Outro dia, debatendo na internet - sou daqueles que ainda crêem que a internet também serve, ou deveria servir, para o debate de idéias -, recebi de meu interlocutor o seguinte conselho, ou sugestão: eu deveria deixar de lado minha visão ideológica, pois esta "muitas vezes acaba atrapalhando e condicionando nossa capacidade de interpretar e entender as coisas". Afirmou ainda: "Acho que se você fosse menos entusiasta das próprias visões ideológicas poderia ler meu texto de um outro modo." etc.
O tema em debate não vem muito ao caso agora - digamos apenas que era um assunto de política internacional do Oriente Médio, e girava em torno do uso que se faz de palavras como "nazismo" e "genocídio" aplicadas a certos contextos. O que realmente importa, e que me ficou gravado na retina, foi a seguinte observação: ideologias políticas atrapalham etc. e tal. É sobre isso que falarei aqui.
Já escrevi várias vezes, de modo que não é segredo para ninguém, que não tenho nenhuma pretensão a ser "neutro", "imparcial" ou "não-ideológico". Não posso ter essa atitude. Não quero tê-la. Explico por quê.
Em geral, a recusa a tomar posição sobre um determinado assunto vem de quem tem em alta conta a visão relativista, segundo a qual a verdade objetiva é uma quimera. Sobraria, assim, apenas uma atitude: o juste milieu, a adoção da posição que eu chamo de "nem-nem" ("nem isso, nem aquilo"), ou nenhumladista, que muitos preferem chamar de "isenta". É o que eu já chamei, em outro texto, de falácia relativista: ninguém pode dizer que o copo está meio cheio ou meio vazio, logo não se pode afirmar nada a respeito, é tudo uma questão de ponto de vista etc. etc. Mostrei que tal forma de pensar é uma fraude, visto que, não importa se está meio cheio ou meio vazio, um copo ainda é um copo. Mais: na maioria dos casos, essa falácia é apenas um álibi para encobrir o medo de ter uma opinião (ou de expressá-la em público).
Assim, quanto ao fato de a ideologia política atrapalhar e condicionar a capacidade de interpretação sobre um tema, seja o conflito entre Israel e o Hamas, seja o governo Lula, confesso que esses temas me entusiasmam, e pode ser que eu tenha uma visão apaixonada. Mas isso não quer dizer que eu necessariamente tenha uma visão turvada e seja incapaz de um julgamento honesto. Uma visão ideológica, se pode cegar para alguns aspectos, também nos abre os olhos para outros, que de outro modo passariam despercebidos. Se você adota como paradigma o princípio da liberdade individual - uma visão rotulada como "de direita" -, você está obviamente perdendo de vista certos aspectos, digamos, "positivos" de um regime totalitário (a alfabetização em massa, por exemplo), concentrando-se "apenas" nos negativos - o terror policial, a falta de liberdades, o esmagamento do indivíduo, a censura etc. Logo, pode-se dizer que sua visão é limitada e condicionada ideologicamente. Isso significa, portanto, que a visão supostamente não-ideológica, "neutra", é superior e mais próxima da verdade? Francamente, acredito que não. O regime nazista, por exemplo, poderia ser visto, segundo essa ótica imparcial, como algo bom e positivo, pois acabou com o desemprego na Alemanha. Mas não é por isso, claro, que ele é lembrado, nem deveria.
É um erro achar que uma visão “neutra” ou “imparcial” corresponde sempre à verdade. A verdade (e ainda acho que a verdade não é uma fantasia de alguns filósofos) nem sempre está "no meio". Entre Israel e o Hamas, por exemplo, eu me coloco do lado de Israel, e não escondo isso de ninguém. Do mesmo modo, entre os judeus e Hitler, eu fico do lado dos judeus contra Hitler. Entre a corda e o pescoço, eu torço contra a corda. Isso faz de mim um fanático?
