sábado, julho 23, 2011

DE COSTAS PARA A REALIDADE

Se tem uma coisa que me deixa nauseado - talvez nauseado não seja a palavra certa, mas fico realmente intrigado - é a capacidade, aparentemente ilimitada, de muitos intelectuais, subintelectuais e mini-intelectuais daqui e de alhures de se iludirem e de insistirem em não enxergar o óbvio. É algo para deixar vermelho de raiva até o mais franciscano dos monges.

Vejam, por exemplo, a quantidade de besteira que se escreveu - e que, certamente, continurá a ser escrita, por muitos anos ainda - sobre a crise econômica eclodida nos EUA em 2008. De repente, pipocaram de todos os lados "especialistas" com um discurso bem coordenado, eu diria mesmo sincronizado, sobre o assunto. Com poucas variações, os "argumentos" apresentados podem ser resumidos nas seguintes idéias-força (ou melhor, idéias-clichês):

- "A culpa da crise é do capitalismo, um sistema que instiga os piores instintos no homem, como o egoísmo, a falta de solidariedade etc.";

- "A crise comprova - mais uma vez - que o sistema capitalista está em seus estertores no mundo todo";

- "A solução para a crise é um grau maior de intervenção do Estado na economia";

- "Portanto, Marx estava certo e devemos retornar a ele".

Difícil dizer qual idéia acima é a mais falsa, a mais idiota, a mais ofensiva à inteligência. Comecemos com a primeira. Nada mais cretino do que falar nas "boas intenções" socialistas em contraste com as "más intenções" dos capitalistas. Se a idéia é condenar moralmente o lucro individual, tal como fazia a Igreja Católica na Idade Média, isso já foi rechaçado há mais de duzentos anos por ninguém menos do que o pai do liberalismo econômico, Adam Smith, na famosa afirmação de que é o desejo de lucro do padeiro, e não qualquer elevado princípio altruísta, que garante o pão diário na mesa do consumidor. Ou, como disse certa vez Roberto Campos, numa frase que jamais foi refutada: "No capitalismo, os resultados são melhores do que as intenções; no socialismo, as intenções são melhores do que os resultados".

Se alguém duvida ou se sente desconfortável com isso, então que olhe para o outro lado e veja a maravilha em que deram as "boas intenções" dos bolcheviques em todos - todos, sem exceção - os países em que se instalou uma "ditadura do proletariado"... (Aliás, gostaria de saber qual revolucionário marxista ou político social-democrata aceitaria ser um simples operário em um país comunista; qual deles toparia participar de uma revolução proletária para virar trabalhador em alguma fábrica ou fazenda coletiva em Cuba ou na Coréia do Norte... alguém se habilita?)

Quanto à segunda idéia, o capitalismo está em crise desde pelo menos 1929, e de lá para cá, todos sabemos o que aconteceu: os regimes totalitários que tentaram destruir o capitalismo liberal e substituí-lo pela estatolatria, como o comunismo e o nazi-fascismo, naufragaram miseravelmente. A previsão do ex-premiê soviético Nikita Krushev, feita nos anos 50 e dirigida às democracias ocidentais lideradas pelos EUA - "Nós vamos enterrar vocês" - entrou para a galeria de frases irônicas e risíveis da História. Alardear o fim iminente do capitalismo e defender o maior intervencionismo e o dirigismo estatal, ainda mais em países que jamais conheceram nada parecido com uma economia de livre mercado, é algo que só pode ser entendido como recusa a ver o mundo em volta, e como insistência psicótica no erro.

Com a mesma certeza e com a mesma teimosia típicas dos ignorantes soberbos, os inimigos da livre iniciativa e da propriedade privada anunciam a ressurreição de Marx, visto sempre como um filósofo e economista genial e como um grande humanista, cuja obra, como Cristo em relação ao Vaticano, teria sido distorcida e não teria tido, portanto, nenhuma relação com o que aconteceu depois de sua morte. (Ou seja: os fuzilamentos em massa, a repressão política, a censura e o exterminío de mais de 100 milhões de pessoas devem ter sido, pelo visto, obra do acaso.) Já é quase uma tradição: de tempos em tempos, sempre que surge o menor sinal de crise no horizonte, alguém tenta ressuscitar Marx. Basta o índice Dow Jones balançar e aparecerá uma revoada de abutres gritando pela enésima vez "o capitalismo morreu" e propondo, também pela enésima vez, um "retorno a Marx". (Outros são mais escancaradamente imbecis e saem dizendo coisas como "agora, somos todos socialistas".)

