quinta-feira, agosto 16, 2007

INOCENTES ÚTEIS


É ilimitada a capacidade do ser humano para o engano e o auto-engano. A cada dia me convenço mais e mais disso. Principalmente quando leio algo na imprensa, como o artigo de hoje, 16/08, da Folha de S. Paulo (edição eletrônica), assinado por Hélio Schwartsman, editorialista do jornal.

À primeira vista, o texto, intitulado "A Ilha", é uma crítica ao regime ditatorial de Fidel Castro em Cuba, bem como à decisão precipitada do governo Lula de entregar ao ditador cubano dois pugilistas, Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, que haviam fugido da vila olímpica (ao que parece, para curtir uma noitada com umas garotas de programa). Uma leitura mais atenta, porém, demonstra exatamente o contrário, isto é, que não se trata de uma crítica, mas de um elogio disfarçado da ditadura de Fidel.

A primeira coisa que me chamou a atenção no texto é o tom, quase de espanto, com que o autor se refere ao episódio dos dois boxeadores. Escreve Schwartsman, com ares de quem acabou de descobrir a pólvora: "O simples fato de os atletas não poderem sair do país com suas famílias à hora que bem entenderem para viver - e trabalhar - onde lhes pareça melhor já demonstra que há algo de muito errado por lá". Brilhante dedução! Fica-se com a impressão de que somente agora, 48 anos depois da tomada do poder por Fidel e seus barbudos, alguém percebeu o óbvio: o que impera na ilha caribenha é uma ditadura. É a mesma impressão que tive depois de ver o escritor português José Saramago anunciar, em 2003, que estava rompendo com a ditadura cubana, depois de mais de quarenta anos de apoio incondicional, por causa do fuzilamento de três pessoas que tentaram fugir da ilha, descobrindo, somente então, que Fidel Castro é um ditador (pouco depois Saramago voltou atrás, recaindo em seu delirium totalitarium). A questão que fica é: não se sabia disso antes? Será preciso ocorrerem fatos como a quase-deserção dos dois pugilistas para perceber que "há algo de muito errado por lá"?

Após essa constatação, mais que evidente, e algumas críticas protocolares à atitude do governo Lula ("só o que censuro ao Ministério da Justiça é a celeridade que imprimiu à operação de repatriamento, que contrasta com outros casos" - ou seja, o fato de terem sido entregues de bandeja ao ditador não entra em questão, mas apenas a pressa com que isso foi feito), o autor entra no cerne da questão: "Embora alguns lapidares do governo de Luiz Inácio Lula da Silva ainda insistam em descrever Cuba como uma democracia popular, não há muita dúvida de que aquilo seja uma ditadura, ainda que não das mais selvagens" (grifo meu).

Aí é que está. Ao mesmo tempo em que busca tomar distância dos companheiros lulistas, discordando, por exemplo, de que Cuba seria uma "democracia popular", o autor trata de matizar o caráter ditatorial do regime castrista. Para ele, não há muita dúvida de que o regime cubano é uma ditadura, mas não "das mais selvagens". Ou seja: é uma ditadurazinha, uma ditadura não tão má, branda (um "regime forte" como gostavam de dizer os defensores do regime militar no Brasil...). Talvez seja necessário recordar alguns fatos básicos: em Cuba vigora há quase meio século uma ditadura de partido único, com polícia política, paredón, censura, 2 milhões de exilados (numa população total de 11 milhões), milhares de pessoas mortas afogadas tentando fugir do país, escassez de quase tudo e culto da personalidade. Se isso não é uma ditadura das mais selvagens, não sei o que é.

Prossegue o editorialista da Folha: "Se Cuba não fosse uma ditadura, os boxeadores nem precisariam ter se dado ao trabalho de bolar uma fuga. Daí não se segue que estejamos diante de um regime tão sanguinário como o de Saddam Hussein ou de alguns tiranetes africanos". (Lógica perfeita! Significa que, porque Fidel não massacrou milhares com gás mostarda como fez Saddam com os curdos, nem devorou pessoalmente seus adversários como Idi Amin, devemos manter sempre uma postura reverente em relação ao tirano do Caribe). Além disso, "Rigondeaux e Lara deverão comer o pão que o diabo amassou, mas é improvável que venham a ser torturados e fuzilados" (grifos meus). Por que improvável? Mais de 17 mil pessoas, ao que consta, já sofreram esse destino "improvável" em Cuba desde 1959. Mas deixa pra lá: afinal, como diz Schwartsman, Cuba é apenas uma ditadurazinha camarada. Uma ditadura boa, quem sabe.

