quinta-feira, junho 12, 2008

CHINA - IMPRESSÕES DE VIAGEM


Publiquei um monte de textos desde que voltei e ainda não escrevi nada sobre minha viagem à China, algumas semanas atrás...

Tenho uma boa desculpa para isso. Além do fato de haver muita coisa que eu gostaria de escrever e dispor de pouco tempo livre para o blog, não sou muito fã de relatos de viagem, assim como não gosto muito de textos memorialísticos. Esse gênero de literatura, com algumas exceções, sempre esteve longe de ser o meu preferido. Além disso, a veracidade de um relato desse tipo, por seu caráter subjetivo, é bastante duvidosa - tomemos o exemplo da obra clássica de Marco Pólo, referência durante séculos para viajantes e historiadores sobre a China, e que no entanto não faz qualquer menção à Grande Muralha... As impressões de viagem, a exemplo das memórias, sempre sofrerão de um excesso de subjetivismo, de uma superficialidade inevitável, que o pouco tempo em que geralmente se passa num país - no meu caso, duas semanas - só faz exacerbar. Mas vamos lá.

Fui à China para participar de um curso para jovens diplomatas latino-americanos, oferecido pelo Ministério das Relações Exteriores chinês. Como convidado do governo, portanto. O curso dividiu-se numa parte basicamente acadêmica, composta de palestras sobre os mais diversos temas referentes à China (civilização, estrutura política, economia, relações exteriores, etnias etc.) e em outra, digamos, cultural, que incluiu visitas a alguns dos principais pontos turísticos nacionais, como a Grande Muralha e a Cidade Proibida. No final, ainda houve uma viagem de cinco dias à província de Guangxi, no sul do país, onde visitamos as cidades de Nanning e Guilin.

A primeira coisa que se nota na China, depois de um vôo de mais de 15 horas pela rota Brasília-Rio de Janeiro-Paris-Pequim, é o céu. Ou melhor: a ausência de céu. Tirando um dia em que visitamos a Cidade Proibida, o céu de Pequim - e, logo descobri, de quase todas as cidades do país - é coberto por uma densa nuvem de poeira, um smog, produto da poluição. De dia, isso impede de se ver o sol - sabe-se que ele está lá, pelo calor que ele emana, mas não adianta tentar visualizá-lo: ele não passa de uma mancha no céu cinzento. À noite, não é diferente: olha-se para o céu, a lua aparece timidamente, mas as estrelas simplesmente desaparecem. Somente num lugar eu tinha visto algo parecido antes - em São Paulo -, e mesmo assim, como soube depois, esse fenômeno só ocorre em alguns dias ao ano, e não em toda a cidade. Em Pequim - ou Beijing, como preferem os chineses -, é em todo lugar, o tempo todo.

Outra coisa que me chamou a atenção foi a quantidade de prédios em construção na capital chinesa. Símbolos da prosperidade galopante do país, que cresce há anos a taxas de cerca de 10% anuais, as edificações se multiplicam em Pequim como cogumelos brotando do chão. Para onde quer que se vá, há operários trabalhando. Até durante a noite, em uma zona de restaurantes e boates, aonde os turistas vão para se divertir, vi tratores funcionando a pleno vapor. O país, de fato, está passando por um momento de desenvolvimento acelerado. O que não é o suficiente para mudar certos hábitos fortemente arraigados entre a população, como pude perceber. Por exemplo: os chineses - homens e mulheres, jovens e velhos - têm o péssimo costume de escarrar em qualquer lugar, para espanto dos visitantes estrangeiros...
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Mas o que mais me atraiu na viagem, o verdadeiro motivo que me levou a aceitar o convite para fazer o tal curso, foi a possibilidade de conhecer, pela primeira vez, um país comunista.

Sim, a China é um país comunista. Mesmo que tenha adotado, há exatos trinta anos, uma política econômica na prática capitalista; mesmo que já estejam longe os tempos da Revolução Cultural maoísta; mesmo que se veja sinais de economia de mercado em toda parte; mesmo que os chineses sejam doidos por dinheiro e extremamente consumistas - os jovens chineses, por exemplo, estão se lixando (com toda razão, aliás) para o comunismo: querem mais é curtir a vida e as delícias do capitalismo -; mesmo que o país seja hoje um dos principais parceiros comerciais do Brasil e dos EUA; mesmo que os retratos de Mao Tsé-Tung e de Marx e Lênin sejam cada vez mais raros, sendo substituídos por outdoors gigantescos de marcas de grife ocidentais, e mesmo que os próprios comunistas chineses sejam os primeiros que aparentem não levar a ideologia marxista a sério, a China continua a ser comunista. Voltei de lá com essa convicção reforçada, assim como mais forte ficou minha conclusão de que o comunismo, seja que forma vier a assumir, é um sistema político nefasto e desumano, incompatível com a dignidade humana.

