sábado, novembro 05, 2011

DEMOCRACIA É PARA GENTE GRANDE

"E, de tanto ler livros de cavalaria, perdeu o juízo". (Dom Quixote)

Estou me divertindo bastante com os comentários que um certo Diogo Dias encasquetou de fazer no blog. Ele acha que a democracia não presta. Mais que isso: acredita que, ao dizer coisas como "cara, não acredito na democracia" e "com certeza, o Estado-Leviatã é melhor", ele estaria emitindo uma opinião que não tem nada a ver com a defesa de um regime político ditatorial. E, para justificar esse seu ponto de vista, ele cita, logo depois de Hobbes, Platão.

Na minha época de professor, deparei com alguns tipos assim. São os chamados ignorantes soberbos - acreditam que, por terem lido um autor (ou a orelha de um livro sobre um determinado autor), são superiores aos demais alunos, que não leram nada. Até aí, tudo bem. O problema é que não raro eles acham que encontraram a chave para a solução dos problemas da humanidade. Não raro, tropeçam no próprio autor, que citam como se fosse o Quinto Evangelho, caindo numa confusão dos diabos. Mas não perdem a pose. Talvez por vaidade. Certamente, por infantilismo.

É o caso do Diogo. Em seu último comentário, ele escreveu o seguinte:

Falta de senso crítico é não ler as obras com atenção. Se você for até a passagem em questão da República de Platão, verá que ele está falando da virada da democracia para a tirania."A liberdade em excesso, portanto, não conduz a mais nada que não seja a escravatura em excesso, quer para o indivíduo, quer para o Estado".

Logo abaixo ele continua: "É natural, portanto, que a tirania não se estabeleça a partir de nenhuma outra forma de governo que não seja a democracia, e, julgo eu, que do cúmulo da liberdade é que surge a mais completa e mais selvagem das escravaturas"(Platão, República, 564a)

É só ler o livro 8 da República com atenção que você poderá comprovar isso que foi citado e muito mais sobre o que ele fala com relação a democracia e a tirania.

O que está acima (há mais no comentário, mas nem vale a pena responder) comprovou minha suspeita de que é inútil tentar argumentar com alguém como o Diogo. Quem cita autores como Platão ao pé da letra para tentar justificar uma opinião contrária à democracia representativa atual - ainda mais com um argumento bucéfalo, que liga democracia à corrupção no governo - está além do alcance de qualquer razão. Pessoas assim não precisam de aulas de Política. Precisam de aulas de Lógica (ou então trocar o remédio).

Como eu disse antes, os trechos acima são um exemplo de uma forma preguiçosa de pensar. É o mesmo mecanismo mental que move os fanáticos políticos e os fundamentalistas religiosos. Para uns, é a Bíblia ou o Corão; para outros, é O Capital - ou A República.

Do mesmo modo que um crente fervoroso acredita que basta aplicar o que está nas Sagradas Escrituras para que todos vivam felizes e em comunhão, há quem acredite que basta aplicar o que está em tal ou qual autor para que tenhamos um mundo ideal, de ordem e tranquilidade. E não importa, para essas pessoas, que os autores em questão tenham vivido num mundo que desconhecia a existência das galáxias e da luz elétrica, 2.500 anos atrás... Do mesmo modo que não importa que existam passagens no Antigo Testamento que defendem, por exemplo, o apedrejamento de adúlteras. Está no livro? Então basta aplicar (ou "basta ler")...

Trata-se, além de uma expressão de preguiça intelectual, de um anacronismo, uma tentativa de interpretar conceitos e idéias fora do contexto histórico em que elas surgiram. Não é preciso ser um especialista para perceber que a democracia de que falava Platão e da qual ele desconfiava não é, evidentemente, a mesma democracia em que vivemos. Não é a democracia em que todos os cidadãos são considerados e tratados como iguais perante a lei, em que vigora a liberdade de opinião e a tripartição de poderes. Não é, enfim, a democracia de 2011, mas a de Atenas em 380 a.C. Tampouco a tirania de que ele fala tem o mesmo significado da que tem no século XXI. Acredito que não preciso explicar por quê.

Isso, claro, não tem a menor importância para mentes como a do Diogo. Para pessoas como ele, democracia e tirania (para não falar em conceitos como totalitarismo) não são coisas reais, mas simples categorias abstratas, idéias retiradas de um livro de Platão ou de Hobbes. Não fazem parte da realidade, nem da História, mas apenas de um debate acadêmico. Tanto que ele chegou mesmo a me desafiar a "derrubar" a teoria hobbesiana sobre o Estado. Como se "derrubar" uma teoria política fosse algo possível, assim como derrubar uns pinos numa partida de boliche...

Diogo não acredita na democracia, nem na de ontem, nem na de hoje. Eu acredito. Mais que isso: acredito que qualquer coisa que não seja a defesa da liberdade individual é um flerte com o totalitarismo, a pior forma de tirania (por exemplo: insinuar uma suposta relação causal entre a democracia e a corrupção, um argumento - repito - bucéfalo). Também acredito que pinçar trechos da obra de qualquer autor e tomá-los como a Verdade Revelada é típico de quem intelectualmente ainda não saiu das fraldas. É coisa de quem tem preguiça de pensar, para dizer o mínimo.

Platão e Hobbes são autores importantes demais para serem seqüestrados por mentes que nem sabem o que desprezam. Já afirmei, teorias são apenas isso: teorias. O que não significa, claro, que não sejam coisas perigosas. Como tal, não deveriam ficar ao alcance de mentes imaturas, tomadas de afã dogmático (e que nem sabem o que isso significa).

O mais engraçado é que o próprio Platão menosprezava os livros, preferindo a uma cultura livresca o método socrático do diálogo. Mas acredito que até isso nosso amigo desconheça. O que é mais uma razão para afirmar que se trata de mais um ignorante soberbo, orgulhoso da própria ignorância.

Como eu disse antes, até poderia ficar aqui discutindo a teoria do contrato social de Hobbes ou debatendo o que Platão quis dizer, frase por frase. Mas não vejo por que fazê-lo, diante de alguém que acredita que ele escreveu A República para defender regimes como a ditadura castrocomunista em Cuba...

Tenho uma sugestão ao MEC: na capa de livros de clássicos da Ciência Polîtica seria bom colocar um aviso - "não recomendável para crianças e débeis mentais". Aí estão comentários como o do leitor acima para explicar por quê. Democracia, assim como os filmes pornô, é para adultos.

Um comentário:

Diogo Dias disse...

Como já disse no meu comentário anterior (e que você não colocou por preguiça ou alguma má intenção), Platão era contra a tirania (leia o livro TODO e saberá).

Portanto, ao contrário do que você disse, NÃO ME UTILIZO DA "República para defender regimes como a ditadura castrocomunista em Cuba..." MUITO PELO CONTRÁRIO, SOU CONTRA A DITADURA (TIRANIA).