Às vezes me perguntam por que pego tanto no pé dos esquerdistas, e dos petistas em particular. Por que, enfim, reservo a eles minha fúria crítica, poupando dos mesmos adjetivos os partidos e políticos de direita.
A pergunta em si traz um desconhecimento total do assunto. Tudo bem, eu respondo. Faço-o por vários motivos. O primeiro deles é que, até que me convençam do contrário, não há nada nem ninguém no horizonte político brasileiro que possa ser encaixado, mesmo remotamente, no rótulo "direita", o que é uma pena (a menos que se considere o adesismo oportunista de um DEM ou o esquerdismo envergonhado de um PSDB como legítimas manifestações do pensamento conservador, mas isso é tema para outro texto...). Em segundo lugar, e o mais importante, é que, ao contrário da direita, que inexiste entre nós, pode-se dizer, sim, com toda segurança, que existe uma esquerda brasileira extremamente organizada - a tal ponto que esta domina inteiramente o cenário político nacional, e inclusive já conseguiu enganar até mesmo setores insuspeitos da opinião pública e da imprensa.
Um exemplo dessa enganação é a revista VEJA desta semana - sim, ela mesma! -, que traz uma reportagem que se derrama em elogios ao caráter "moderado" do governo Lula e do PT. A reportagem, assinada por Otávio Cabral - e que dificilmente, ao contrário de outras reportagens da revista sobre corrupção, será contestada pelo PT -, se refere à "exportação" do modelo petista de governar, que seria caracterizado pelo pragmatismo, em oposição ao dogmatismo tradicional da esquerda jurássica, para países como El Salvador, onde o presidente recém-empossado, Maurício Funes, da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), estaria seguindo os mesmos passos dos "leões vegetarianos" de Lula e do PT. Inclusive, técnicos do PT estariam ensinando o novo governo salvadorenho a implementar versões locais do Bolsa-Família e do PAC (um mau sinal, mas isso também fica para outro post). A mensagem do texto é clara: assim como o PT fez a partir de 2002, a FMLN abandonou as teses radicais de esquerda e abraçou a legalidade democrática e a economia de mercado, deixando para trás o marxismo-leninismo e os anos de luta armada, que deixaram cerca de 75 mil mortos no país. Mais que isso: esse "modelo" supostamente criado pelos petistas seria uma espécie de contraponto, ou de antídoto, à influência do radicalismo tosco de caudilhos como Hugo Chávez e Evo Morales, com seus socialismos bolivarianos e indigenistas e receitas econômicas anacrônicas.
Já escrevi aqui várias vezes que essa dicotomia entre duas esquerdas - uma radical e outra moderada; uma revolucionária e outra reformista; ou, como virou moda dizer, uma "carnívora" e outra "vegetariana" - é um dos maiores engodos que já apareceram em todos os tempos. Tão forte é essa tese que até mesmo críticos contumazes dos delírios e fantasias esquerdistas, como o escritor peruano Mario Vargas Llosa, que esteve na Venezuela há alguns dias para participar de um colóquio sobre liberdade, se deixaram levar por ela, rasgando-se em elogios à suposta moderação do governo Lula, em comparação com a "revolução bolivariana" de Chávez e companhia. Que a revista semanal mais "direitista" do Brasil tenha engolido a isca não é algo, portanto, surpreendente.
Não sei se Mario Vargas Llosa e os editores de VEJA leram Gramsci. Também não sei se sua crença em uma esquerda responsável e moderada seria fruto de uma análise acurada da realidade ou de wishful thinking - acredito que seja este último caso o mais provável. Na verdade, por trás do aparente antagonismo esquerda carnívora-esquerda vegetariana (ou herbívora, como seria mais apropriado chamá-la), o que se esconde é tão-somente uma tentativa de, como se diz no Oriente, "salvar a face" da esquerda, cujas teses principais caíram por terra depois da queda do Muro de Berlim, em 1989. Uma grande enganação, enfim.
A primeira coisa a ser sublinhada é que a adesão de uma parte da esquerda à ortodoxia econômica e à responsabilidade fiscal não significa nenhuma evolução genuína, pelo simples motivo de que tal adesão não se deu de dentro para fora, mas de fora para dentro. Foi, dito de outro modo, uma imposição da realidade, e não uma ruptura verdadeira, decorrente de um gesto de coragem ou inteligência. Não é preciso coragem, nem inteligência, para saltar de um barco que está afundando. Era esse exatamente o caso do modelo socialista, marxista-leninista, no final dos anos 80. Pular fora dessa canoa furada foi o, por assim dizer, "mérito" do pragmatismo lulista, que tanto encanta empresários agradecidos - e iludidos -, os mesmos que não se importam com o fato de a China ser um sistema totalitário, desde que "funcione" economicamente. Em resumo: se os petistas deixaram de lado as teses marxistizantes e abraçaram a economia de mercado, não foi por nenhum compromisso deontológico, mas por puro oportunismo político e vigarice intelectual - ou alguém duvida que, se os ventos soprassem favoravelmente na direção do estatismo leninista, e não do capitalismo liberal, os petistas estariam, até hoje, defendendo a expropriação das grandes empresas multinacionais estrangeiras? Com a economia mundial marchando de vento em popa, era conveniente adotar uma postura favorável aos negócios e à livre iniciativa. A questão é: numa situação de crise, como a que o mundo vive atualmente (lembram da marolinha? pois é...), o que impede os cumpanhêru de promoverem uma recaída estatista?
