Platão: alguém precisa defendê-lo dos que o citam
Que tal trocar eleições livres, alternância de poder e liberdade de expressão por partido único, censura e repressão política?
Que tal substituir conquistas democráticas que custaram sangue, suor e lagrimas por um Estado-Leviatã todo-poderoso, eliminando as liberdades individuais, em nome, sei lá, de mais segurança?
Que tal escolher viver, em vez de numa sociedade democrática, onde todos podem ascender socialmente e participar dos destinos do país, em uma sociedade organizada como uma colméia ou um formigueiro, dividida em castas?
Que tal renunciar voluntariamente ao status de cidadão para se tornar súdito de um governo totalitário, dominado por uma elite de iluminados, a que seria vedado, para se dedicarem exclusivamente à função de decidir o que é melhor pata todos, o direito à família e à propriedade?
Então, que tal?
É, eu tambem achei uma péssima idéia.
Mas há quem acredite que isso vale a pena. Um leitor chamado Diogo, por exemplo, botou na cachola que a opção acima – uma sociedade rigidamente hierarquizada, em que os direitos individuais seriam inexistentes e todos teriam as vidas tuteladas pelo Estado – é muito superior à democracia representativa. Por quê? Primeiro, porque a democracia seria uma bagunça (ou, como ele diz: um "oba-oba do caralho"); segundo, porque assim diziam Hobbes e Platão, ora!
Já escrevi sobre o dano que pode causar a cérebros adolescentes uma leitura dogmática e superficial dos clássicos. É algo que deveria, a meu ver, ser proibido a crianças e a idiotas. Lembrei agora de um caso que presenciei há alguns anos: certa vez, em uma palestra na universidade em que me formei, uma aluna do primeiro ano de Direito pediu a palavra e perguntou aos palestrantes por que não adotávamos o direito consuetudinário, tal como ocorre na Inglaterra. Provavelmente fascinada pela palavra – como soa bem, “consuetudinário” –, que ela, provavelmente, tinha acabado de ler ou ouvir pela primeira vez, ela parecia acreditar que este seria um modelo superior ao nosso Direito de inspiração romana, o caminho ideal para a solu;ão de todos os nossos problemas jurídicos. Isso foi até um dos professores presentes lembrar, meio constrangido, que não era possível um país adotar, por decreto, o Direito consuetudinário, pois este se caracteriza justamente por ser… consuetudinário, ou seja, baseado nos costumes, e não nas leis…
Lembrei dessa história ao ver a forma como o leitor se apega a Hobbes e a Platão. Principalmente ao vê-lo negar, com veemência, que seu elogio da república platônica signifique defender ditaduras. Basta ler A República, ele diz. Vou dar um pouquinho mais de atenção a ele:
Como já disse no meu comentário anterior (e que você não colocou por preguiça ou alguma má intenção), Platão era contra a tirania (leia o livro TODO e saberá).
Portanto, ao contrário do que você disse, NÃO ME UTILIZO DA "República para defender regimes como a ditadura castrocomunista em Cuba..." MUITO PELO CONTRÁRIO, SOU CONTRA A DITADURA (TIRANIA).
Hummm.... Será? Então vejamos.
Em primeiro lugar, vamos lembrar: a democracia é - felizmente - um sistema imperfeito. Por que digo "felizmente"? Porque sempre que alguém tentou impor a perfeição aos negócios humanos, sobretudo à política, o resultado foi uma pilha de cadáveres. A tendência a viver na irrealidade e em criar mundos onde tudo seria perfeito tem sido a causa de algumas das maiores tragédias da História da humanidade. Aí estão Hitler e Stálin, para dar apenas os dois exemplos mais conhecidos no século XX. Essa tendência se encontra em Platão, particularmente em A República, assim como em Hobbes, em Thomas More, em Tomás Campanella. E, é claro, em Marx e Lênin, servindo de justificativa filosófica para regimes totalitários.
Obviamente, nem Platão nem Hobbes estavam pensando em tais regimes quando elaboraram suas doutrinas, e isso só leva à conclusão de que propor sua aplicação literal na realidade de hoje é um anacronismo fruto de mentes fantasiosas e irrealistas. O fato de a democracia ser imperfeita leva cérebros dogmáticos e juvenis a tentar implantar, de forma acrítica e mecanicista, tal ou qual teoria redentora e salvacionista. O resultado desse tipo de engenharia social, não é preciso ser um especialista para perceber, só pode ser desastroso.
