Nunca fui muito fã de textos confessionais. Talvez por timidez, talvez por excesso de objetividade, sempre achei que, de tudo que se pode pôr no papel ou na tela de um computador, relatos da vida pessoal são o que há, talvez, de menos interessante. Afinal, escrever sobre si mesmo, sobre a própria vida, é sempre um exercício de cabotinismo, de vaidade narcísica e de futilidade, e aí está o Orkut e a maioria dos blogs para comprovar isso (na minha terra, a gente diz que quem fala muito de si próprio é um cabra muito amostrado. A internet está cheia de gente amostrada). Além do mais, não importa o quanto se tente ou aparente ser honesto, o sujeito sempre vai querer inflar o próprio ego, enaltecendo as próprias qualidades, ao mesmo tempo em que vai dar um jeitinho de esconder este ou aquele detalhe pouco lisonjeiro, esta ou aquela lembrança constrangedora de sua biografia. Apesar disso, creio ser necessário quebrar um pouco essa regra auto-imposta para relatar um caso acontecido comigo, o autor destas mal-traçadas linhas, tempos atrás.
Pouca gente que me conhece hoje sabe, e certamente alguns se surpreenderão com o que vou dizer, mas houve uma época em que participei de uma organização esquerdista. Aliás, esquerdista não: de ultra-esquerda, revolucionária (pelo menos assim se intitulavam seus membros), marxista-leninista (trotskista, para ser mais exato), anticapitalista, antiimperialista, antiliberal, antiglobalização - enfim, extremista, ferrabrás, porralouca, mucho doida.
Eu tinha uns 18 ou 19 anos e acabara de entrar na universidade. Universidade pública, federal, situada lá na província, onde nada acontece. O curso, inicialmente Direito, depois de alguns porres e de uma crise existencial passou a ser História (achava, com razão, que o estudo das leis não tinha nada a ver comigo). Época de escolhas radicais, de muitas dúvidas e incertezas (com exceção da minha opção sexual, desde cedo hetero com todo orgulho e sem concessões). De namoros fugazes e amizades idem. De muita festa, bebedeiras homéricas e muita experimentação, caracterizada, acima de tudo, pelo tédio e arrogância naturais da adolescência. Tédio e arrogância ainda mais intensificados quando se lê um pouco mais que a média e quando os horizontes não se limitam à mediocridade da rotina escola-balada-escola. Para um moleque assim, entediado, impaciente e bastante pretensioso, a atração por idéias radicais e extremistas, por fórmulas mágicas capazes de mudar o mundo e redesenhar a própria natureza humana, é quase irresistível.
Mas eu dizia que fiz parte de uma organização esquerdista. Esta era uma sigla ainda hoje inexpressiva, teoricamente com alcance nacional - até mesmo internacional, segundo diziam - mas na verdade um grupelho minúsculo (com o perdão da redundância), cujos integrantes cabiam - e, até onde eu sei, ainda cabem -, com certa folga, numa Kombi. Apesar disso, suas pretensões revolucionárias eram ilimitadas e não caberiam dentro de um Jumbo. Era um grupúsculo orgulhosamente sectário, que insistia no purismo ideológico como resposta àquilo que chamava de "oportunismo" e "reformismo" dos partidos de esquerda tradicionais, como o PT e o PCdoB. Mais que isso: seus membros viviam às turras com outras seitas de extrema-esquerda, sobretudo trotskistas (a capacidade centrífuga dos trotskistas parece ser infinita), pois cada uma delas reivindicava para si o legado de Trotsky, acusando a outra de traição aos verdadeiros ideais revolucionários bolcheviques (Trotsky é uma espécie de Dom Sebastião dos ultra-esquerdistas, que insistem em dizer que, se fosse ele, e não Stálin, o sucessor de Lênin, a história teria sido diferente). Para se ter uma idéia do grau de radicalidade da tal organização, basta dizer que, para seus militantes, a URSS nunca foi socialista e Fidel Castro era um burguês contra-revolucionário. Embora falasse em nome dos operários e proclamasse, em panfletos mal redigidos, a necessidade da revolução proletária, a maioria dos integrantes dessas organizações era de estudantes de classe média, e seu principal terreno de atuação era a universidade e o funcionalismo público (o "proletariado" das regiões periféricas, de escassa indústria).
