Ontem fez noventa anos da Revolução Russa de 1917, que levou os comunistas de Lênin, Trotsky e companhia (bolcheviques) ao poder. Atualmente, tal fato é, para a maioria das pessoas, algo tão distante e esotérico quanto a descoberta da América ou a construção das Pirâmides do Egito. Entretanto, segundo vários historiadores, tanto marxistas (como Eric Hobsbwan), quanto não-marxistas (como Paul Johnson e Richard Pipes), este foi o fato inaugural e definidor do século XX. Trata-se, certamente, de uma data que não pode ser esquecida, mas não como querem os partidos e grupos radicais de esquerda: não se trata de uma efeméride a ser celebrada, como o 14 de Julho ou o Dia da Independência, mas sim lembrada com horror e contrição, pelas suas conseqüências nefastas, assim como o Holocausto ou o 11 de Setembro.
É difícil acreditar que essa data - 7 de novembro no calendário ocidental, 24 de outubro no antigo calendário juliano russo (abolido após a Revolução) - era, até pouco tempo atrás (até 1991, para ser mais exato), comemorada com pompa e circunstância na hoje defunta União Soviética, com desfiles gigantescos de milhares de soldados do glorioso Exército Vermelho e a exibição das mais modernas armas que a outrora poderosa indústria bélica soviética poderia criar. Mais incrível ainda é que o Estado originado dessa revolução, já desaparecido, chegou um dia a dominar praticamente metade do globo terrestre, ao ponto de rivalizar com os EUA pelo domínio mundial. O mito do poderio soviético, cuidadosamente cultivado sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, conseguiu de fato enganar muita gente, até mesmo nas fileiras inimigas. Daí a surpresa que tomou conta de quase todo mundo, até mesmo da CIA, quando os regimes satélites da URSS começaram a cair um após o outro no Leste Europeu, em 1989. É que, por mais de sete décadas, o regime que os patrocinava se sustentava tão-somente numa eficiente máquina de propaganda, brilhantemente descrita por George Orwell em seu romance 1984 ("liberdade é escravidão, ignorância é força, guerra é paz"), e que encobria diligentemente a ineficiência e corrupção inerentes ao regime. A mentira, assim como o terror, era a base mesma do sistema comunista.
Mas o mais impressionante, o mais inacreditável, é que ainda hoje, dezoito anos após a queda do Muro de Berlim e dezesseis após o colapso da URSS, ainda há quem veja no comunismo, em qualquer uma de suas vertentes (soviética, chinesa, titoísta, castrista etc.), um ideal puro e generoso, que teria sido apenas deturpado pelos comunistas no poder. Daí a distinção, que ainda é feita em alguns círculos acadêmicos, entre "socialismo ideal" (o de Marx e Engels, e até mesmo de Lênin), e "socialismo real" (os regimes comunistas tal como existiram, com seu rosário de crimes e atrocidades de todo tipo). É uma forma ingênua ou bastante malandra de tentar tapar o sol com a peneira, a fim de preservar o cerne da ideologia marxista, em nome da qual, e por causa da qual, todos esses crimes foram cometidos. Como já escrevi antes aqui neste blog, houve uma época em que eu acreditei nessa conversa fiada, tendo sido durante algum tempo simpatizante de um grupelho trotskista. Os trotskistas, como se sabe, até hoje debatem entre si sobre o caráter verdadeiramente socialista ou não da ex-URSS, que Trotsky preferia classificar - depois de ter sido expulso por Stálin, claro - nem como um Estado operário "puro", nem como um país capitalista, mas como um "Estado operário burocraticamente degenerado". A crítica dos trotskistas à burocratização da vida soviética e aos crimes de Stálin era algo que, confesso, me atraía por seu aspecto dissidente (sempre gostei da idéia de discordar da maioria, de remar contra a maré; acho que é algo que está no meu sangue). Mas essa crítica logo diminuía de veemência e intensidade quando se tratava de analisar o grau de responsabilidade do próprio Trotsky - e também de Lênin - na construção desse Estado totalitário. Nesse momento, lembro bem, os trotskistas preferiam silenciar, ou então justificavam abertamente a repressão bolchevique aos camponeses ucranianos ou aos demais partidos de esquerda como algo necessário para defender a revolução. O mesmo argumento - "eram inimigos da revolução, era preciso defendê-la a todo custo" etc. - foi repetido por Stálin e Pol Pot, e é repetido até hoje por Fidel Castro.
