quinta-feira, agosto 30, 2007

MEMÓRIA SELETIVA (OU: A HORA DA REVANCHE)


Em cerimônia oficial no Palácio do Planalto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou ontem, dia 29/08, um livro que relata, pormenizadoramente, centenas de casos de pessoas mortas, torturadas e desaparecidas durante os "anos de chumbo" da ditadura militar no Brasil. É a primeira vez que um governo brasileiro patrocina e dá seu selo oficial a uma publicação do gênero (há outros livros semelhantes, como Brasil: Nunca Mais e Dos Filhos deste Solo, mas nenhum deles com o carimbo de publicação oficial do Estado). Com o título pomposo - e enganoso - de Direito à Memória e à Verdade, o cartapácio de 500 páginas, nas palavras do presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça, Marco Antônio Rodrigues Barbosa, "significa o resgate da memória, da verdade e, portanto, da justiça, sem revanchismo”.“O livro contribui para a consolidação do respeito aos Direitos Humanos no Brasil”, ressaltou o ministro da Secretaria Especial de Ditreitos Humanos, Paulo Vannuchi - organizador da publicação.

Em seu discurso na cerimônia de lançamento do livro, o Ministro da Defesa, Nelson Jobim, reiterou que tal iniciativa não significa revanchismo, mas justiça, não implicando, portanto, nenhuma revisão da Lei de Anistia de 1979, que, em nome da reconciliação nacional, perdoou os delitos de ambos os lados. Por coincidência, no mesmo dia, em artigo publicado na Folha de S. Paulo, Frei Betto - crítico implacável dos crimes da ditadura militar brasileira, mas não da de seu amigo Fidel Castro -, ao comentar o assunto, escreveu que a nação "tem o direito de resgatar a sua memória e corrigir aberrações jurídicas como a 'anistia recíproca' do governo Figueiredo". Fiquei intrigado. Em quem devo confiar, em Nelson Jobim ou em Frei Betto?

Não há dúvida de que a publicação do livro pode ter qualquer outra finalidade, menos "resgatar a memória e a verdade", como afirmam os porta-vozes do governo, sobre os anos do arbítrio militar e do terrorismo no Brasil. Quem tiver interesse em saber o que houve, poderá encontrar à sua disposição uma vasta bibliografia (recomendo, a propósito, Combate nas Trevas, de Jacob Gorender, e a série de quatro livros de Elio Gaspari). Visa, isto sim, a preparar o terreno para a revanche dos "vencidos" sobre os "vencedores" de 1964. Prova disso é o próprio conteúdo do livro, que reúne somente os casos das vítimas da repressão política, muitas das quais militantes de organizações armadas mortos em confronto com órgãos de segurança policiais e militares. Se o objetivo de seus autores fosse mesmo o de "resgatar a memória e a verdade" sobre o período, não se limitariam a mostrar apenas um lado da questão, adotando, como critério, a seletividade por afinidade ideológica. Daí as palavras de Frei Betto, que traem uma inequívoca intenção revanchista. A mensagem é a seguinte: "Vocês, militares, perdoaram nossos crimes, mas nós não perdoamos os crimes de vocês. Queremos que todos se recordem do que vocês fizeram, mas não do que nós fizemos. Podem botar as barbas de molho".