No início, achei que tinha encontrado, finalmente, minha "galera". A aproximação foi, digamos, quase natural. Como dez em cada dez estudantes, eu não queria ser identificado como um direitista - o mal absoluto, na visão de muita gente. Além disso, mesmo antes eu já sentia uma antipatia quase instintiva pela esquerda tradicional, principalmente pelo PT, cujos militantes me pareciam - e continuam a me parecer - um bando de bundas-moles, nem tão à esquerda para falar abertamente em revolução, nem tão à direita para defender o liberalismo. Mas o mais importante, o que mais me atraía naquele círculo bizarro, era seu caráter voluntariamente clandestino e conspiratório, underground, pois eles condenavam violentamente o "legalismo" dos partidos esquerdistas tradicionais e optavam pela atuação clandestina e à margem da lei, adotando - vejam só - codinomes, como num romance barato de espionagem. Apesar de, hoje em dia, achar tudo isso ridículo, devo confessar que aquilo me fascinava. Em minhas fantasias juvenis, eu já me via guiando as massas e tomando de assalto o Palácio de Inverno, ou descendo a Sierra Maestra para expulsar o imperialismo. Via-me também - e custou-me muito reconhecer o caráter mórbido disso - mandando os burgueses para o paredón, em verdadeiras orgias de fuzilamentos para purificar a humanidade e preparar o caminho para o paraíso socialista (no meio desses contra-revolucionários que eu despacharia para o além em gloriosos banhos de sangue deveria constar, pelo menos, este ou aquele desafeto pessoal, mas é claro que, na época, eu não encarava a coisa desse jeito).
Com o tempo, porém, aquela repetição incessante de slogans e verborragia pseudo-revolucionária ficou cansativa. O que antes me pareceu firmeza e convicção ideológica passou a ser para mim apenas intransigência e dogmatismo, agravados por reuniões intermináveis e por sessões infindáveis de masturbação intelectual - um marxismo academicista, apenas um pouco menos primário do que a vulgata esquerdóide que até hoje domina o ambiente acadêmico. Acima de tudo, eu queria menos blablablá e mais ação. Não entendia como um grupo que se dizia revolucionário e socialista (as duas palavras mais repetidas em suas proclamações, segundo lembro) insistia em apostar todas as suas fichas numa coisa chamada "movimento estudantil" - uma verdadeira palhaçada, como demonstra a comédia da invasão do prédio da reitoria da USP, ora em curso. Por causa disso, passei a ver aquela pose de carbonários, toda aquela ênfase no trabalho clandestino, como simples paranóia ou como algo meio fake, um teatrinho para atrair outros jovens entediados e ansiosos para mudar o mundo como eu. Por causa disso, também, nunca passei da condição de simpatizante, jamais alcançando o nível de militante da dita organização. Fui-me afastando cada vez mais dos "camaradas" (pelo menos eles não se chamavam de "companheiros", o que sempre achei uma veadagem) e assumindo posições cada vez mais independentes. Creio que a gota d'água para mim foi quando passei duas horas debatendo com um dos membros do grupo tentando convencê-lo das possibilidades propagandísticas da internet, ao que ele replicava, com veemência cada vez mais maior, argumentando que esta era um instrumento da pequeno-burguesia, logo não-revolucionário. Finalmente, após muita discussão e várias cervejas, descobri que eu era um burguês e nunca mais falei com aquele pessoal.
