Volta e meia este assunto reaparece. Trata-se do debate sobre a luta armada, durante os "anos de chumbo" da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Afinal, foi terrorismo ou não foi? Eu, como aficionado desse tipo de tema, ao ponto de ter um diploma universitário em História - por uma obscura universidade federal, é verdade, mas diploma é diploma, ainda mais num país onde qualquer um com um canudo é tratado por "doutor" -, não consigo resistir à tentação de também dar minha opinião sobre o assunto. Baseado em fatos, é bom que se diga, pois do contrário não faria jus ao meu diploma e não me distinguiria de qualquer pitaqueiro de boteco.
O que me chamou a atenção novamente para a questão foi um artigo da historiadora Denise Rollemberg, publicado na coletânea organizada por Jorge Ferreira e Daniel Aarão Reis, Revolução e Democracia, 1964... (Civilização Brasileira, 2007), último volume de uma trilogia sobre a história da esquerda no Brasil. Se o autor em questão fosse um Emir Sader ou um João Quartim de Moraes, eu nem me teria dado ao trabalho de analisar o texto. Mas, como se trata de uma autora que parece ter, pelo menos, o mérito da honestidade intelectual (recomendo, aliás, a leitura de O Apoio de Cuba à Luta Armada no Brasil, de sua autoria, publicado pela Mauad em 2001), e que, embora não esconda uma certa simpatia algo lírica pelo heroísmo e sacrifício pessoal dos guerrilheiros - afinal, ninguém é perfeito -, sempre procurou tratar dos movimentos armados de esquerda no Brasil dos anos 60 e 70 com isenção científica e espírito crítico, creio que algumas observações se fazem necessárias. No texto, logo após reconhecer, com as palavras do próprio líder guerrilheiro Carlos Mariguella, o caráter terrorista da luta armada ("Somos terroristas, assaltantes de bancos e subversivos"), Denise Rollemberg afirma o seguinte, à página 83:
"Na verdade, se pensarmos terrorismo como a prática de atentados à população civil e não exclusivamente a alvos específicos, identificados com as forças de coerção, as organizações e os líderes da esquerda armada, inclusive a ALN e Mariguella, não aderiram à proposta terrorista".
Há vários motivos para discordar da definição de terrorismo apresentada acima. Ei-los, enumerados de forma didática:
1) Segundo a definição de Denise Rollemberg, a repressão política praticada pelo regime militar brasileiro também não pode ser considerada terrorismo ("terrorismo de Estado", é a expressão geralmente usada por seus críticos), pois não visava a toda a população civil, mas exclusivamente a alvos específicos - a esquerda armada, primeiramente, e as esquerdas em geral, num momento posterior. Dura como foi, a repressão não interferiu no cotidiano ou na vida privada da totalidade dos cidadãos, limitando-se, mesmo após o AI-5, a cassar e caçar - literalmente - os subversivos. Nesse processo, houve abusos, prisões arbitrárias, torturas e assassinatos, mas em geral o conjunto da população não foi atingido. Pelo contrário: o grosso da população brasileira, em especial a classe média, estava muito satisfeita desfrutando as delícias do "milagre econômico" para se preocupar com democracia ou liberdade, muito menos com o combate impiedoso a um bando de guerrilheiros (estes, por sinal, fracassaram exatamente porque, entre outras razões, jamais conseguiram ganhar o apoio do povo, que lhes permaneceu ora hostil ou indiferente). A expressão "terrorismo de Estado", tão cara às esquerdas para classificar a repressão político-militar desse período no Brasil, estaria, assim, completamente injustificada.
2) O fato de visar a "alvos específicos, identificados com as forças de coerção", não retira da luta armada dos anos 60 e 70 seu caráter terrorista. Por dois motivos: a) as ações armadas, como expropriações, atentados à bomba e captura de diplomatas estrangeiros, não se restringiam a representantes do regime (no caso das chamadas expropriações, as vítimas eram muitas vezes simples transeuntes ou humildes vigias de banco; sem falar que os diplomatas capturados, mesmo que de países como os EUA, estavam longe de poderem ser considerados integrantes do aparato repressivo ou identificados com este); e b) mesmo que as ações fossem direcionadas a um alvo específico (por exemplo: o justiçamento de um agente da repressão), isso não excluía a possibilidade de vítimas civis inocentes, como de fato ocorreu (por exemplo: o atentado à bomba no aeroporto do Recife, em 25/07/1966, direcionado originalmente contra o então candidato à presidência, general Artur da Costa e Silva, do qual resultaram dois mortos e vários feridos). Além disso, não foram apenas representantes do regime ditatorial ou agentes policiais que foram mortos intencionalmente pelos guerrilheiros. A partir de um determinado momento, eles começaram a justiçar até mesmo companheiros de luta, a maioria das vezes por simples suspeita de traição, jamais comprovada (assunto até hoje considerado tabu para as esquerdas).