Tanto em relação à economia quanto no tocante à democracia, o que houve foi uma conversão sem confissão, nem arrependimento. Ou seja: uma falsa conversão, motivada apenas por conveniências políticas. Os petistas jamais se arrependeram publicamente dos anos de demagogia antiliberal, em que não passava um dia sem que Lula ou algum outro caudilho esquerdista esbravejasse contra a política econômica de FHC e do FMI etc. e tal. Por que, agora, devemos dar crédito ao que dizem? (Só para comparar: imagine se os nazistas reaparecessem dizendo-se convertidos à democracia e aos direitos humanos, mas sem confessar nem se arrepender de seus crimes; essa "conversão" seria levada a sério?).
Não é assim porque eu quero. Lula e sua camarilha já deram mostras de sobra de que estão se lixando para a democracia, assim como estão se lixando para a ética (aí estão o mensalão e os delúbios da vida para comprovar isso). Apenas a título de exemplo, basta lembrar que praticamente não passa um dia sem que não se veja alguma tentativa por parte de algum ministro petista de controlar, regular, manietar a sociedade. Idem para as articulações para o terceiro mandato. Se Lula e os petistas não rasgam a Constituição e instalam de vez um regime ditatorial no Brasil, não é porque não queiram - é porque (ainda) não podem. Querem saber qual o modelo de Estado ideal e de sociedade ideal para os esquerdistas? Olhem para Cuba ou para a Venezuela.
Assim como os defensores da tese da "esquerda responsável" não levam o que está aí em cima em consideração, preferindo descansar na ilusão narcotizante de que "eles mudaram", acreditam piamente que Lula é uma alternativa, e não um parceiro de Chávez, Morales ou Correa. Mesmo com todos os fatos demonstrando sem sombra de dúvida que todos esses governos estão no mesmo barco, unidos pelo Foro de São Paulo - a organização revolucionária de esquerda criada por Lula e pelo tirano Fidel Castro em 1990 para "reconstruir na América Latina o que se perdeu no Leste Europeu", e cuja própria existência foi mantida em segredo, com a cumplicidade de grande parte da imprensa, por mais de quinze anos! A política externa "moderada" e "responsável" de Lula não tem feito outra coisa senão referendar os delírios totalitários de um Hugo Chávez - Lula já chegou a declarar que, na Venezuela, há democracia "até demais"... - ou proclamar-se "neutra" em relação aos narcoterroristas colombianos das FARC. Do mesmo modo, nosso presidente "pragmático" e "moderno" não hesita um segundo antes de elogiar a tirania cubana dos irmãos Castro, considerando-a um modelo de igualdade e justiça. O governo Lula fez vista grossa para o encampamento das refinarias da Petrobrás pelo índio de araque Evo Morales na Bolívia e para ações semelhantes de Rafael Correa no Equador contra uma empreiteira brasileira, e se tem negado sistematicamente a votar contra o regime genocida do Sudão na Comissão de Direitos Humanos da ONU. O mesmo governo modelo de moderação e democracia não vê nenhum problema em convidar para visitar o Brasil o patrocinador do terrorismo islamita e notório negador do Holocausto Mahmoud Ahmadinejad do Irã, e em apoiar um conhecido antissemita e queimador de livros para a direção-geral da UNESCO. É essa a esquerda vegetariana e responsável, comprometida com a democracia e os direitos humanos?
Os mesmos "moderados" que não têm qualquer pudor em se colocarem ao lado de tiranos e genocidas enquanto fazem juras de amor à democracia se revelam quando se trata de difamar seus adversários. Há alguns dias, assisti ao programa eleitoral do PT na televisão. Vários ministros do governo Lula, como Guido Mantega e Patrus Ananias, sem falar na presidenciável Dilma Rousseff, passaram boa parte do tempo demonizando a política econômica de FHC - a mesma a qual se converteram depois de chegarem ao poder! É por causa desse tipo de discurso vigarista que eu não me canso de pegar no pé da esquerda e dos petistas.
Há uma grande diferença entre conversão - que implica, necessariamente, abjurar e arrepender-se da crença anterior - e uma operação plástica. Como demonstram Dilma Rousseff e o PT, é dessa última que se trata, quando se fala de uma esquerda "responsável" e "vegetariana". Eles mudaram, sim - mas não por dentro.
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