sexta-feira, junho 12, 2009

OBAMA E O ISLÃ (OU: QUANDO O EXTREMO VIRA A NORMA)


Cometi uma pequena injustiça em meu post anterior, quando afirmei que somente o Reinaldo Azevedo e o Diogo Mainardi tiveram a ousadia suficiente para mangar do discurso "histórico" do demiurgo Barack Obama no Cairo (deveriam colocar o Obama em cima de um trio elétrico, cantando e rebolando ao som de Ivete Sangalo: o efeito sobre os cérebros da platéia seria o mesmo). É que eu tinha me limitado, até então, a ler as aves-marias e padres-nossos da nossa imprensa brazuca. Não tinha, ainda, lido o texto que vai a seguir, de autoria de Christopher Hitchens, publicado na revista eletrônica Slate em 08/06 (original aqui: http://www.slate.com/id/2220000/). A tradução, como sempre, é minha. As idéias bem que poderiam ser também.

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QUANDO O EXTREMO VIRA A NORMA

Há uma conexão fascinante entre o que o presidente Barack Obama disse sobre véus muçulmanos para mulheres em seu discurso de 4 de junho no Cairo e o debate sobre os prisioneiros de Guantánamo liberados que têm sido desde então encontrados, ou encontrados de novo, nas fileiras do Talibã e da Al-Qaeda. Não tente adivinhar, mas, por favor, leia.

Desde que o ex-vice-presidente Dick Cheney fez a maioria das manchetes do New York Times de 21 de maio, usando estatísticas do Departamento de Defesa para sugerir que um em cada sete detentos de Guantánamo tinha “voltado ao terrorismo ou à atividade militante”, tem havido uma enorme discussão sobre se isso é verdadeiro e, se é, por que é. Pode não ser o caso, por exemplo, de que uma pessoa inocente que passou pela experiência de Guantánamo possa tornar-se “radicalizada” e decidir juntar-se às fileiras da jihad pela primeira vez?

A última explicação certamente não é verdadeira para vários dos reincidentes que têm sido positivamente identificados; conhecemos o passado e o presente de alguns desses personagens. Em minha própria visita a Guantánamo, deram-me uma lista – oficialmente com somente 11 nomes – de ex-militantes do Talibã como Abdullah Mehsud, detido em fevereiro de 2002 e liberado em março de 2004, que mais tarde preferiu se matar a não se render às forças de segurança paquistanesas. Se é uma ofensa à justiça manter presas pessoas que podem ter sido vítimas de erro de identificação ou de vingança de outras facções, então é também uma ofensa à justiça liberar assassinos psicopatas que acreditam ter permissão divina para jogar ácido nos rostos de meninas que querem ir à escola.

Entretanto, se cremos ser provável ou possível que um homem somente se transmudaria em tal monstro depois de passar pela experiência de Guantánamo, então eu posso sugerir um motivo pelo qual isso possa ocorrer. Nada me preparou para a maneira como as autoridades no campo de Guantánamo permitiram aos devotos religiosos mais extremados entre os detentos serem os organizadores da rotina diária dos prisioneiros. Suponha que você fosse uma pessoa secular ou não-fanática apanhada na rede por engano; você ainda se acharia obrigado a rezar cinco vezes por dia (os guardas não têm permissão de interromper), a ter um Corão em sua cela e a comer alimentos preparados pelos padrões do halal (ou Sharia). Suponho que você poderia pedir para abster-se, mas, nesse caso, eu não apostaria muito em suas chances. Os oficiais em comando estavam tão contentes por causa da habilidade deles de exibir suas mentes extremamente abertas a respeito do Islã que eles pareceram quase magoados quando eu os indaguei como eles justificavam o uso do dinheiro do contribuinte para criar uma instituição dedicada à prática fervorosa da versão mais extremada de apenas uma religião. À imensa lista de motivos para fechar Guantánamo, acrescente esse: é uma madraçal patrocinada pelo Estado.