Para ser um registro histórico honesto dos "anos de chumbo" no Brasil, o livro organizado pelo governo federal - um documento oficial, portanto - deveria conter também os relatos das mortes de cerca de 100 pessoas que foram vítimas da esquerda armada após 1964. Deveria tratar de TODOS os casos, de forma imparcial e não-seletiva. Por que a morte de militantes de esquerda, muitos dos quais praticaram atos terroristas como assassinatos, assaltos e seqüestros, deve ter um tratamento diferenciado e especial, a ponto de merecer um livro com a assinatura do governo federal? Por que, em uma obra que se propõe a "resgatar a memória dos anos de chumbo", simplesmente "esqueceu-se" de mencionar os casos de brasileiros que caíram vitimados pelas balas e bombas da esquerda radical? Onde está uma referência ao almirante Nelson Fernandes e ao jornalista Édson Régis, mortos em atentado à bomba no aeroporto de Recife, em 1966? Ou ao soldado Mário Kozel Filho, estraçalhado por um carro-bomba lançado por terroristas de esquerda no QG do II Exército, em São Paulo (ambos atentados ocorridos antes do AI-5, brandido até hoje pelos apologistas da luta armada como justificativa para o terror de esquerda)? Ou ao tenente da PM/SP Alberto Mendes Jr., que teve o crânio arrebentado a coronhadas de fuzil, depois de ter sido rendido, pelo bando do ex-capitão Carlos Lamarca (um dos "heróis" da turma que está hoje no Palácio do Planalto, e cuja família foi recentemente premiada com uma gorda pensão de general promovido postumamente)? Acaso os familiares das vítimas do terrorismo no Brasil não têm o direito de prantear seus mortos? Só os parentes dos mortos de "esquerda" podem fazê-lo? É preciso ter agora atestado de filiação ideológica para isso?

Até mesmo entre a própria esquerda há casos de gente assassinada por seus próprios companheiros de luta "contra a ditadura", e cujos parentes até hoje esperam uma palavra do Estado a respeito. É o caso, por exemplo, de Márcio Leite de Toledo, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) abatido a tiros por seus próprios companheiros ("justiçado", era a palavra que usavam na epoca), numa disputa de poder dentro da própria organização, em 1971. Ou de Ari da Rocha Miranda, morto durante assalto a banco pela arma de um membro da mesma organização, e cujo cadáver até hoje está desaparecido (o que mostra que os desaparecimentos não são exclusividade das forças da repressão política). Há vários outros casos do tipo - um deles, na chamada Guerrilha do Araguaia, realmente surreal, em que um militante foi executado por seus pares pelo gravíssimo crime de... adultério (!) Quando poderemos ler, em alguma publicação oficial sobre os anos de chumbo no Brasil, os nomes dessas pessoas?

Por coincidência, na mesma semana em que o livro foi lançado, leio no site oficial do PT um "manifesto de intelectuais" contra o filósofo Olavo de Carvalho, que em artigos publicados em jornais teve a audácia de chamar de assassino o professor de Filosofia da Unicamp João Carlos Kfouri Quartim de Moraes. Quartim de Moraes era um dos dirigentes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e, como tal, foi condenado em 1977 por ter participado de reuniões em que se planejou o assassinato ("justiçamento") do capitão do exército dos EUA Charles R. Chandler, metralhado por um comando da VPR e da ALN em São Paulo, em 12/10/1968. O site petista, que chama Olavo de Carvalho, entre outros adjetivos gentis, de "ideólogo da direita" e "disiquilibrado"(assim mesmo, com "i", o que retira qualquer dúvida de que se trata mesmo de um site feito por petistas), toma as dores de Quartim de Moraes, mas não refuta nenhuma das acusações do filósofo. O próprio professor Quartim de Moraes, aliás, em entrevista também no site do PT (que, para quem já se esqueceu, é o partido de Sua Excelência, o Senhor Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva), assim se refere à morte do capitão Chandler:

"A ação foi correta? Estávamos sob um regime de exceção, instaurado pelo golpe contra-revolucionário de 1964. Perante esse ato de força imposto ao povo brasileiro, a resistência invocava o antiqüíssimo direito de rebelião contra a tirania, contrapondo a violência revolucionária à violência reacionária. O militar estadunidense era veterano do Vietnã e tinha vindo para cá para "cooperar" com os serviços policiais da ditadura. Isso justifica a decisão de matá-lo? Hoje, quase quarenta anos depois do episódio, a tendência é dizer que não. Mas a morte está na lógica dos confrontos armados." (grifo meu)