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Hoje, depois de muitas outras leituras (para quem tiver estômago suficiente, recomendo o Livro Negro do Comunismo, organizado por Stéphane Courtois; os que estão dispostos a mergulhar fundo nas raízes da utopia comunista acharão interessantes os clássicos L'opium des intellectuels, de Raymond Aron, e O Passado de uma ilusão, de François Furet), percebo que Trotsky e Lênin foram tão responsáveis quanto Stálin e Mao Tsé-Tung pela catástrofe que se seguiu. Na verdade, é impossível dissociar o stalinismo - e o maoísmo, e o castrismo - do próprio pensamento e ação marxista-leninistas. Não foi Stálin, mas Lênin, o criador da polícia secreta, bem como dos campos de concentração (o Gulag, tão realisticamente descrito por Alexander Soljenitsin e Anne Applebaun). Assim como não foi Stálin o autor dos primeiros expurgos de dissidentes, nem tampouco o ideólogo da ditadura do partido único ou do terror revolucionário, do qual ele foi apenas um eficiente operador. Dizer o contrário seria, aliás, superdimensionar a capacidade e a inteligência do tirano georgiano, que seus adversários sempre consideraram bastante limitadas. Tudo isso - a própria essência do totalitarismo, tanto de esquerda quanto de direita - deve ser buscado em Lênin, não em seu discípulo Stálin. Se formos mais além, veremos as sementes da URSS já em Marx, com sua teoria da luta de classes e da ditadura do proletariado, e mesmo em Rousseau ou em Platão, que podem ser considerados com justiça os pais do totalitarismo. Quando os trotskistas e outros saudosistas da revolução negam o caráter socialista da ex-URSS, querendo manter viva a chama revolucionária, não fazem mais que usar um critério subjetivo, rejeitando o socialismo de que não gostam em favor daquele que gostam ou gostariam de ver implantado, em algum lugar, em algum país, quem sabe um dia. Aqueles que defendem, como solução para os problemas da humanidade, um retorno à suposta "pureza" dos ideais revolucionários originais, como se estes não tivessem nada a ver com o que veio depois, são como um cachorro correndo atrás do próprio rabo, girando em torno de si mesmos. Se há uma resposta para os males do mundo, se há um caminho capaz de democratizar as relações sociais e promover a felicidade para o maior número possível de pessoas, certamente não está em Marx ou em Lênin, mas na boa, velha e caluniada democracia liberal, a verdadeira revolução.
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De todas as revoluções ocorridas na história, a Revolução bolchevique na Rússia foi a mais funesta, a de conseqüências mais terríveis e sanguinárias para a humanidade. Não somente por ter inaugurado o regime político mais criminoso de todos os tempos, responsável por mais de 100 milhões de mortos em quase metade do mundo durante setenta anos, mas também por não ter deixado nada - absolutamente nada - que possa ser aproveitado para benefício da espécie humana. A Revolução Gloriosa de 1688 na Inglaterra legou-nos a tradição de respeito às liberdades fundamentais. A Revolução Norte-Americana (conhecida entre nós como "Guerra de Independência dos Estados Unidos", pois ainda achamos improvável que os EUA tenham sido palco de uma revolução) abriu o caminho para o fim do Antigo Sistema Colonial e a emancipação política dos países americanos, assim como lançou as bases da democracia constitucional moderna. A Revolução Francesa de 1789, em que pese o Terror jacobino, deixou para a posteridade o ideal de democracia e de respeito aos direitos do cidadão. Até mesmo as "revoluções" oligárquicas da América Latina no século XIX, refletidas na proclamação da independência das colônias luso-espanholas do continente, resultaram nos atuais Estados nacionais da região, do qual o Brasil é um exemplo. E a Revolução comunista de 1917, o que nos deixou de bom? Nada.
Feita para acabar com a desigualdade e a miséria, a Revolução Russa somente gerou opressão e miséria em escala colossal, nunca antes vista. Ouso dizer que, entre suas conseqüências, devem ser contabilizados também o nazismo e o fascismo, visto que essas ideologias totalitárias nada mais foram do que uma pantomima dos métodos de ação comunistas. Estou delirando? Então, dêem uma olhada na seguinte confissão, feita por ninguém menos do que Adolf Hitler em pessoa, em Hitler m'a dit, série de entrevistas publicada por Hermann Rauschning em 1939, em que o líder nazista candidamente confessa: "Não sou apenas o vencedor do marxismo, sou seu realizador. Aprendi muito com o marxismo e não pretendo escondê-lo. O que despertou interesse nos marxistas e me forneceu ensinamentos foram seus métodos. Eu, simplesmente, levei a sério o que essas mentes de pequenos comerciantes e secretárias haviam vislumbrado timidamente. Todo o nacional-socialismo lá está contido. Veja bem: os grêmios operários de ginástica, as células empreendedoras, os desfiles monumentais, os folhetos de propaganda redigidos em linguagem de fácil compreensão pelas massas. Esses novos métodos de luta política foram praticamente inventados pelos marxistas. Eu só precisei me apoderar deles e desenvolvê-los para conseguir assim os instrumentos de que necessitávamos."* E a coisa não pára por aí. Também na atualidade os frutos de setenta anos de domínio comunista se fazem sentir. Além de uma montanha de cadáveres, do temor da destruição nuclear e de guerras e rebeliões em diversos países do mundo, o saldo, nada positivo, do comunismo inclui um Estado russo atualmente enfraquecido, governado por uma súcia de mafiosos e ex-funcionários do regime comunista, inclusive ex-agentes da KGB (atual FSB), como o atual mandatário, Vladimir Putin, que não parecem ter abandonado os velhos métodos de eliminação de adversários políticos. E pior: montada num arsenal atômico, para preocupação dos que ainda se importam com coisas como segurança e democracia.
