceitava colaborar com as forças da repressão ou seria morto por seus captores. Ele aceitou a primeira opção, tornando-se um agente infiltrado na VPR, que ajudou a destruir, levando à morte vários de seus companheiros de luta armada, entre os quais sua própria mulher na época, a qual, dizem os sobreviventes da esquerda radical, estaria grávida dele. Desde então, Anselmo vive escondido, com novo rosto e identidade falsa, temendo por sua segurança.

Recentemente, o Cabo Anselmo voltou às manchetes, ao requerer junto à mesma Comissão que promoveu postumamente Lamarca o direito a ser indenizado, pois, como argumenta, foi também vítima da repressão, tendo sido expulso da Marinha em 1964 e perdido seus direitos políticos. Seu caso foi, inclusive, retratado no programa televisivo Linha Direta, da Rede Globo.

O pedido de indenização de Anselmo causou furor e indignação entre a esquerda, em particular entre os sobreviventes da guerrilha. Estes o consideram um acinte, um deboche às vítimas da ditadura. Para eles, Anselmo é um traidor.

Os casos de Lamarca e de Anselmo demonstram o viés claramente ideológico que tomou a disputa pela memória dos "anos de chumbo" da ditadura militar no Brasil, bem como da polêmica questão das indenizações às vítimas do regime de 64. Tal viés é demonstrado de forma cabal no tratamento diferenciado dado a cada um: Lamarca, o desertor e traidor do exército, que escolheu o terrorismo e o comunismo em vez da farda, o militar que se desiludiu com os rumos da ditadura no Brasil e se converteu em revolucionário pró-Cuba, é louvado pela esquerda como herói e mártir da luta pela democracia (sic); Anselmo, o traidor da VPR, o ex-marinheiro que se tornou guerrilheiro e então, após ter sido preso e também por desilusão ideológica, algoz de seus próprios camaradas de luta, é quase universalmente execrado como paradigma de traição vil, de canalhice e covardia abjeta. A ponto de, ao requerer indenização, ser tratado como um reles oportunista e não ousar, mesmo após a Lei de Anistia e a redemocratização, mostrar o rosto na rua.

Há muita hipocrisia nisso tudo. Primeiro, porque, sim, Anselmo foi um traidor, e foi responsável por várias mortes no meio da esquerda armada, mas não menos do que foi Lamarca em relação ao exército. Segundo, porque, pelos próprios critérios da esquerda, ele foi, sim, vítima da ditadura, pois teve os direitos políticos cassados em 64, logo tem também direito a ser indenizado. Terceiro, porque a Lei de Anistia de 1979 perdoou os crimes dos dois lados, e não somente os cometidos pela esquerda - pode-se criticar o caráter recíproco da Anistia, mas não se pode pretender, em são juízo, revogá-lo, sob pena de se demolir todo o arcabouço jurídico posterior, que deu origem à própria Lei dos Mortos e Desaparecidos Políticos (Lei 9.140/95), tão cara hoje às esquerdas, as mesmas que se enchem de indignação ao verem o Cabo Anselmo requerendo tratamento de ex-perseguido político.

Assim como Anselmo, há vários remanescentes da luta armada com sangue nas mãos, alguns deles hoje ocupando importantes cargos públicos, e nem por isso se ouve gritaria semelhante contra o tratamento favorável que lhes é dispensado. Não duvido que, caso fosse vivo, Lamarca estaria em algum ministério, como Marco Aurélio Garcia ou Dilma Rousseff. Outros militantes que participaram de ações violentas, como Fernando Gabeira e Carlos Mariguella, são reverenciados como símbolos ou heróis da resistência democrática, embora esteja claro que não lutavam pela democracia, mas por um tipo de ditadura revolucionária, como bem observou Elio Gaspari. Por que então essa indignação quanto ao Cabo Anselmo?

