"Eu responderei minha pergunta. O Partido procura o poder por amor ao poder. Não estamos interessados no bem-estar alheio; só estamos interessados no poder. Nem na riqueza, nem no luxo, nem em longa vida de prazeres: apenas no poder, poder puro. O que significa poder puro já compreenderás, daqui a pouco. Somos diferentes de todas as oligarquias do passado, porque sabemos o que estamos fazendo. Todas as outras, até mesmo as que se assemelhavam conosco, eram covardes e hipócritas. Os nazistas alemães e os comunistas russos muito se aproximaram de nós nos métodos, mas nunca tiveram a coragem de reconhecer os próprios motivos. Fingiam, talvez até acreditassem, ter tomado o poder sem querer, e por tempo limitado, e que bastava dobrar a esquina para entrar num paraíso onde os seres humanos seriam iguais e livres. Nós não somos assim. Sabemos que ninguém jamais toma o poder com a intenção de largá-lo. O poder não é um meio, é um fim em si. Não se estabelece uma ditadura com o fito de salvarguardar uma revolução; faz-se a revolução para estabelecer a ditadura. O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder. Agora começa a me compreender?"
Toda vez que eu leio isso, fico arrepiado. O parágrafo acima é, pode-se dizer, o clímax do romance de George Orwell, 1984, e descreve um diálogo (na verdade, um monólogo) entre o torturador, O'Brien, e sua vítima, Winston. Enquanto Winston está sendo torturado até ser reduzido a um esqueleto vivo no Ministério do Amor, O'Brien lhe explica didaticamente os princípios do Ingsoc, o Partido, como a novilíngua e o duplipensar, e a amar o Grande Irmão (o "Big Brother", que tudo sabe e tudo vê, e que é mais conhecido hoje em dia por causa daquele programa de TV idiota). Tendo passado pelas mais cruéis formas de tortura, Winston, que fora preso juntamente com sua amante, Júlia, já passara pelo estágio de aprender: agora precisava compreender para, depois, aceitar. Nesse estágio final, onde deveria tomar para si que dois mais dois são cinco, seria encaminhado à temida sala 101, onde seria colocado diante de seus piores medos.
A leitura de Orwell é, certamente, o melhor caminho para entender o que se está passando na América Latina de hoje, e no Brasil em particular. Mais que isso: é uma das melhores formas de compreender os mecanismos do poder. Há, no diálogo entre O'Brien e Winston, mais ensinamento do que na maioria dos tratados de ciência política. Não há, em toda a literatura ocidental, trecho mais forte a dissecar o verdadeiro motivo que leva as pessoas, sobretudo aquelas imbuídas de uma fé messiânica na redenção da humanidade, a buscar o poder. O poder, diz Orwell, não tem outro compromisso senão com o próprio poder, é um fim em si mesmo. Ao contrário do que nos acostumamos a pensar mecanicamente - por inércia, por preguiça, por medo, ou por tudo isso junto -, é o poder, o poder puro, e não qualquer objetivo altruísta, o que move e conduz os políticos. Todos os políticos, indistintamente. Os de esquerda, defensores de soluções totalitárias - como as denunciadas por Orwell em seus livros -, mais que os outros.
Estando eu em Brasília já há alguns anos, convivo quase diariamente com essa realidade de um mirante, digamos, privilegiado. Por causa da minha profissão, vez ou outra tenho contato com ministros e parlamentares. Percebo, então, como é vazia essa gente, como são ocos seus discursos. É sempre a mesma ladainha, a mesma lengalenga sobre a importância de servir os interesses do "povo" etc. etc. É claro que é tudo falso, que ninguém no Congresso, ou nos Ministérios, ou em qualquer outra instância governamental, leva essa discurseira demagógica a sério, nem está nem aí para os desejos do "povo", ou seja lá o que isso for. É óbvio que a briga por verbas para seus currais eleitorais, a eterna barganha política, não atende a outro propósito senão a manutenção de seus cargos e privilégios corporativos, e nada mais. É o desejo de poder, às vezes da simples proximidade com o poder, o que está por trás de todas as suas ações.
Diariamente, somos bombardeados com informações de como o governo está se empenhando em melhorar a vida da população, em como o Bolsa-Família e a CPMF irão beneficar milhões de pessoas (no caso da CPMF, devemos colocar a sentença no condicional, pois a prorrogação da mesma acaba de ser derrubada no Senado), de como, enfim, o Estado existe para atender os anseios e necessidades do povo. Esqueçam essa balela. É tudo falso, é tudo mentira. Nem Lula, nem a "oposição", nem quem quer que seja, têm outra finalidade, pensam em outra coisa senão em conquistar e conservar o poder. Como sabe perfeitamente quem já leu Maquiavel, é essa a única finalidade da política. Poder. Mais poder. Sempre. Simples assim.