Há quem diga que a vitória dos bolcheviques na Rússia serviu como um alerta às classes dominantes dos países capitalistas, que trataram então de fazer algumas reformas sociais, a fim de impedir a eclosão de movimentos semelhantes. Até hoje, há vozes que sustentam esse disparate. Não é preciso muito esforço para perceber a falácia desse argumento: basta lembrar que as reformas sociais tão citadas como tendo sido um subproduto da Revolução comunista começaram a ser implementadas nos países capitalistas desenvolvidos, como Inglaterra e Alemanha, antes de 1917, e não depois. Sem falar que países tidos como paradigmas do welfare state, como a Suécia e a Noruega, são aqueles em que o movimento comunista sempre foi mais débil e marginal, sem força suficiente para provocar qualquer tipo de mudança social.
Passado tanto tempo do fim da Guerra Fria e da URSS, é comum ouvir que o comunismo morreu, do mesmo modo que, após 1945, tornou-se comum dizer que o nazismo estava morto. É preciso cuidado com esse tipo de proclamação otimista. Sabe-se que os nazistas foram derrotados na Segunda Guerra Mundial, mas nem por isso o nazismo, como ideologia política, pode ser considerado morto e enterrado (até mesmo em Israel, o lugar mais improvável para esse tipo de coisa, apareceu, alguns dias atrás, um bando de judeus neonazistas). Do mesmo modo, o comunismo morreu, mas nem tanto. Suas viúvas, órfãos e demais aparentados continuam por aí, defendendo suas bandeiras totalitárias, aproveitando-se das vantagens da democracia para preparar o golpe que irá destruí-la e a substituirá pela ditadura do proletariado. No momento, as viúvas do totalitarismo estão na ofensiva em países como Venezuela, Bolívia e Equador e estão organizadas, em escala continental, no Foro de São Paulo, cujo objetivo declarado é "recuperar, na América Latina, o que foi perdido na ex-URSS e nos demais países do Leste Europeu" (um dos fundadores do tal Foro é um barbudinho, presidente de um certo país sul-americano, que muitos juram de pés juntos ser um político "moderno" e "moderado"). Se não acordarmos logo para esse perigo real e iminente, estaremos na mesma situação que Kerensky, o líder democrata russo que assumiu o poder em fevereiro de 1917, apenas para ser enxotado em outubro, por aqueles mesmos que ele antes considerava aliados. Este é o destino dos tolos e inocentes úteis.
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* A quem interessar possa, eis outras declarações de Adolf Hitler que não deixam dúvida sobre a identidade essencial entre comunismo e nazismo:
"Eu aprendi muito com o Marxismo, como não hesito em admitir. A diferença entre eles e eu é que eu tenho posto em prática o que esses 'revolucionários teóricos' têm começado timidamente. Eu tive apenas de concluir logicamente que a Social-Democracia falhou repetidamente devido à sua tentativa de realizar a evolução dentro da estrutura democrática. O Nacional-Socialismo é o que o Marxismo poderia ter sido se ele tivesse quebrado suas ligações absurdas e artificiais com a ordem democrática." - Fonte: "The Ominous Parallels" (1982)
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"Há mais do que nos une ao Bolchevismo do que nos separa dele. Há, acima de tudo, um sentimento genuinamente revolucionário, que está vivo em todo o lugar na Rússia. Eu sempre considerei essa circunstância, e dei ordens para que ex-Comunistas sejam admitidos no Partido imediatamente. A pequena burguesia Social-Democrata e os sindicalistas nunca serão um Nacional-Socialista, mas o Comunista sempre será."
- Fonte: "The Ominous Parallels" (1982).
"Nós somos socialistas, nós somos inimigos do atual sistema econômico capitalista para a exploração dos economicamente fracos, com seus salários injustos, com sua indecorosa avaliação do ser humano de acordo com a riqueza e a propriedade em vez de sua responsabilidade e desempenho, e nós estamos todos determinados a destruir esse sistema sob todas as condições." - Primeiro de Maio de 1927
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"Que significa ainda a propriedade e que significam as rendas? Para que precisamos nós socializar os bancos e as fábricas? Nós socializamos os homens." - Fonte: "Hitler m'a dit" (1939)
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