À primeira vista, um sistema político comunista e um sistema econômico capitalista seriam uma contradição em si. Mas não é bem assim. Desde o colapso dos regimes marxistas do Leste Europeu e o fim da URSS, em 1991, o que se entende por comunismo nada mais é do que a concentração de poder nas mãos de uma minoria de burocratas. Pouco importa se o sistema econômico for, na prática, capitalista (os chineses preferem dizer "socialismo de mercado" ou "à chinesa"...); o importante é que propicie a continuidade do poder da nomenklatura. Nisso, o regime chinês parece ter achado um ponto ideal. Depois de anos de desastres econômicos, como o Grande Salto Adiante do começo dos anos 60 (mais de 30 milhões de mortos) e a calamidade da Grande Revolução Cultural Proletária (1966-1976), a liderança do Partido Comunista Chinês descobriu o óbvio e resolveu se livrar de vez dos delírios e imposturas marxistas na economia, mantendo intacto o regime político. "Não importa a cor do gato, desde que ele pegue o rato", é a famosa frase de Deng Xiao-Ping, o principal arquiteto das reformas econômicas na China a partir de 1978. Desse modo, o país se encaminhou para uma economia capitalista, trocando os ensinamentos do camarada Mao por toda sorte de bugigangas. De uma ditadura brutal maoísta, com isolamento político e economia totalmente planificada, a China passou a uma ditadura brutal colegiada, com abertura econômica para o mundo. Não por acaso, uma das características da cultura chinesa é "salvar a face" - pelo que eu entendi, uma forma bastante cínica e hipócrita de manter as aparências.

Claro que essa transição não se deu sem conflitos. O principal desafio dos burocratas do Partido Comunista era livrar-se do legado maoísta. Foi preciso esperar a morte do Grande Timoneiro, em 1976, e a prisão, logo depois, da "Gangue dos Quatro" - que incluía a viúva de Mao, que se suicidou na prisão -, para que as reformas começassem a ser implementadas. Ainda assim, era necessário manter o mito. Os símbolos do regime foram mantidos, e a memória de Mao permanece discretamente cultuada pelo Partido. Um enorme retrato seu continua enfeitando a Praça Tianamen, no centro de Pequim, embora os chineses cada vez mais ressaltem seus "erros" (os mais de 70 milhões de mortos pelo comunismo na China não são vistos como crimes...). No centro de Pequim, em meio às quinquilharias que costumam empurrar para os turistas, ambulantes vendem souvenires como o Pequeno Livro Vermelho e camisetas com a estampa de Mao (vi até mesmo um sujeito vendendo "relógios de Mao"). Em outras palavras: o regime se beneficia do mito criado em torno do falecido ditador, mas mantém uma prudente distância do mesmo. E ainda aproveita para faturar em cima.

Esse distanciamento gradativo da figura e do "pensamento do presidente Mao" veio acompanhado de um retorno às origens culturais da China. Mais especificamente, a tradição confuciana, que os Guardas Vermelhos tentaram destruir durante a Revolução Cultural, passou a ser retomada, e hoje constitui, ao lado do marxismo, a base filosófica do regime. De certa forma, Confúcio assumiu o lugar de Mao e de Marx, sem os ter substituído por completo. Não é por menos: afinal, o confucionismo valoriza sobretudo a hierarquia, a disciplina e a autoridade - dos pais, dos mais velhos, dos governantes (principalmente dos governantes). Cai como uma luva, portanto, para justificar a ditadura comunista. Esta, aliás, também encontrou um jeito bem malandro de se legitimar: em uma das palestras, foi-nos explicado que existem oito partidos políticos com representação no Parlamento chinês - "sob a direção do Partido Comunista". Ah, bom.

Todas essas tentativas, algumas bem-sucedidas, de "salvar a face" do regime, e que incluem uma rígida censura governamental aos meios de comunicação, não são suficientes, porém, para camuflar a realidade. Por mais que se queira escondê-la, esta sempre dá um jeito de se esgueirar pelos cantos, achando uma fresta por onde possa aparecer. Na China, como sabemos, certos assuntos são tabus. Direitos humanos e Tibete, por exemplo. Mas aqui também os chineses encontraram uma fórmula interessante. Durante uma das palestras, um dos ouvintes levantou a questão dos direitos humanos, e inclusive citou o caso do Tibete. O palestrante, aliás um professor universitário que padecera cinco anos de prisão na época da Revolução Cultural, foi taxativo em sua afirmação de que na China os direitos políticos e civis eram plenamente respeitados. E quanto aos militantes pelos direitos humanos e os defensores da independência do Tibete? "Estes são dissidentes", respondeu na bucha o professor... Não surpreende, assim, que em sua política externa a China seja a principal aliada de algumas das piores ditaduras do mundo, como a do Sudão, de Mianmar e da Coréia do Norte.