A verdade é que se confundiu, desde a Lei de 95, indenização com premiação por serviços prestados à causa esquerdista. Até o momento, somente foram agraciadas as famílias daqueles que lutaram contra ou foram, de alguma forma, vítimas da ditadura militar. Isso significa um duplo padrão ideológico, claramente discriminatório, baseado na falsa idéia bastante difundida de que a violência política dos anos 1964-1979 foi de mão única, ou seja, que só houve vítimas da repressão, de um lado, e seus algozes, os meganhas e torturadores, de outro. Ficaram de fora, assim, os cerca de 100 mortos em ações perpetradas pela esquerda armada, vários deles simples traunseuntes ou trabalhadores inocentes, como o guarda civil abatido a tiros por Lamarca. É o caso, também, das vítimas dos "justiçamentos" (assassinatos cometidos pela esquerda), algumas delas - pelo menos quatro, segundo levantamento feito por Jacob Gorender, mais um caso na chamada Guerrilha do Araguaia - militantes assassinados a sangue-frio por seus próprios companheiros de luta armada, em geral por mera suspeita de traição, jamais confirmada. Não por acaso, uma revista de grande circulação nacional batizou as indenizações de "Bolsa-Terrorismo".

O próprio Cabo Anselmo quase foi alvo de uma dessas ações homicidas. Só não foi fuzilado por seus companheiros de guerrilha porque estes foram todos capturados e mortos pela repressão, na chacina da Chácara São Bento, em Abreu e Lima (PE), em 1973. Nenhum desses "justiçados" - todos, ressalte-se, sem culpa formada - está incluído em nenhuma lista de mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar no Brasil, nem seus parentes foram até hoje indenizados por suas mortes.
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O fascínio pelos "anos de chumbo" no Brasil só não é maior do que a tendência a romantizar a luta armada e satanizar os militares. Na verdade, os militantes das organizações que pegaram em armas contra o regime militar não o fizeram por serem democratas, mas porque desejavam ir à desforra pela derrota de 1964. Não queriam a democracia, não lutavam pela liberdade; lutavam, isto sim, para substituir uma ditadura por outra, revolucionária e anticapitalista, certamente antiamericana, nos moldes de Cuba ou da China de Mao Tsé-Tung. Pretendiam conseguir pela violência o que não foram capazes de alcançar por meios legais e pacíficos. Se vencessem, não duvidem: em vez de um regime autoritário de direita, teríamos uma ditadura totalitária de esquerda. Em vez de anos de chumbo, rios de sangue, como afirmou Roberto Campos.
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O problema, nessa questão, é o maniqueísmo, a tendência a enxergar apenas um lado da moeda. Nem os guerrilheiros foram todos anjos de heroísmo e bravura, nem os militares foram todos monstros de crueldade e selvageria como são geralmente pintados pelas esquerdas, e vice-versa. A repressão foi feroz? Foi. Houve tortura? Houve. Prisioneiros foram massacrados e assassinados covardemente? Foram. Mas nada disso se compara, em alcance, intensidade e duração, ao que existiu nos países do bloco comunista, como a ex-URSS, a China, Cuba ou a Coréia do Norte, que eram vistos como modelos e fontes de inspiração - quando não de treinamento e recursos materiais - pela guerrilha. Isso significa que os crimes cometidos pelas ditaduras de direita, por terem sido comparativamente menores do que os das ditaduras de esquerda, devem ser justificados e esquecidos? Nada disso. Mas nenhuma pessoa séria e honesta, se não quiser passar por parcial e facciosa, pode dar-se ao luxo de ignorar essa diferença essencial quando se analisa a questão das indenizações às vítimas do período.
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Portanto, se a Comissão de Anistia houve por bem agraciar a família de Lamarca, não há razão alguma, sob pena de grave hipocrisia ou favorecimento ideológico, de deixar de fazer o mesmo em relação ao Cabo Anselmo. As vítimas deste último já foram, de certa forma, compensadas por sua traição. As de Lamarca, não. A Justiça está sendo feita pela metade.

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