Esta é mais uma para o FEBEAPÁ - Festival de Besteiras que Assola o País, versão 2007: o Governo Federal, por meio do Ministério da Justiça, quer baixar uma portaria estabelecendo a "classificação indicativa" dos programas de televisão, ou seja, determinando o horário em que cada programa deve ser transmitido, de acordo com a faixa etária do público. O que significa isso? Basicamente, a volta dela, a famigerada, a maldita censura governamental aos meios de comunicação, desta vez disfarçada de defesa do bom gosto e dos direitos das crianças e adolescentes.
Todas as minhas dúvidas sobre o caráter autoritário e paternalista do projeto do governo caíram por terra na última segunda-feira, depois de assistir a um debate sobre o assunto no programa Roda Viva, da TV Cultura. No debate, os defensores da medida, funcionários do governo, argumentavam que a iniciativa não era nenhuma forma de censura, mas unicamente um meio de regulamentar - "regulamentar", esta é a palavra mágica que utilizam os inimigos da liberdade de escolha - os horários dos programas, a fim de evitar abusos e coibir a baixaria. Além do mais, prosseguiam esses senhores iluminados, a decisão final de assistir ou não ao programa continuaria sendo do espectador, pois o governo apenas estabeleceria as bases dessa escolha (ou seja: o sujeito continua a ter o direito de escolher o que seus filhos vão assistir, mas quem determina o horário é o governo). Ao final do debate, convenci-me de que o que está em gestação é, sim, uma forma de censura, sutil e subreptícia, mas censura do mesmo jeito.
Por coincidência, no começo da semana, o governo voltou atrás na idéia de estabelecer a censura prévia - o exame, por um grupo de "especialistas" designados para a tarefa, do conteúdo da programação das emissoras, antes de esta ir ao ar. A simples idéia de que foi cogitado tal absurdo já é de dar calafrios. Por sua vez, a idéia da "classificação indicativa", da censura do horário, continua firme e forte. O que estabelece essa invenção maravilhosa? Simples: que o horário dos filmes ou programas, a grade das emissoras, deve adaptar-se aos altos padrões morais e estéticos de um punhado de excelências, pagos por você, contribuinte, para decidir que tal ou qual programa é adequado ou não para seu filho de oito anos assistir naquele horário. Em outras palavras, o que o governo está dizendo é o seguinte: você, espectador, não é capaz de decidir o que é bom para sua prole assistir na televisão, e portanto esta tarefa cabe ao Estado, ao paizinho Estado, que constitui, assim, o guia moral e espiritual da sociedade. O indivíduo, a família, estes não devem ter voz na escolha do que a meninada vê na telinha, nem quando; é somente a Ele, o Estado, que cabe esta árdua missão, em nome da preservação da moral e dos bons costumes.
Não há dúvida de que a programação das TVs privadas no Brasil, assim como em todo o mundo, não é nenhuma maravilha. Aliás, a maioria do que passa na TV não vale nada, é puro lixo. Não tenho paciência para porcarias como Domingão do Faustão ou Big Brother, por exemplo. Mas nem por isso aceito que o Estado se arvore em juiz da qualidade dessa programação, a ponto de decidir por mim sobre o que vai ou não ao ar, nem em que horário. Essa decisão cabe unicamente a quem assiste aos programas, a quem tem o controle remoto nas mãos.
Além do mais, tal decisão governamental, se vier a ser aplicada, será um desserviço à própria cultura. De acordo com a portaria do Ministério da Justiça, peças de Shakespeare repletas de cenas de sangue e sexo como MacBeth e Otelo só poderiam ser transmitidas depois das 23 horas. Contos infantis, como Chapeuzinho Vermelho, teriam de ser adaptados para passar de manhã ou à tarde, com a exclusão da cena em que o Lobo Mau devora a vovó. A idéia de intervir na programação das emissoras de televisão, na forma disfarçada e aparentemente anódina de uma "classificação indicativa", usando para tanto o monopólio da força pelo Estado, é sempre um tipo de censura, que abre caminho para outras formas mais explícitas de tutela governamental sobre os espiritos.
A justificativa apresentada pelos censores pagos pelo governo é sempre a mesma: é preciso "proteger" as crianças, livrá-las do lixo e da baixaria vomitados diariamente pela TV, que muitas vezes abusa de cenas violentas e até mesmo pornográficas. É assim que começa. Primeiro, o governo intervém na grade da programação, estabelecendo o que deve passar neste ou naquele horário. Depois, passa a dar cada vez mais palpite no conteúdo dos próprios programas, expurgando o que é considerado impróprio. Finalmente, passa a ditar o que deve e o que não deve ser transmitido, produzindo ele mesmo os programas que serão assistidos pela população - de preferência, em algum canal estatal. Daí a que se queira determinar o tema e o conteúdo de peças de teatro e de livros, ou simplesmente censurar as notícias, é um pequeno passo. Já vimos esse filme antes e, francamente, não vale a pena.
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O flerte do governo Lula com a censura é antigo. Está nos seus genes, na sua origem e vocação totalitária. Antes mesmo de chegar ao poder, o PT já dava mostras de sua relação tumultuada com a imprensa, elogiando-a sempre que lhe convinha, atacando-a ferozmente quando era criticado. Desde 2003, quando se instalaram no Palácio do Planalto, os companheiros já entraram em rota de colisão com a liberdade de expressão várias vezes: um dos primeiros casos de intolerância lulista foi a expulsão de um jornalista americano que teve a audácia de se referir, em um artigo de jornal, aos hábitos etílicos de nosso Presidente (infelizmente para Lula, não havia nenhum assessor por perto que o lembrasse do gosto pelo úísque de um Winston Churchill, por exemplo). Seguiu-se a malfadada e hoje quase esquecida iniciativa do governo de criar um Conselho Federal de Jornalismo, que outra coisa não seria senão um Conselho Federal de Censura, felizmente engavetada junto com outros programas inócuos, como o outrora badaladíssimo Fome Zero. Mas eles não desistem. A bola da vez é essa tal de "classificação indicativa", pela qual a companheirada pretende ressuscitar a tesoura da censura federal, criando uma espécie de polícia do bom gosto para decidir o que é melhor para seu filho, leitor.
Já tive a oportunidade de ver a propaganda do Ministério da Justiça em favor da "classificação indicativa" na televisão. Lembra muito uma propaganda veiculada pelo governo de Hugo Chávez na Venezuela, o qual fez aprovar medida semelhante anos atrás. Esta foi logo apelidada de "Lei Mordaça", pois na prática impôs o dever de as emissoras de televisão se autocensurarem, caso contrário correriam o risco de perderem a concessão do governo para continuarem funcionando. Essa mesma lei foi invocada por Chávez para fechar uma emissora que lhe fazia oposição, em maio passado. O governo já quis desarmar a população, retirando dela o direito de escolher defender-se ou não. Agora deseja controlar o que assistimos na TV, retirando do cidadão o direito de escolher o que seus filhos verão na telinha. Não há dúvida: estamos mesmo caminhando para o chavismo.
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