Tudo muito bonito, se não fosse um pequeno detalhe: não há qualquer prova de que Chandler tenha vindo ao Brasil para "cooperar" com os serviços policiais da ditadura, como afirma o professor Quartim de Moraes. Ele foi morto, na frente de sua famíia, por um único "crime": era militar e era norte-americano. Somente isso, única e exclusivamente. Se têm alguma dúvida, leiam os livros de Elio Gaspari, em especial A Ditadura Escancarada, que escancara (sem trocadilho) esse e outros crimes da esquerda, os quais, nas palavras do professor, "estão na lógica dos confrontos armados" (curiosamente, os torturadores do DOPS e do DOI-CODI diziam a mesma coisa para justificar sua atividade macabra - afinal, era uma guerra, diziam, e em guerras pessoas morrem...).

Sem querer, o professor Quartim de Moraes, um ex-militante da esquerda armada e admirador declarado de Stálin (cliquem aqui e vejam: http://www.revan.com.br/catalogo/0269c.htm), ao tentar desqualificar o acusador, mas não a acusação, acabou assumindo-a tacitamente. Isso revela bastante acerca da mentalidade da turma que se arvorou o direito de escrever a versão "oficial" dos acontecimentos de 1964-1985 no Brasil: com a mesma paixão e veemência que condenam os crimes da ditadura (que, é bom repetir, foram terríveis e não devem ser esquecidos), tratam de esconder ou de minimizar os seus próprios, a ponto de reagirem furiosamente quando alguém de fora de suas fileiras chama um assassino, membro de sua grei, de assassino, tentando compensar, pelo número de assinaturas em um manifesto, a ausência de argumentos sólidos em favor de sua inocência. Mais uma vez, confirma-se o adágio romano: Asinus asinum fricat.

Não há dúvida de que muitas das famílias de mortos e desaparecidos políticos merecem ser indenizadas pela tortura e assassinato de seus entes queridos nas mãos de agentes do Estado durante o regime militar. Mas o mesmo não pode ser dito de muitos que pegaram em armas voluntariamente contra o Estado brasileiro, e que morreram em combate - não para restabelecer a democracia, para restaurar a legalidade constitucional, mas para implantar, aqui, um regime totalitário, semelhante ao que vigora em Cuba há quase meio século. Com armas na mão e esse objetivo em mente, muitos foram perseguidos, presos e torturados, mas também assaltaram bancos, seqüestraram, mataram. E não vitimaram somente meganhas e conhecidos torturadores, mas pessoas inocentes como o capitão Chandler e até alguns militantes que ousaram questionar os métodos de luta, como Márcio Leite de Toledo. A luta armada não foi um gesto romântico de resistência de democratas e amantes da liberdade contra um regime tirânico, ou o resultado desesperado, como se tornou costume dizer, da inexistência de um caminho pacífico de oposição à ditadura (até porque nem todos que se organizaram contra o regime militar o fizeram pela via do enfrentamento armado). Foi uma decisão consciente, que remonta mesmo ao período anterior a 1964, de grupos extremistas no sentido de tomar o poder pela força e transformar o Brasil numa espécie de ditadura revolucionária. Um dos que enveredaram por esse caminho de sangue e terror foi o professor Quartim de Moraes, que agora, de forma covarde, se recusa a admitir o que fez no passado. Para essas pessoas, pedir que se fale sobre os crimes dos dois lados é extremismo de direita.

No prefácio do livro lançado pelo governo Lula, há um trecho que diz que agentes do Estado que praticaram assassinatos e deram sumiço aos corpos de suas vítimas, e que sabem da localização dos cadáveres e não apontam onde estão, continuam a praticar um delito. Sendo isso verdade, os assassinos que se recusam a admitir seus crimes, como João Quartim de Moraes, também são passíveis de condenação. Nesse caso, cometeram um crime não somente contra as vitimas, mas contra a História.

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