Desde então, tornei-me, para meus ex-camaradas trotskistas, um reacionário, um traidor, um vendido. Pior que isso: sou um "perdido" - era assim que eles chamavam alguém que se afastava das idéias sagradas bolcheviques, como se fosse uma menina que perdera a virgindade de forma desonrosa. Concordo com eles. De fato, há muito estou perdido para as idéias totalitárias, seja de que tipo forem. Também já perdi a inocência faz tempo, inclusive em política. Escolhi deixar a revolução de lado e cuidar de minha própria vida, seguindo o conselho de Nelson Rodrigues aos jovens: "envelheçam, pelo amor de Deus!". Envelheci. Cresci.
A lição que tiro daquela época é que hoje, quase quinze anos depois, vejo como é fácil deixar-se enganar, iludir-se quando se é muito jovem. Percebo claramente por que os partidos e ideologias totalitárias exercem tanta atração e atribuem tanta importância à juventude, possuindo, todos eles, uma "ala jovem". Sei que parece conversa de velho - coisa, aliás, que ainda estou longe de ser -, mas a verdade é que, aos 18 anos, por mais inteligente que alguém seja, não tem ainda o discernimento e a vivência necessários a uma opção de vida responsável e conseqüente. Com essa idade, ninguém é capaz sequer de dizer onde estará em cinco ou dez anos, quanto mais mudar o mundo. O que se busca, quando se tem 18 anos, é a emoção do momento, a satisfação egóica dos instintos. Ao contrário do que dizem os aduladores, não há nada de "puro" na juventude: há, sim, muita imaturidade e irresponsabilidade, muita porralouquice, o que faz dos jovens entre os 15 e os 25 anos presas fáceis de aproveitadores políticos, que vêem nessa falsa "pureza" a argila em que possam moldar o que quiserem. Felizmente, meu instinto "do contra" falou mais alto, já naquela época.
De vez em quando, chega para mim alguma notícia de onde anda fulano ou beltrano, os ex-futuros Lênin ou Trotsky brasileiros, que se batiam com tanto ardor em defesa da revolução socialista internacional e do governo de operários e camponeses. Soube que dois deles, de quem eu era mais próximo, continuam com as mesmas idéias, exercendo a mesma profissão de professores em universidades estatais ou em escolas da rede pública de ensino, intervindo de vez em quando em assembléias de servidores públicos e conclamando a todos para a greve geral que irá derrubar o capitalismo e deflagrar a revolução comunista mundial. Diante disso, agradeço todo dia aos céus, pois me convenço de que tomei a decisão certa.
3 comentários:
Oi, achei teu blog pelo google tá bem interessante gostei desse post. Quando der dá uma passada pelo meu blog, é sobre camisetas personalizadas, mostra passo a passo como criar uma camiseta personalizada bem maneira. Até mais.
Oi Gustavo, só pra constar que dei uma passada no seu blog. Li esse último texto ("Como me tornei um revolucionário") e, apesar de voCê já ter me contado essas histórias de viva voz, confesso que me diverti lendo. Você escreve bem.
Mas o que eu quero mesmo elogiar é a alusão ao personagem "Docontra" do Maurício de souza. Realmente foi um achado!
Um abração do seu amigo esquerdista,
Wilson
"Embora falasse em nome dos operários e proclamasse, em panfletos mal redigidos, a necessidade da revolução proletária, a maioria dos integrantes dessas organizações era de estudantes de classe média, e seu principal terreno de atuação era a universidade e o funcionalismo público"
Isto me faz lembrar da ocasião em que um grupelho desses chamado MRL(Movimento Resistẽncia e Luta) ocupou a reitoria da universidade em que trabalho. Muitos deles são de classe média; o padrão de atuação foi:ocupam a reitoria pela manhã, varios líderes vão de carro almoçar em casa em bairro nobre, voltam a tarde pra continuar sua mini-revolução, e nos fins de semana promovem "festinhas" (perdoem o eufemismo) no campus. Tudo, claro, em nome de "causas nobres".(!) Isto é o que eles orgulhosamente chamam com toda pompa e devoção de "Movimento Estudantil" (já eu particularmente penso que movimento ESTUDANTIL mesmo são os outros universitários que ESTUDAM, e não os que fumam maconha no campus, passam dez anos na universidade e se acham "revolucionários").
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