3) Finalmente, é bastante provável que os guerrilheiros, se tivessem conquistado o poder, teriam direcionado sua violência revolucionária para a eliminação física de grupos sociais inteiros, como a "burguesia" ou os "contra-revolucionários", instaurando um regime de terror e opressão sem precedentes na história do Brasil. Foi exatamente isso que ocorreu em todos - repito: todos - os regimes comunistas desde 1917, como o da ex-URSS e o de Cuba. Regimes que as guerrilhas no Brasil viam como modelo e inspiração (assim como fontes de apoio material e treinamento) e que pretendiam, em última instância, emular.
Além desses fatores, vale fazer a seguinte observação. No caso de Carlos Mariguella, fica clara uma concepção de luta armada revolucionária - como se depreende da leitura de seu mundialmente famoso Minimanual do Guerrilheiro Urbano, escrito em 1969 - que objetivava envolver o conjunto da população, mediante ações armadas que, ao espalharem o caos e provocarem a reação das forças da ordem e a intensificação da repressão - são palavras do próprio Minimanual -, visavam a antagonizar a sociedade com o regime. Os guerrilheiros desejavam mesmo o aumento e o endurecimento da repressão governamental, pois acreditavam, equivocadamente, que isso colocaria a população automaticamente contra as forças de segurança e, portanto, do lado dos revolucionários contra a ditadura. É impossível não considerar proposta semelhante como terrorista, um atentado à população civil.
Sabemos que, nos dias de hoje, os atentados de organizações como a ALN de Mariguella ou a VPR do capitão Lamarca empalidecem, em impacto e número de vítimas, diante do megaterrorismo e dos ataques suicidas de organizações como a Al Qaeda e o Hamas. Sabemos também que a definição de terrorismo é até hoje, e provavelmente continuará a sê-lo por muitos anos ainda, uma questão bastante controversa (basta lembrar que, para muita gente, os EUA e Israel são Estados terroristas, e Bin Laden e o Hezbollah são resistentes islâmicos). Mas nem por isso se deve esquecer o caráter terrorista da violência revolucionária dos anos 60 e 70 no Brasil. Não se trata de uma questão semântica ou matemática. Basta recordar que as relativamente poucas vítimas fatais da ditadura militar brasileira - pouco mais que trezentas, em 21 anos de autoritarismo - não o tornam, aos olhos da esquerda, menos cruel e assassina, ao passo que tiranias totalitárias como a de Fidel Castro em Cuba, cujo número de vítimas se conta aos milhares, continuam a ser objeto de fetiche e adoração pelas mesmas esquerdas "democráticas".
Fica claro pela tentativa acima citada de racionalizar o terrorismo de esquerda que, para os esquerdistas e seus simpatizantes, assim como há duas formas de ditaduras (as "boas", de esquerda, e as "más", de direita), há duas formas de terrorismo: o "do mal", reacionário e direitista, e o "do bem". O critério para definir cada um deles não é o número de vítimas, ou a quantidade de dor e morte infligida à população, mas única e simplesmente o fator ideológico. No dicionário da novilígua ("doublespeak") esquerdista, palavras como "terrorismo" e "genocídio" valem somente para se referir aos crimes dos quais ela, a esquerda, foi vítima um dia. Quanto aos mais de 100 milhões que ela exterminou, como não eram "de esquerda", não podem ser considerados "do bem". É difícil haver maior empulhação, maior canalhice, maior justificativa do terror e da barbárie.
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P.S.: Como o leitor atento deve ter percebido, as palavras colocadas em negrito são aquelas que constam do vocabulário esquerdista para classificar as ações da luta armada. Para quem não é ainda versado nessa novilíngua, apresento aqui um pequeno glossário, que espero ser bastante útil para facilitar a leitura: expropriação - assalto a banco; captura - seqüestro; justiçamento - assassinato. Ah, e guerrilheiro é terrorista mesmo, viu?
Um comentário:
Olá! Gostei do seu texto! Também sou aficionada por esse tema! Muito bom mesmo saber que se pode encontrar na net discussões sobre o tema que na minha opinião jamais deverá ser esquecido.
parabéns!
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