"Ah, mas eu sou contra a ditadura (tirania)", diz o leitor. Eu não duvido que ele seja contra a tirania tal como Platão a via, assim como não duvido que ele seja contra a democracia ateniense do século IV a.C. O problema, que pelo visto ele ainda não percebeu, é que tanto democracia quanto tirania são conceitos que significavam uma coisa na época de Platão, e outra coisa completamente diferente hoje, 2.300 anos depois. A democracia criticada pelo filósofo era um regime escravista, no qual dez mil cidadãos livres escolhiam diretamente as autoridades da pólis. Hoje, há de se convir, as coisas são um tanto diferentes. O mesmo ocorre com tirania – e com ditadura (uma criação, aliás, romana, e não grega). Dizer-se contra a democracia hoje, em 2011 d.C., só pode significar, portanto, duas coisas: ou a defesa da anarquia (o que não é o caso do leitor) ou da ditadura (autoritária ou totalitária). É colocar-se, portanto, a favor de regimes como os de Cuba ou da Coréia do Norte.
É possível que Platão estivesse certo ao desconfiar da cidade-Estado de seu tempo, em particular da democracia ateniense, que considerava decadente e que condenou seu mestre Sócrates a beber cicuta. Mas daí a imaginar que sua teoria da comunidade ideal seja viável hoje em dia – mais: que seja preferível à democracia moderna – é de uma ingenuidade dogmática que beira a insanidade. Corresponde a tentar substituir a química pela alquimia, ou os carros a motor pela carroça de burros. Não é por acaso que do nome de Platão veio o adjetivo platônico – no sentido em que entrou para o vulgo, como sinônimo de utópico ou irrealizável. Ler Platão com as categorias da atualidade é coisa de quem ainda está sujando as fraldas em termos intelectuais. O mesmo vale para Hobbes, que em vida era tratado como um excêntrico, assim como para qualquer outro autor.
Do mesmo modo, também é verdade que Platão era contra a tirania, que via como o resultado da distorsão da democracia (a "excessiva liberdade", de que fala o leitor, que a identifica, de forma bucéfala, com a corrupção dos petralhas), e que identificava como o predominio de interesses individuais sobre o interesse coletivo etc. Daí sua preferência por um regime de tipo aristocrático, guiado pela sabedoria dos reis-filósofos. Numa leitura superficial e dogmática, isso significaria que a democracia seria um regime inferior, e que a melhor maneira de evitar a tirania seria alguma forma de regime autoritário coletivista. Menos por um detalhe: isso era no século IV a.C...
Viu, caro leitor? Não era preguiça minha, não, tampouco má intenção. É só bom senso, mesmo. Algo difícil de achar em ignorantes soberbos. Sem isso, de nada adianta ler uma biblioteca inteira.
É algo tão evidente que até me dá certa vergonha repetir: na democracia representativa moderna, fruto do Iluminismo, a possibilidade de interesses privados se sobreporem aos demais é contrabalançada por um sistema de pesos e contrapesos (checks and balances), que Platão não conhecia, nem poderia imaginar que pudesse existir um dia. Ele jamais ouviu falar, nem poderia, em separação de poderes, representatividade parlamentar e estado de direito, para citar apenas alguns pilares da moderna democracia. Ele não conhecia, por exemplo, Montesquieu. Até porque, para tanto, teria que viajar alguns séculos adiante numa máquina do tempo. Os mesmos séculos que me separam do leitor que acredita que basta aplicar o que Platão escreveu para que não tenhamos corrupção – e que acha, num desafio à lógica mais elementar, que se pode ser contra a democracia, hoje, e não corroborar ditaduras.
É esse sistema, baseado no império da lei e não na vontade dos homens, e que foi aperfeiçoado nos últimos dois séculos, e não o sistema ateniense, que chamamos hoje de democracia. E, em tal sistema, os virtuais excessos são combatidos e dirimidos pela própria democracia, e não pela sua dissolução ou substituição por um regime ditatorial. Infelizmente, isso passou totalmente despercebido ao leitor, que pelo visto acabou de ler Platão e acredita ter achado o Santo Graal.
Para ficar mais claro: como evitar, por exemplo, que a liberdade de imprensa seja usada irresponsavelmente para caluniar outros? ou que a corrupção se alastre? Uma mente infantilizada pelo dogmatismo diria que o jeito é acabar com a liberdade de imprensa e impor a censura, ou fechar o Congresso e decretar a lei marcial. Uma mente liberal, que leu Platão e Hobbes com o olhar do seculo XXI e não dos séculos XVII ou IV a.C., responderia: com mais liberdade de imprensa e com mais democracia.
O leitor, claro, não pensa assim. Para ele, a corrupção, por exemplo, é aliada da democracia, e não sua inimiga. Ele identifica a corrupção como um "excesso de liberdade". Talvez por acreditar que a propria democracia seja um excesso. Enfim, ele é contra a tirania sim, mas só a de Atenas no século IV a.C…
Dizem que o clube mais numeroso do mundo é o dos inimigos das ditaduras de ontem e amigos das ditaduras de hoje. Pelo visto, esse clube não pára de crescer.
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