Ainda nessa linha, Schwartsman afirma o seguinte: "o fato de o regime cubano não ser especialmente homicida não basta para justificar seu autoritarismo, mormente porque ele é totalmente desnecessário no que diz respeito aos dois ou três sucessos que a revolução cubana logrou obter". Segundo o autor dessas palavras, o fato de uma ditadura matar milhares, praticar a tortura, física e psicológica, e outras atrocidades não a torna "especialmente homicida". Ainda mais quando a ditadura em questão alcançou "dois ou três sucessos" na área social. É isso o que fica claro da leitura do seguinte parágrafo:

"Por mais que deploremos as práticas de Fidel, é forçoso reconhecer que ele fez um bom trabalho em saúde e educação. É claro que a Universidade de La Habana não compete com Harvard ou Oxford, mas praticamente todos os cubanos sabem ler e escrever e freqüentam a escola básica, o que não é regra no Caribe e mesmo em algumas nações bem mais ricas. Já no campo sanitário, os indicadores básicos de Cuba, se não muito manipulados, são melhores até que o de algumas regiões dos EUA. (...) Só que conseguir essas notáveis realizações de modo algum implica manter boxeadores ou escritores contra sua vontade no país".

A afirmação de que o tirano cubano "fez um bom trabalho em saúde e educação" só se justifica por uma visão herdada de anos de distorsão da verdade e propaganda ideológica. Já me referi, em outro texto (ver "O Trambique do Século", neste blog), às estatísticas, inclusive em saúde e educação, de Cuba antes de 1959. Também já mencionei o detalhe de que a tão proclamada qualidade da educação cubana, onde Fidel teria realizado "um bom trabalho" segundo Schwartsman, é uma grande farsa, pois não se pode conceber uma educação de qualidade onde não se pode ler o que se quer, assim como em qualquer outra "democracia popular" onde também não havia analfabetismo, como a ex-URSS e os Estados comunistas do Leste Europeu. O que pessoas como Hélio Schwartsman ainda não compreenderam é que regimes totalitários, como o de Cuba, dão bastante valor à educação, mas como um mecanismo de controle mental, de thought control. Seria preciso ser um idiota completo para acreditar que uma educação de nível pode conviver com a censura. Como seria preciso ser totalmente cego e surdo para a realidade para crer que os indicadores básicos de Cuba no campo sanitário são mesmo tão bons como dizem, tendo em vista que em Cuba falta de tudo, inclusive alimento (é possível ter uma população altamente saudável e subalimentada? Se isso for possível, Cuba é um caso único na História).

Ao dizer que supostas conquistas sociais não podem ser utilizadas para justificar um regime ditatorial, e que não são necessariamente consequência deste, Hélio Schwartsman está coberto de razão. Ao considerar como verdadeiro o velho clichê de que a ditadura cubana alançou altos níveis em saúde e educação, porém, ele revela, no mínimo, falta de conhecimento histórico ou vontade de lisonjear um ditador. Como não conheço Hélio Schwartsman, prefiro ficar com a primeira opção.
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Essa falta de conhecimento da História de Cuba fica patente na seguinte afirmação: "Vale lembrar que, de início, Fidel Castro não era um líder marxista. Após derrubar a ditadura pró-americana de Fulgencio Batista, em 1959, Fidel não tinha planos de instalar o comunismo. Foi a acentuada pressão de Washington para depor Fidel que o acabou empurrando para os braços da então existente União Soviética". Retoma-se aqui outro velho clichê, o de que Cuba foi empurrada para o comunismo por culpa de Washington, o qual não leva em conta o fato de que a comunização de Cuba é anterior a qualquer movimento da CIA e do Departamento de Estado para derrubar Fidel Castro. Não foi a "acentuada pressão" dos EUA que levou Cuba a abraçar o comunismo, mas sim Fidel Castro que manipulou a disputa entre as duas superpotências para impor seu reino de terror pessoal (ver novamente meu texto "O Trambique do Século", já mencionado).

É curioso que aqueles que ousam apontar os altos índices de crescimento econômico durante as ditaduras militares no Brasil ou no Chile são imediatamente tachados de simpatizantes desses regimes. O mesmo não ocorre com quem repete batidos chavões sobre saúde e educação em Cuba. Hitler acabou com o desemprego na Alemanha e Mussolini fez os trens chegarem na hora, e no entanto não se vê ninguém que se diz democrata lembrar esses fatos sobre as tiranias nazista e fascista para dizer que fizeram "um bom trabalho". Já os que se deixaram seduzir pela ditadura cubana, a ponto de buscar minimizar seu caráter totalitário com base em supostos "avanços sociais", enquanto fingem horror pelas repetidas violações aos direitos humanos, contam-se aos milhares. Com a diferença de que, no caso dos regimes militares brasileiro e chileno, assim como no nazista e fascista, pode-se dizer que essas conquistas foram reais, e não mero produto de falsificação histórica e propaganda ideológica. Ao contrário de Cuba, uma ditadura totalitária que só gerou opressão e pobreza.

Aqueles que conhecem de perto o que é o totalitarismo, como alguns ex-militantes comunistas arrependidos, são em geral seus críticos mais lúcidos e severos. Já os que não sabem do que se trata, os "companheiros de viagem" ou inocentes úteis, como Hélio Schwartsman, sempre encontrarão nele algo de bom e louvável. Mesmo quando parecem criticar regimes tirânicos, acabam, na verdade, servindo como seus porta-vozes.
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Artigo interessante:
"Lula, o senhor de escravos" - Carlos Alberto Montaner

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