A recente lei estadual que proíbe o cigarro em lugares fechados em São Paulo, da qual já falei aqui, parece confirmar um padrão. A cada dia, uma nova lei ou um novo projeto de lei aparece com a melhor das intenções, visando a nos proteger de nós mesmos e a criar um mundo perfeito. Vou também dar minha contribuição a essa nova utopia que querem construir, escrevendo este texto que, espero, sirva de receita para os que querem nos fazer voltar aos seis anos de idade. .
Uma vez banida definitivamente a fumaça de cigarros, charutos e cachimbos de ambientes fechados como restaurantes, bares e boates - aonde as pessoas vão, como se sabe, somente em busca de prazeres saudáveis e inocentes -, uma pesquisa do governo, usando dados do Banco Mundial e da Organização Mundial da Saúde, revela que a fumaça do cigarro é dois milhões de vezes mais cancerígena do que um inofensivo cigarro de maconha. Com as estatísticas em mãos, o governo e a imprensa a ele afiliada iniciam, então, uma campanha de esclarecimento e conscientização pública sobre os graves riscos do vício do tabagismo. A opinião pública, devidamente esclarecida e conscientizada sobre as altas somas em dinheiro dispendidas pelos cofres do Estado para tratar de doenças provocadas pelo vício de fumar, como ataque cardíaco e câncer de pulmão, dinheiro que poderia estar sendo melhor empregado, resolve apoiar, em silêncio, uma nova lei, que, em nome da saúde de todos e do erário, pune com cadeia e/ou internações compulsórias em spas e clínicas de reabilitação os praticantes do nefando hábito de tragar fumaça, mesmo que o façam dentro de casa, longe das narinas e dos pulmões alheios. Ao mesmo tempo, é aprovada lei, já existente em outros países, que põe fim à absurda proibição do hábito de fumar um baseado - sabidamente uma questão de liberdade individual - e abre caminho para que essa inocente folha seja comercializada livremente...
Mas a luta por uma vida mais saudável e por um mundo perfeito não se encerra aí, claro. Nenhuma medida é radical demais para atingir o objetivo de tornar a vida das pessoas melhor e mais feliz. O próximo alvo das patrulhas dos bons costumes são as bebidas alcoólicas, essas conhecidas destruidoras da saúde física e mental de milhares de pessoas. Em nome do bem comum, os agentes do governo passam a investir pesado contra os lugares que vendem esses abomináveis instrumentos do vício e da degradação humana. Logo os donos de botecos e restaurantes, convencidos por uma eficiente campanha de conscientização e por leis cada vez mais rigorosas, deixam de vender cerveja e uísque, e passam a servir apenas suco de groselha.
Livres do fumo e do álcool, os cidadãos e cidadãs, cada vez mais robustos, entregam-se a hábitos cada vez mais saudáveis, imitando, de forma inconsciente, o que é repetido sistematicamente, 24 horas por dia, pela propaganda oficial e semi-oficial. Não é difícil perceber, então, as desvantagens inegáveis para as coronárias do costume de comer carne vermelha. Surge, assim, uma nova lei, impondo a todos o hábito benéfico do vegetarianismo. Picanhas e maminhas, alcatras e filés, assim como doces e comidas gordurosas, de agora em diante passam a servir apenas aos cachorros da casa. Uma medida provisória aprovada por unanimidade no Congresso cria então o Departamento de Nabos e Cenouras do Ministério da Boa Alimentação, e logo todos se deixam levar, compulsoriamente, pelo dever patriótico de comer brócolis e beterraba nas refeições.
A cruzada pró-saúde não se limita ao terreno da culinária. Sempre tendo em vista a higidez e a segurança da população, o governo sabiamente realiza um plebiscito no qual, com o apoio de ONGs pela paz, tenta banir de vez a posse de armas de fogo portáteis, iniciando uma campanha para que os cidadãos entreguem seus revólveres calibre 32 e suas espingardas de caça em alguma delegacia de polícia. A idéia é engenhosa: como o cigarro e o álcool, armas são perigosas; logo, devem ser colocadas longe do alcance das pessoas, devendo sua posse ser restringida aos agentes do Estado e aos criminosos, que infelizmente não costumam obedecer a leis como essa. Exatamente como remédios e facas de cozinha devem ser mantidos sempre fora do alcance de crianças. O raciocínio é simples: sem cigarro, não há câncer; logo, sem armas de fogo, não há mortes. Assim como sem facas de cozinha, não há acidentes. O fato de facas de cozinha serem algo necessário é um detalhe.