Tenho outras razões para adotar essa atitude. Ao contrário de nove em cada dez pessoas, não compartilho do mantra segundo o qual, após a queda do Muro de Berlim e o fim da URSS, vivemos em uma era "pós-ideológica". Para mim, isso não passa de balela pós-moderna ou, no caso dos órfãos do Muro, de racionalização da derrota. Basta passar os olhos por algum jornal ou revista para perceber que, pelo menos por estas bandas, muito do que passa por jornalismo ou por visão "imparcial" é pura ideologia esquerdista disfarçada, eivada do marxismo ou do antiamericanismo mais vulgar. Vou repetir aqui um exemplo que já dei várias vezes: quando se trata de países como os EUA ou Israel, ou a Colômbia - para não falar de ditaduras passadas como a de Pinochet no Chile -, a única atitude considerada justa e decente adotada por muita gente "neutra" e "equilibrada" na imprensa e na academia é uma só: condenação total, denúncia apaixonada etc. Quando se trata, por seu turno, de ditaduras presentes como a de Cuba, a atitude costuma mudar radicalmente: em vez de condenação, pede-se "moderação" e "equilíbrio" no tratamento desses regimes. O mesmo se aplica ao terrorismo islamita, jamais condenado com a mesma veemência que a "reação desproporcional" de Israel ou a "guerra ao terror" dos EUA.
Aliás, é curioso: muitos que preconizam uma atitude "neutra" ou "imparcial" em diversos temas polêmicos, bancando a Suiça, são os mesmos que rejeitam categoricamente uma opinião porque quem a emite é "de direita" - é que não se opõem às opiniões em geral, mas somente àquelas que não sejam... de esquerda. Estranha imparcialidade essa, como se vê. A essas pessoas, digo apenas que, ao contrário delas, não tenho qualquer preconceito ideológico, pelo contrário: tenho por hábito concordar com quem concordo, e discordar de quem discordo, sem olhar antes para que time ele ou ela torce. Coincidentemente, a maior parte das opiniões de que discordo estão vinculadas à esquerda. Isso só mostra que quem deve rever seus conceitos é a esquerda, não eu.
É evidente, para quem tem um mínimo de discernimento, que as tão faladas "imparcialidade" e "equilíbrio" cobradas sempre que o tema em questão é espinhoso não passam, na maioria dos casos, de uma desculpa para que se exercite um duplo padrão moral. Disso, pelo menos, não poderão me acusar. Quando se trata de ditadores, como Fidel e Pinochet, adoto uma postura, sim, ideológica: condeno a ambos, por serem ditadores, com o agravante de que o cubano matou muito mais e que a tirania que instalou é mil vezes mais nefasta. E os que pregam a neutralidade como suprema virtude política, será que podem dizer o mesmo?
.
Uma música idiota dos anos 80 - talvez a época mais idiota de todos os tempos, pelo menos em música - tem o seguinte refrão: "Ideologia/Eu quero uma pra viver". Durante décadas, os esquerdistas - e o cantor era um deles - ostentou sem pudores sua posição ideológica, exigindo que os demais abraçassem sua visão de mundo totalitária. Agora, quando vivemos uma época pós-Muro, afirmam que as ideologias estão mortas e que é preciso "olhar a realidade a partir de todos os ângulos possíveis". Hmmmm... Impossível não sentir um cheiro de tapeação no ar.
Chamem-me, portanto, de parcial ou ideológico, eu não me importo. Aliás, eu até revindico esses epítetos. Afinal, diante de ameaças à vida e à liberdade, somente os tolos ou os incrivelmente cínicos não adotam uma atitude entusiasta - no caso, de entusiasta indignação. Quando se trata de denunciar ditaduras, ou as trambicagens dos petralhas, é preciso agir com o fígado. A imparcialidade, em casos assim, é um outro nome para a indiferença. E a indiferença, a História não cansa de mostrar, é a maior aliada de tiranos e assassinos.
Um comentário:
afudê mesmo
Postar um comentário