quarta-feira, junho 25, 2008

UM ARTIGO PRIMOROSO DE JOÃO UBALDO RIBEIRO


Segue artigo de João Ubaldo Ribeiro, publicado no Estado de S. Paulo em 22/06. Volto depois.

Pode ser que ele esteja maluco

(João Ubaldo Ribeiro , no Estadão , 22 de junho de 2008)

Sei que, para os lulistas religiosos, a ressalva preliminar que vou fazer não adiantará nada. Pode ser até tida na conta de insulto ou deboche, entre as inúmeras blasfêmias que eles acham que eu cometo, sempre que exponho alguma restrição ao presidente da República. Mas tenho que fazê-la, por ser necessária, além de categoricamente sincera. Ao sugerir, como logo adiante, que ele não está regulando bem do juízo, ajo com todo o respeito. Dizer que alguém está maluco, principalmente alguém tido como sagrado, pode ser visto até como insulto, difamação ou blasfêmia mesmo. Mas não é este o caso aqui. Pelo menos não é minha intenção. É que às vezes me acomete com tal força a percepção de que ele está, como se diz na minha terra, perturbado da idéia que não posso deixar de veiculá-la. É apenas, digamos assim, uma espécie de diagnóstico leigo, a que todo mundo, especialmente pessoas de vida pública, está sujeito.

Além disso, creio que não sou o único a pensar assim. É freqüente que ouça a mesma opinião, veiculada nas áreas mais diversas, por pessoas também diversas. O que mais ocorre é ter-se uma certa dúvida sobre a vinculação dele com a realidade. Muitas vezes - quase sempre até -, parece que, quando ele fala "neste país", está se referindo a outro, que só existe na cabeça dele. Há alguns dias mesmo, se não me engano e, se me engano, peço desculpas, ele insinuou ou disse claramente que o Brasil está, é ou está se tornando um paraíso. Fez também a nunca assaz lembrada observação de que nosso sistema de saúde já atingiu, ou atingirá em breve, a perfeição, até porque está ao alcance de qualquer cidadão, pela primeira vez na História deste país, ter absolutamente o mesmo tratamento médico que o presidente da República.

Tal é a natureza espantosa das declarações dele que sua fama de mentiroso e cínico, corrente entre muitos concidadãos, se revela infundada e maldosa. Ele não seria nem mentiroso nem cínico, pois não é rigorosamente mentiroso quem julga estar dizendo a mais cristalina verdade, nem é cínico quem tem o que outros julgam cara-de-pau, mas só faz agir de acordo com sua boa consciência. Vamos dar-lhe o benefício da dúvida e aceitar piamente que ele acredita estar dizendo a absoluta verdade.

Talvez haja sinais, como dizem ser comum entre malucos, de uma certa insegurança quanto a tal convicção, porque ele parece procurar evitar ocasiões em que ela seria desmentida. Quando houve o tristemente célebre acidente aéreo em Congonhas, a sensação que se teve foi a de que não tínhamos presidente, pois os presidentes e chefes de governo em todo o mundo, diante de catástrofes como aquela, costumam cumprir o seu dever moral e, mesmo correndo o risco de manifestações hostis, procuram pessoalmente as vítimas ou as pessoas ligadas a elas, para mostrar a solidariedade do país. Reis e rainhas fazem isso, presidentes fazem isso, primeiras-damas fazem isso, premiers fazem isso. Ele não. Talvez tenha preferido beliscar-se para ver ser não estava tendo um pesadelo. Mandou um assessor dizer umas palavrinhas de consolo e somente três dias depois se pronunciou a distância sobre o problema. O Nordeste foi flagelado por inundações trágicas, o Sul assolado por seca sem precedentes, o Rio acometido por uma epidemia de dengue, ele também não deu as caras. E recentemente, segundo li nos jornais, confidenciou a alguém que não compareceria a um evento público do qual agora esqueci, por temer receber as mesmas vaias que marcaram sua presença no Maracanã.

Portanto, como disse Polônio, personagem de Shakespeare, a respeito do príncipe Hamlet, há método em sua loucura. Não é daquelas populares, em que o padecente queima dinheiro (somente o nosso, mas aí não vale) e comete outros atos que só um verdadeiro maluco cometeria. Ele construiu (enfatizo que é apenas uma hipótese, não uma afirmação, porque não sou psiquiatra e longe de mim recomendar a ele que procure um) um universo que não pode ser afetado por cutucadas impertinentes da realidade. Notícia ruim não é com ele, que já tornou célebre sua inabalável agnosia ("não sei de nada, não ouvi nada, não tive participação nenhuma") quanto a fatos negativos. Tudo de bom tem a ver com ele, nada de ruim partilha da mesma condição.