Com os pulmões, o fígado e as artérias desintoxicados, além de salvos de qualquer possibilidade de acidente doméstico, os cidadãos, fortes como touros, percebem que falta algo ainda para que os hábitos do passado sejam enterrados para sempre, rumo a um bravo e delicioso mundo novo feito de água de coco e sopa de rabanete. De nada adianta uma dieta 100% sem gordura se esta não vem acompanhada do abandono da preguiça e do sedentarismo. É baixado então um decreto, ou portaria oficial, instituindo a obrigatoriedade da ginástica matinal. Todos os dias, ao amanhecer, os cidadãos e cidadãs deverão, por força de lei, enfileirar-se no parque mais próximo ou nos pátios das escolas, onde repetirão alegremente duas ou três sessões de polichinelo ou de flexão. Isso, claro, com o acompanhamento de profissionais em educação física, gentilmente cedidos pelo Ministério da Boa Forma. Quem não se dispuser a cumprir esse dever para com a própria saúde será devidamente penalizado, assim como responderá a processo quem desobedecer a obrigação de limpar as orelhas e escovar os dentes.
Mas, como nem tudo na vida é almoço, jantar e ginástica, é preciso também zelar pela boa saúde mental dos cidadãos. Filmes e programas de TV que estimulem maus hábitos, mostrando cenas ou notícias que possam ser consideradas nocivas para o bem-estar moral da coletividade, portanto, devem ser banidos da programação normal. Comédias satíricas e debates políticos, por exemplo, que estimulam a irreverência e põem em dúvida o que diz o governo, gerando dissensão e discórdia, não estão em sintonia com o mundo perfeito que se quer construir. Devem, portanto, ser cancelados, e, em seu lugar, deve entrar apenas uma grade compatível com a moral e os bons costumes. Nos cinemas e na TV, nada de sexo e violência: apenas Bambi e programas de culinária (vegetariana, claro), além de novelas açucaradas (pelo menos aqui não faltará açúcar). Também nada de termos chulos ou de mau gosto, como chamar negro de negro ou boiola de boiola. Um novo Dicionário, apenas com as palavras mais adequadas para se referir a esse ou aquele grupo social, étnico ou racial, será adotado nas escolas e repartições, e não usar as palavras nele contidas acarretará uma sanção legal para o infrator. Será criado um novo critério para definir os indivíduos daqui para a frente. Não haverá mais Fulano ou Sicrano, apenas o "afro-descendente", o "membro da comunidade GLBTT", e assim por diante, tratados com todo respeito e reverência.
Até aqui, parece que já alcançamos o paraíso na Terra. Mas quê! A capacidade humana de estragar o que é belo e saudável é, infelizmente, infinita. Então, para não deixar qualquer dúvida de que estamos mesmo entrando em uma nova era de harmonia e felicidade, todos os livros e revistas com temas considerados pouco recomendáveis deverão ser recolhidos e destruídos. Sexo e violência, coisas que, como sabemos, perturbam nossa paz de espírito e nos desviam desse mundo harmonioso que queremos criar, nunca mais. Assim, estórias infantis como Branca de Neve e Chapeuzinho Vermelho deverão ser reescritas, inserindo-se nelas um final feliz sem maçãs envenenadas, nem lobos maus abatidos a tiros, para o bem de nossas criancinhas e de nós mesmos. Será criado um índice de livros proibidos pelo Estado, e ser apanhado em flagrante lendo qualquer tipo de material não aprovado pelo Gabinete Estatal de Leitura será um crime do pensamento, com o infrator devidamente enquadrado no Código Penal. Nas escolas e universidades, em lugar de clássicos como MacBeth, ou dos livros licenciosos de Eça de Queiroz, apenas textos edificantes e de auto-ajuda, produzidos em série pelo Departamento de Ficção do Ministério do Texto Educativo. Em breve, nos vestibulares, em vez de Homero e Shakespeare, os grandes nomes da literatura analisados serão Gabriel Chalita e Zíbia Gasparetto.
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Ai está! Se você pensou, ao ler este texto, na realidade descrita em obras como 1984, de George Orwell, ou Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, você não pensou errado. É justamente para esse tipo de sociedade - coletivista, sufocante, totalitária - que idéias cretinas e imbecis como a lei anti-fumo de São Paulo estão nos levando. É precisamente esse o mundo tido como ideal pela boiolice politicamente correta - um ambiente em que a liberdade de escolha individual será aniquilada, dando lugar a um rebanho de pessoas infantilizadas e dependentes. Será um mundo perfeito, sem dúvida. Perfeitamente idiota.
3 comentários:
Gustavo,
Sou um leitor assíduo do seu blog; concordo com diversas das suas opiniões, ainda que elas, por vezes, sejam "assustadoras".
Esta não foi o caso: foi mole concordar. Até onde eu me lembre, dos seus textos, é o que eu mais gostei.
Realmente não entendo como as pessoas não veem que ser proibido de fumar nas suas casas ou nos seus escritórios; proibir a picanha e criar um programa de saúde de caminhadas obrigatórias no parque é a mesma coisa!
Se me permite, gostaria de reproduzir o texto no meu blog: walrusnosamba@blogspot.com
um abraço,
Guilherme
Walrus,
Pode reproduzir o texto em seu blog, não precisa pedir. Desde que não mude o texto, e desde que se identifique o autor, não tem problema.
Um abraço.
Gustavo,
Obrigado. O texto está postado.
abraço,
Guilherme
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