A mesma insistência quase masoquista em tomar o extremo como norma também esteve presente no discurso suavemente pronunciado de Obama na capital egípcia. Algo do que ele disse foi bem-intencionado, ainda que mal-informado. Os Estados Unidos não deveriam ter derrubado o governo eleito do Irã em 1953, mas quando o fizeram, usaram mulás e aiatolás subornados para açular o sentimento anti-comunista contra um regime secular. O governo de John Adams no Tratado de Trípoli de 1796 de fato proclamou que os Estados Unidos não tinham nenhuma rixa com o Islã como tal (e, ainda mais importante, que os Estados Unidos em si não eram uma nação cristã), mas o tratado fracassou em impedir os estados da Berberia em invocarem o Corão como permissão para raptar e escravizar viajantes dos altos mares, e assim Thomas Jefferson foi mais tarde obrigado a enviar uma frota e os Fuzileiros Navais para dar cabo do comércio. Espera-se que Obama não prefira Adams a Jefferson a esse respeito.

Qualquer pessoa com a menor pretensão ao alfabetismo cultural sabe que não há tal lugar ou coisa chamada “o mundo muçulmano”, ou, ao invés disso, que este consiste em muitos lugares e em muitas coisas. (É precisamente o objetivo dos jihadistas colocá-lo todo sob um domínio preparatório para tornar o Islã a única religião do mundo.) Mas Obama não disse nada sobre o cisma entre sunitas e xiitas, ou sobre o debate sobre o sufismo, ou sobre as formas Ahmadi e ismaelita de culto e prática. Tudo isso foi reunido na umma: a noção altamente ideológica de que uma pessoa é antes de tudo definida por sua adesão a uma religião e de que todos os conceitos de cidadania e direitos estão em segundo lugar em relação a esse diktat teocrático. Nada poderia ser mais reacionário.

Tomem o único caso em que nosso presidente tocou o fato mais conhecido sobre o “mundo” islâmico: sua tendência em fazer das mulheres cidadãos de segunda classe. Ele mencionou isso somente para dizer que os “países ocidentais” estavam discriminando as mulheres muçulmanas! E como essa discriminação é imposta? Ao se limitar o uso do véu de cabeça ou hijab (uma palavra que Obama pronunciou como hajib – imaginem a gritaria se George Bush tivesse feito isso). A implicação clara foi um ataque à lei francesa que proíbe o uso de objetos ou símbolos religiosos nas escolas públicas. De fato, no dia seguinte em Paris, Obama tocou nesse assunto ainda mais explicitamente. Faço uma citação de um excelente comentário de um professor visitante argelino-americano na Faculdade de Direito da Universidade de Michigan, Karima Bennoune, que diz:

Acabei de publicar uma pesquisa conduzida entre muitas pessoas de ascendência muçulmana, árabe e norte-africana na França que apóiam a lei nacional de 2004 banindo símbolos religiosos em escolas públicas, que eles vêem como um desdobramento necessário da “lei da república” para conter a “lei dos irmãos”, uma regra informal imposta não-democraticamente a muitas mulheres e meninas em vizinhanças e em casa e por fundamentalistas.

Mas para as mulheres que são obrigadas a se vestirem de acordo com as exigências de outros, Obama não teve nada a dizer absolutamente, como se o único “direito” em jogo fosse o direito de obedecer uma instrução que, de fato – se isso tem alguma importância – não é encontrada no Corão. Na Turquia, também, véus de cabeça para mulheres são proibidos pela lei em alguns contextos. Isso é, também, islamofobia? O presidente pensa que o véu e a burca também são declarações de moda livremente escolhidas? Esse tipo de ingenuidade é preocupante, e significa que entre a platéia muçulmana global, o tipo errado de gente estava rindo de nós, enquanto os que deveriam ser nossos amigos e aliados estavam vertendo uma lágrima de desapontamento.

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Voltei
E pensar que houve um tempo em que os "progressistas" do mundo inteiro condenavam o governo dos EUA por defender regimes despóticos e ditatoriais... Hoje, ao contrário, a mesma turma cobre o presidente norte-americano de elogios por defender o "direito" de meninas serem apedrejadas e chicoteadas por não seguiram uma religião. Se isso não é duplo padrão e hipocrisia, então eu não entendo mais nada.

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