Tenho recebido algumas cartinhas. Algumas me elogiando por meus textos no blog, outras me esculachando. Agradeço a todas. Principalmente as que descem o sarrafo em mim. Como a de um distinto leitor, que se apresenta como João Paulo ou Paulo (acho que são a mesma pessoa). João Paulo/Paulo escreveu dois comentários bastante simpáticos ao meu texto "Batismo de Sangue: a história torturada", postado aqui em 8/05, no qual eu falo do filme de Helvécio Ratton sobre o envolvimento dos frades dominicanos de São Paulo com a luta armada nos anos 60. São comentários como os dele que ajudam a esclarecer vários pontos importantes e tornam este blog mais interessante.
Em 14/10/2007, o João Paulo escreveu o seguinte comentário, que transcrevo aqui na íntegra, com os erros de português e tudo:
"O seu artigo de certa forma é válido.Porém entre outras coisas, não posso concordar com sua opinião recheada de uma carga emocional, quando se refere a o Frei Beto, como um "Frade católico adpto da Teologia da libertação e admirador de Fidel Castro.Na verdade ele e os demais dominicanos, não eram revolucionários.Apenas estavam dando apoio a um movimento que contribuiu mais tarde, para que você por exemplo, pudesse escrever seu artigo.Portanto,não seja injusto com pessoas que lutaram por uma causa nobre.Eu não vivi a época de chumbo mas tenho idéia do que foi.Acho que você também não viveu essa época, mas ao contrário de mim, não faz idéia.
Ass. João Paulo Cavalcante"
Não resisti e resolvi escrever algumas palavras ao comentário acima. Ei-las:
Caro João Paulo,
1) Em primeiro lugar, obrigado por seu comentário. Gostaria apenas que você me explicasse por que lembrar dois fatos notoriamente conhecidos sobre Frei Betto - sua filiação à chamada teologia da libertação e seu apoio incondicional a Fidel Castro, demonstrados por ele em dezenas de artigos, livros e entrevistas - seria emitir "uma opinião recheada de carga emocional" de minha parte. Se é para se deixar levar pelo lado emocional das coisas, eu poderia ser mais explícito, chamando o referido Frei, por exemplo, de padre de passeata e testa-de-ferro de uma das ditaduras mais perversas do planeta (o que é também verdade). Em vez disso, citei apenas dois fatos bastante conhecidos.
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2) Pelo que eu entendi, você afirma que Frei Betto e os demais frades dominicanos, que embarcaram na aventura guerrilheira dos anos 60 e 70 (como apoio, vá lá), estavam lutando para que eu, por exemplo, pudesse ter a liberdade de escrever o que penso hoje. Nesse caso, segundo essa sua opinião, eu estaria sendo injusto com ele. Na verdade, de acordo com o que você diz, eu deveria me ajoelhar aos pés dele e pedir-lhe perdão, como um bom cristão, agradecendo ao piedoso Frei por ter-se engajado nessa, como você diz, causa nobre. Mais ainda: tudo o que temos hoje - democracia, eleições livres, liberdade de expressão, de ir e vir, de pensamento etc. - se deve a ele, Frei Betto, e a todos aqueles que pegaram em armas contra a ditadura militar, como Mariguella e Lamarca. Frei Betto, o democrata.
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3) João Paulo, fiquei confuso: afinal, Frei Betto é um conhecido defensor da ditadura de Fidel Castro em Cuba, que guerrilheiros como Carlos Mariguella viam como o modelo a ser implantado no Brasil. Aliás, o grupo de Mariguella, a ALN, chegou mesmo a receber apoio material e financeiro de Cuba, enviando vários de seus militantes para treinamento de guerrilhas na ilha (um deles, um tal de José Dirceu de Oliveira e Silva). Mas, de acordo com você, eles, os guerrilheiros, queriam transformar o Brasil não numa Cuba, mas numa Suécia ou numa Dinamarca. Logo, das duas uma: ou a luta armada dos anos 60/70 era pela democracia, e os elogios à ditadura cubana eram/são falsos, mera encenação de quem neles não acredita; ou era para substituir uma ditadura por outra, e nesse caso os slogans a favor do regime cubano são mesmo sinceros. Gostaria que você me esclarecesse qual das duas opções é a verdadeira.
Como se vê, João Paulo, parece que você, embora não tenha vivido os "anos de chumbo", faz bem idéia do que foi esse período...
"Ah e só pra lembrar, o Carlos Marighela não era uma (sic) terrorista não seu imbecil.
Ass. Paulo".
Paulo, você tem razão. Carlos Mariguella - e Lamarca, e todos os demais que praticaram assaltos, seqüestros e assassinatos nos anos 60 e 70 - não era terrorista. Era, na verdade, um grande mentiroso. Senão, não teria escrito coisas como:
"Hoje, ser terrorista é uma condição que enobrece qualquer homem de honra porque isto significa exatamente a atitude digna do revolucionário que luta, com as armas na mão, contra a vergonhosa ditadura militar e suas monstruosidades". Citado em Elio Gaspari, A Ditadura Escancarada, 2002, p. 142.
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"Sendo o nosso caminho o da violência, do radicalismo e do terrorismo (as únicas armas que podem ser antepostas com eficiência à violência inominável da ditadura), os que afluem à nossa organização não virão enganados, e sim, atraídos pela violência que nos caracteriza" ("O papel da ação revolucionária na Organização"). Citado em Daniel Aarão Reis Filho e Jair Fernandes de Sá, Imagens da Revolução, 1985, p. 212.
"Ao terrorismo que a ditadura emprega contra o povo, nós contrapomos o terrorismo revolucionário" - "La lutte armée au Brésil", novembro de 1969 - citado em Elio Gaspari, A Ditadura Envergonhada, 2002, p. 106.
Como se vê, eles não eram nada terroristas.
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E eu, claro, sou um imbecil.
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Um abraço.
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Algumas sentenças são exemplares pela clareza e sinceridade. Que o diga o parágrafo seguinte, ante o qual fica faltando muito pouco a acrescentar:
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A luta armada fracassou porque o objetivo final das organizações que a promoveram era transformar o Brasil numa ditadura, talvez socialista, certamente revolucionária. Seu projeto não passava pelo restabelecimento das liberdades democráticas. Como informou o PCBR: "Ao lutarmos contra a ditadura devemos colocar como objetivo a conquista de um Governo Popular Revolucionário e não a chamada "redemocratização". Documentos de dez organizações armadas, coletados por Daniel aarão Reis Filho e Jair Ferreira de Sá, mostram que quatro propunham a substituição da ditadura militar por um "governo popular revolucionário" (PCdoB, Colina, PCBR e ALN). Outras quatro (Ala Vermelha, PCR, VAR e Polop) usavam sinônimos ou demarcavam etapas para chegar àquilo que, em última instância, seria uma ditadura da vanguarda revolucionária. Variavam nas propostas intermediárias, mas, no final, de seu projeto resultaria um "Cubão". (Elio Gaspari, A Ditadura Escancarada, Companhia das Letras, 2002, páginas 193-194).
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