É impressionante. O Muro caiu, a URSS virou peça de museu, mas o culto a Marx sobrevive como verdadeiro fetiche de acadêmicos e militantes esquerdistas (muitas vezes, as duas coisas se confundem). Talvez não haja cadáver mais insepulto em toda a História. Esse culto necrofílico baseia-se, como todo culto do tipo, na idealização de um passado mítico - no caso, as idéias do pai-fundador de uma religião secular -, extraindo sua força da pura e simples negação da realidade.

É um caso mesmo de psicopatia, de dissonância cognitiva: quanto mais os fatos desmentem a crença, mais esta se fortalece, por um mecanismo mental de auto-engano, da mesma maneira como ocorre em cultos messiânicos e apocalípticos que se vêem constrangidos a explicar por que o mundo não acabou na data prevista. Há quase cem anos os antônios conselheiros do marxismo de galinheiro anunciam o fim do mundo capitalista e o advento do paraíso socialista, no qual todos serão felizes e correrá leite e mel. Como isso nunca acontece, resolvem adiar a previsão. É precisamente assim que agem os devotos de São Carlos Marx, padroeiro do Gulag e do paredón.

Pois bem, senhores fãs do velho Marx, que o vêem como uma espécie de oráculo que explica tudo: em que capítulo de O Capital ele explica o colapso da URSS e o fracasso do marxismo no Leste Europeu - o maior fiasco de todos os tempos? Em que trecho do Manifesto Comunista ele prevê a conversão da China comunista à economia de mercado? Aliás, foi o capitalismo que salvou o regime comunista na China, transformando um país outrora miserável em uma potência mundial (somente nos últimos trinta anos, cerca de 400 milhões - mais de dois brasis - de chineses saíram da miséria graças ao capitalismo na terra de Mao Tsé-tung). Muito antes, nos anos 20, foram grandes empresários capitalistas ocidentais que, atendendo a um apelo desesperado de Lênin, reergueram a economia da finada URSS. Marx previu isso?

Se acharem esses assuntos muito difíceis, tentem então o seguinte: procurem explicar, com base no marxismo, a atual crise do euro que, tendo começado na Grécia, ameaça espalhar-se para os outros países e ameaça a própria existência da União Européia. Tentem mostrar que papel o "livre mercado" e a "ganância capitalista" tiveram na explosão da dívida grega, resultado, na verdade, de décadas de gastança e de irresponsabilidade fiscal - e que revela, isto sim, o fracasso do welfare state na Europa. Tentem explicar a crise fiscal européia da atualidade com base em Marx. Podem citar a bibliografia se quiserem.

Gostaria que algum anticapitalista de plantão, algum crente na superioridade moral do socialismo e adorador de Barack Obama - cujo governo, é curioso, só fez aumentar o déficit público dos EUA, mas que ainda tem muitos devotos fiéis que o vêem como o salvador da humanidade - me explicasse o que está nos parágrafos acima. Gostaria que alguém me dissesse que outro sistema econômico, além do capitalismo, pode gerar prosperidade e igualdade (sim, igualdade: que outro nome se deve dar à mobilidade social proporcionada pelo trabalho e pelo dinheiro?), num ambiente de constante inovação e de liberdade individual.

Como, para responder as indagações acima, é preciso antes de tudo um mínimo de honestidade intelectual, desconfio, porém, que ficarei sem resposta. Ainda espero ver um dia um adorador de Marx admitir que seu objeto de culto era um farsante e um idiota, que só ajudou a trazer infelicidade para o mundo, e que a humanidade não inventou, até agora, nada melhor para superar a pobreza do que o capitalismo. Nesse dia, porém, os oceanos irão secar, o Saara será inundado e o inferno vai virar um bloco de gelo.

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