Agora ele anuncia que, antes de deixar o mandato, vai registrar em cartório todas as suas realizações, para que se comprove no futuro que ele foi o maior presidente que já tivemos ou podemos esperar ter. Claro que se elegeu, não revolucionariamente, mas dentro dos limites da ordem (?) jurídica vigente, com base numa série estonteante de promessas mentirosas e bravatas de todos os tipos. Não cumpriu as promessas, virou a casaca, alisou o cabelo, beijou a mão de quem antes julgava merecedor de cadeia e hoje é o presidente favorito dos americanos, chegando mesmo, como já contou, a acordar meio aborrecido e dar um esbregue em Bush. Cadê as famosas reformas, de que ouvimos falar desde que nascemos? Cadê o partido que ia mudar nossos hábitos e práticas políticas para sempre? O que se vê é o que vemos e testemunhamos, não o que ele vê. Mas ele acredita o contrário.

Acredita, inclusive, nas pesquisas que antigamente desdenhava, pois os resultados o desagradavam. Agora não, agora bota fé - e certamente tem razão - depois que comprou, de novo com o nosso dinheiro, uma massa extraordinária de votos. Não creio que ele se julgue Deus ainda, mas já deve ter como inevitável a canonização e possivelmente não se surpreenderá, se lhe contarem que, no interior do Nordeste, há imagens de São Lula Presidente e que, para seguir velha tradição, uma delas já foi vista chorando. Milagre, milagre, principalmente porque ninguém vai ver o crocodilo por trás da imagem.

Voltei

João Ubaldo, quando não está no bar, escreve coisas bem interessantes. O texto acima é primoroso. Poucos escritores brasileiros conseguem expor com tanta verve e eficiência essa monstruosa impostura histórica que se chama Luiz Inácio Lula da Silva. Serve como um antídoto às babações-de-ovo de um Luís Fernando Veríssimo ou de um Frei Betto.

Há algum tempo João Ubaldo começou a botar suas impressões sobre Lula no papel. Entre outras coisas, ele foi um dos primeiros a perceber aquilo que é mais que óbvio, mas que para muita gente ainda é um tabu: que Lula é não só um ignorante, mas o responsável por um verdadeiro culto da ignorância, que ele habilmente maneja e estimula, com a ajuda, paradoxalmente, de intelectuais apaixonados pelo líder operário. Foi por isso chamado, claro, de preconceituoso. Nunca entendi como apontar uma falha evidente na formação de alguém - a falta de educação formal - pode ser visto como preconceito. Já escrevi aqui que Lula teve tempo suficiente para preencher essa lacuna e até cursar uma faculdade. Se não o fez, foi porque não quis. Claro que também fui chamado de preconceituoso e elitista por causa disso. É a vida.

De fato, Lula e os lulistas vivem numa espécie de universo paralelo. No mundo encantado do lulo-petismo, Lula é o melhor presidente que o Brasil já teve ou terá um dia, o Bolsa-Família não é uma forma de reprodução clientelística da pobreza e da dependência estatal, a corrupção é exclusiva da direita, as FARC não são um grupo terrorista, Fidel Castro e Hugo Chávez são líderes democratas e Cuba é um paraíso da igualdade e dos direitos humanos. Para eles, lulistas, assim como para o Cândido de Voltaire, o Brasil é o melhor dos mundos, devendo todos os seus problemas às intrigas da oposição. Todas as notícias boas, por sua vez, são mérito deles, os lulistas, e de seu Guia Genial, Lula. Também pudera: quem foi durante trinta anos incensado todos os dias como um Messias que iria redimir a nação e conduzi-la em direção à Terra Prometida só pode mesmo perder contato com a realidade e virar um alienado, no sentido que se dava antigamente ao termo.
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Certamente, como diz o escritor baiano, há método nessa loucura toda. A falta de contato com a realidade é uma característica de todo líder político messiânico. Muitos ditadores eram assim. Acostumados a ser bajulados, cercados de uma corte de capachos, eles se crêem indispensáveis e insubstituíveis. E, de certo modo, dado o movimento que eles encarnam, caudilhesco e personalista, eles são mesmo. O cinismo e a hipocrisia ficam por conta de seus cortesãos, de seus ministros, de seus intelectuais orgânicos. Quem pode dizer que Hitler não acreditava naquele papo-furado de raça superior, ou que Stálin não era um crente ardoroso no radiante futuro comunista da humanidade? Malucos, sem dúvida, mas com método.

Faço apenas uma pequena ressalva ao texto do escritor baiano: pode ser que ele esteja maluco não, João Ubaldo. Ele está. E nós também, que elegemos e reelegemos esse farsante.

Grande João Ubaldo. Pobre Brasil.

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