quarta-feira, dezembro 05, 2007

"HÉRCULES 56": A HISTÓRIA SEQÜESTRADA


Tudo bem que o cinema brasileiro nunca foi lá essas coisas. Tudo bem que alguns gêneros específicos, como o documentário, costumam trair um claro viés ideológico de esquerda. Tudo bem que nossos cineastas não são assim uns Fellinis ou Antonionis, apesar de pretensão não lhes ser artigo escasso. Tudo bem até que eles sejam quase todos uns comunas enrustidos e que não possam viver sem mamar nas gordas tetas estatais, sonhando com o dia em que irão competir de igual para igual com Hollywood. Tudo isso eu posso entender, e até tolerar. O problema é quando resolvem "reescrever" a história, na tentativa de impingir-nos uma versão mitificada e falsificada de eventos ocorridos há nem tanto tempo assim. Quando isso ocorre, o que fazem não merece nem ser chamado de cinema. É melhor chamar de propaganda ideológica pura e simples.

Hércules 56, documentário dirigido por Sílvio Da-Rin, se encaixa exatamente nesse perfil. Assisti ao filme há alguns dias. O assunto é o destino dos 15 presos políticos trocados pelo embaixador dos EUA no Brasil, Charles Burke Elbrick, seqüestrado por duas organizações da esquerda armada em setembro de 1969, na primeira ação do gênero bem-sucedida da História.

Basicamente, Hércules 56 - o nome do filme é uma referência ao avião militar em que os prisioneiros embarcaram para o México e o exílio - é uma série de depoimentos dos ex-militantes de esquerda (alguns, como Zé Dirceu, nem tão "ex" assim) sobreviventes, entremeada por imagens de arquivo e por uma conversa informal entre os participantes da ação, hoje senhores grisalhos, em volta de uma mesa de bar. Enquanto os que foram libertados em troca da vida do embaixador desfiam suas reminiscências diante da câmera, lembrando passo a passo os momentos de tensão que precederam o embarque no avião e a chegada ao México e a Cuba - aonde a maioria se dirigiu, alguns para receber treinamento em guerrilhas -, os que tomaram parte direta no seqüestro relembram, em conversa bastante animada, os detalhes da operação espetacular. Em certo momento, confessam, às gargalhadas, que, caso o governo dos generais não atendesse suas reivindicações - a soltura dos 15 prisioneiros e a divulgação de um manifesto na imprensa - estavam, sim, dispostos a executar o embaixador. À certa altura, chegam mesmo a esboçar uma autocrítica sobre os erros da operação, que não foram poucos, e discutem se ela própria foi ou não um erro. Quanto a isso, as opiniões são discordantes - o próprio Zé Dirceu, além de Vladimir Palmeira e Flávio Tavares, três dos libertados no seqüestro, admitem que a ação foi equivocada desde o início, tendo contribuído para intensificar a repressão.

Dos que estão reunidos na mesa de bar, o atual Ministro da Comunicação Social do governo Lula, Franklin Martins, é o mais falante. Ele teve papel de destaque, como integrante da Dissidência Estudantil da Guanabara (que daria origem ao MR-8) no episódio do seqüestro, tendo sido um dos redatores do manifesto dos sequëstradores (que muitos até hoje acreditam erroneamente, por causa do filme de Bruno Barreto, O Que é Isso, Companheiro?, ter sido obra do Fernando Gabeira). O filme termina com uma frase dele. Ao discutir a questão de se o seqüestro foi ou não um erro, Franklin Martins afirma mais ou menos o seguinte (escrevo de memória): o seqüestro não pode ser considerado uma ação errada, assim como a própria luta armada, pois tanto esta como aquele contribuíram significativamente para a derrota da ditadura e o restabelecimento da democracia no Brasil. Como fica claro pelos extras do DVD, o diretor do filme, Sílvio Da-Rin, tem opinião semelhante.

Foi aqui que me convenci daquilo que coloquei nos dois primeiros parágrafos deste texto. A tese da luta armada "democrática", de resistência à ditadura, é uma das mais presentes na literatura e na produção cinematográfica sobre o período do regime militar no Brasil. E é também uma das falsificações mais grosseiras e escandalosas de que se tem notícia. Não se pode sequer alegar falta de informações sobre o assunto: há uma vasta bibliografia que trata do tema, dentre a qual a série de quatro livros de Elio Gaspari, por exemplo, que não deixa qualquer dúvida sobre os verdadeiros objetivos dos revolucionários brasileiros. Ao contrário do que reza a lenda, estes não queriam saber de democracia, eleições livres e outras "formalidades burguesas", mas, sim, substituir um regime autoritário por outro, totalitário e comunista, transformando o Brasil não numa Suécia ou numa Finlândia, mas num "Cubão". Um dos que participaram do seqüestro de Elbrick, o hoje professor universitário Daniel Aarão Reis, também está presente no filme, ao lado de Franklin Martins. Ao contrário deste, Aarão Reis é um crítico honesto da luta armada dos anos 60 e 70, já tendo afirmado, em diversas ocasiões, seu caráter totalitário e não-democrático, inspirado em ditaduras comunistas como a de Cuba. Estranhamente, ele fala muito pouco no documentário. Deve ter sentido que estava em minoria. Ou que não estava no script.

Durante as últimas três décadas, a versão fantasiosa dos guerrilheiros como heróicos combatentes da liberdade contra os cruéis torturadores militares foi repetida à exaustão nos livros didáticos. Agora, com filmes como Hércules 56 e Batismo de Sangue, essa versão adquire enfim um formato cinematográfico, com apoio oficial (um dos patrocinadores do filme é a onipresente PETROBRAS). Que os militares foram cruéis e torturadores, não resta dúvida. Agora, que os guerrilheiros-terroristas foram heróicos combatentes da liberdade, e que sua luta visava a restaurar a democracia no Brasil, como sugere o filme de Sílvio Da-Rin, são outros quinhentos.

Um dia, num futuro distante, os que pegaram em armas contra o regime militar no Brasil vão admitir, finalmente, que sua luta não era por democracia coisa nenhuma. Que estavam lutando para instaurar aqui um regime muito mais brutal e sanguinário do que o que queriam derrubar e que, caso fossem vitoriosos, teríamos não três centenas de mortos em vinte anos de arbítrio, mas milhares ou milhões de cadáveres. Um dia, também, quem sabe, algum cineasta brasileiro fará um filme honesto sobre os "anos de chumbo" no Brasil. Desconfio, porém, que isso só ocorrerá quando for descoberta a cura para o mau-caratismo e a idiotice, três anos depois de fundarmos nossa primeira colônia na terceira lua de Júpiter.
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P.S.: Na foto acima, os presos políticos trocados pelo embaixador norte-americano sendo recebidos em Havana, embevecidos, pelo grande democrata e humanista, "El Comandante" Fidel Castro. A prova viva de que o objetivo dos guerrilheiros ("terroristas" é a palavra, mas o bom-tom não permite) era mesmo a democracia, os direitos humanos, a liberdade, eleições livres e pluralismo...

Um comentário:

Anônimo disse...

Irei assistir e darei minha opiião...