É difícil abrir os olhos para essa verdade tão simples, tão óbvia. Um dos mitos mais fortes, sobretudo entre a esquerda do Primeiro Mundo, é que políticos populistas como Lula e Chávez estão interessados em promover a justiça social. Nada poderia ser mais distante da realidade. Assim como as ditaduras totalitárias do século XX, como o nazismo e o comunismo, os populismos latino-americanos, ao prometerem o céu para as massas, apenas preparam o caminho para o inferno. Nem Lula, nem Chávez, nem Fidel Castro, nem Stálin, nem o Grande Irmão dão a mínima para justiça social e outras coisas do tipo. A única coisa que realmente lhes interessa, a única razão por que se lançaram à política, é o poder, nada mais, nada menos. No caso de Lula e dos companheiros petistas, o poder nunca foi um instrumento para alcançar nenhum objetivo mais elevado, mas o próprio objetivo perseguido, assim como uma forma de ascensão social. É isso que explica seus ziguezagues políticos, suas alianças espúrias, seus mensalões e valeriodutos, suas bravatas, sua proposital indefinição e vagueza ideológica. O poder pelo poder.
Não que todos os políticos sejam vagabundos e safados. Nada disso. Acredito que, em meio à imensa maioria de salafrários, sempre haverá um ou dois idealistas. Mas isso não faz a menor diferença. Idealistas, creio eu, também eram muitos nazistas e comunistas. Provavelmente o personagem do livro de Orwell, O'Brien, o torturador a serviço do Partido, seja um arquétipo do idealismo. Por isso sempre desconfiei de quem se mostra muito idealista em política. Pior que um político sem princípios, só um político com princípios. Principalmente, se for de esquerda.
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Durante muito tempo, acreditei na cantilena marxista de que o Estado, longe de ser um instrumento a serviço do bem comun, nada mais é do que uma máquina para garantir a opressão de uma classe por outra, ou, no dizer de Marx, "um comitê para gerir os negócios comuns da burguesia". Como em tudo o mais, Marx estava redondamente enganado. O Estado não é nada disso. É, sim, um instrumento de opressão, mas a serviço de si mesmo. É para sustentar essa formidável máquina, e não para transformar a terra num paraíso, que existem as leis, os exércitos e os impostos. É por isso que, quanto menor for essa máquina, quanto menor for sua burocracia e quanto menos funcionários tiver, quanto menor for sua ingerência na economia e nos assuntos privados dos cidadãos, melhor para a sociedade. Não por acaso, o animal que simboliza a receita federal, entre nós, é o leão. Não sendo possível nos livrarmos em definitivo desse monstro voraz, cumpre serrar seus dentes e aparar suas unhas, para que fique o mais manso possível.
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Se lêssemos um pouco Orwell, talvez percebêssemos que, de tudo o que o governo nos diz, 99% são mentiras, e o 1% restante é pura propaganda, o que dá quase no mesmo. Seríamos capazes, certamente, de enxergar o que sempre esteve diante de nossos olhos o tempo todo, mas que nunca tivemos a disposição, ou a coragem, de enxergar: que ninguém entra na política pensando no bem alheio, mas unicamente, exclusivamente, simplesmente, no poder, o eterno e inexorável poder. Poder não para distribuir justiça, para dar comida aos pobres e lar às criancinhas, mas para ter mais e mais poder. Não é à toa que os livros de Orwell são até hoje proibidos em países como Cuba. Não é à toa que elegemos e reelegemos Lula para presidente do Brasil.
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Enquanto não abrirmos os olhos para essa dura e fria realidade do poder, deixando de lado definitivamente as ilusões de justiça social brandidas pelos totalitarismos e populismos de todo tipo, correremos o risco de acabar como Winston, que, após ser reduzido a um farrapo humano, aprende a amar o Grande Irmão. "Se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota prensando um rosto humano para sempre", diz O'Brien no livro de Orwell. 1984 foi escrito há mais de cinqüenta anos. O futuro chegou.
Um comentário:
Oi, Gustavo! Que bom que você é do "contra"; assim produz tanta luz em meio a tanta mediocridade.
Um abraço
Alzira
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