Assim como não causa surpresa que a censura seja algo tão presente na vida dos chineses. Censura e consumo desenfreado, aliás, não estão em contradição. Fui a uma livraria em Pequim, pelo que me disseram uma das maiores da cidade. Na seção de línguas estrangeiras, num canto acanhado do segundo andar do prédio enorme, ao lado de uma pilha de livros técnicos e dicionários, alguns poucos titulos em inglês: Dickens, Melville, Bronté, H.G. Wells... E só. O primeiro andar, por sua vez, estava cheio de livros em chinês. Mesmo sem entender nada da língua, pude perceber do que a maioria deles tratava: alguns poucos livros históricos e centenas de manuais de negócios na linha "fique rico logo". Após ter comprado, como lembrança, uma edição bilíngüe inglês-chinês dos Analectos, de Confúcio, saí de lá decepcionado.

O poder da censura e da manipulação da informação em um país como a China é algo realmente impressionante. Dias antes de minha viagem, o país estava nas manchetes por causa da repressão às manifestações pela independência do Tibete e, conseqüência direta desta, dos protestos contra o governo chinês durante a passagem da tocha olímpica em várias cidades ao redor do mundo. Chegou-se mesmo a se falar de boicote às Olimpíadas de Pequim, em agosto. Foi então que um terremoto arrasou a província de Sichuan, no sudoeste do país, e deixou mais de 60 mil mortos. Subitamente, tudo mudou. A televisão chinesa, que antes censurava os noticiários da CNN e da BBC sempre que o locutor falava em Tibete e violações dos direitos humanos, passou a transmitir, o dia inteiro, imagens da tragédia. Programas de televisão com atores e cantores entrevistavam sobreviventes do terremoto e enalteciam as virtudes das principais autoridades do país e do glorioso Exército Popular de Libertação, que acudiu prontamente ao local da tragédia. Num deles, a platéia inteira chorava e chorava, enquanto uma garotinha, também chorando, desfiava seu calvário. A qualquer hora do dia ou da noite, durante dias, esse foi o único - e quando eu digo que foi o único, não estou exagerando - assunto veiculado pela imprensa local.

Jamais eu tinha visto mudança tão repentina. Literalmente da noite para o dia, não se viu mais ninguém tocar na questão do Tibete, e defender o boicote às Olimpíadas e protestar contra o regime chinês passou a ser visto, inclusive fora da China, como um escárnio e uma ofensa gravíssima à memória dos mortos e feridos, um verdadeiro sacrilégio. Graças à essa tragédia providencial, tive a oportunidade de presenciar uma aula de manipulação política por parte de uma ditadura totalitária, que se apropriou da dor de milhares de pessoas para sair ainda mais fortalecida e justificar-se perante o mundo.

Para muita gente na esquerda, o regime chinês seria uma prova de que o comunismo pode dar certo. Eu acho justamente o contrário. Não dá para negar que a população chinesa vive hoje em muito melhores condições do que durante a ditadura de Mao - até porque nada poderia ser pior do que a ditadura de Mao -, inclusive em termos políticos. Mas isso não se deve ao comunismo. É, sim, mérito do capitalismo, que, mesmo em sua forma "socialista" ou "à chinesa", traz em si o germe de importantes avanços, tanto econômicos como sociais. Ainda há alguma pobreza, principalmente no interior, e cheguei a ver mendigos nas ruas. Mas, graças à política de abertura e às reformas, cada vez mais o passado de pobreza dos chineses vai sendo deixado para trás. Nas últimas três décadas, 300 milhões de chineses saíram da miséria. No dia em que 1,3 bilhão de chineses puderem expressar suas opiniões e escolher livremente seus governantes, muito mais gente será beneficiada, com certeza.

A China está na moda. Todo mundo está falando no país. Muitos enxergam nele a potência do futuro, que em breve será capaz de desbancar os EUA, cujo poder estaria (pela milionésima vez) declinante. Duvido muito que isso venha a acontecer nos próximos anos, assim como discordo fortemente da idéia de que o "modelo chinês", por sua eficiência econômica, poderia servir de exemplo para outros países. A menos que se considere esse modelo uma tábua de salvação para ditaduras fracassadas, como a dos irmãos Castro em Cuba, a idéia de copiar o sistema chinês me parece um retrocesso. Um passo atrás rumo a uma época em que democracia e direitos humanos, por exemplo, eram apenas um sonho.

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