Confesso. Sou um egoísta. Sempre fui. Desde criancinha. Claro, de acordo com a teologia cristã, eu vou para o inferno. Mas não me importo, até porque não creio em Deus, nem em Diabo, nem em boitatá ou curupira. Isso significa também que, de acordo com a ideologia oficial do Estado brasileiro atualmente, eu sou um canalha, um reacionário, um burguês desprezível. Nem precisa dizer que não dou a mínima para isso também.
É óbvio que, para afirmar tal coisa a respeito de mim mesmo, eu teria que ter uma forte argumentação a favor do egoísmo, tido entre nós como um dos vícios mais funestos, um dos pecados mais terríveis que alguém possa cometer. Teria que ter uma base muito sólida, ou ser muito cara-de-pau, ou as duas coisas, para provar que é bem melhor ser egoísta e se importar apenas com a própria vida do que ser um militante de causas altruístas como a luta contra a extinção dos ursos panda chineses ou o aquecimento global. Devo dizer que a tarefa não é das mais difíceis. Nem precisei ler Ayn Rand ou Milton Friedman para descobrir a delícia e a virtude que estão por trás dessa minha opção consciente. Bastou um pouco de Voltaire.
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François-Marie Arouet, o Voltaire (1694-1778), como quem já leu a Barsa deve saber, foi o principal filósofo do Iluminismo na França. E foi também um grande cínico. Em um século, o XVIII, pontuado por mentes brilhantes e detestáveis, ele foi talvez a mais brilhante de todas, e pessoalmente a mais detestável. Fortemente anticlerical (chamava a Igreja católica de "A Infame"), embora acreditasse na possibilidade de Deus (mas e daí?, perguntava; pois se há mesmo um Deus bondoso e todo-poderoso, por que existem terremotos?) e inimigo de toda forma de obscurantismo, cortejava, porém, algumas cabeças coroadas da Europa, como o Rei da Prússia, Frederico II, em cuja corte chegou a viver por alguns anos. Adversário implacável do absolutismo, desprezava, no entanto, o povo, a quem chamava de "a canalha". Era bastante esperto também, e, quando se tratava de ganhar dinheiro, tinha poucos escrúpulos. Certa vez, aproveitando-se de uma loteria mal organizada, comprou todos os bilhetes e embolsou o prêmio. Escritor, romancista e teatrólogo, desdenhava o público, que considerava uma fera terrível, que precisava ser domada. Era o que se poderia chamar de um esnobe, um aristocrata do pensamento.
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O contraponto perfeito de Voltaire é seu contemporâneo, o filósofo suiço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), autor de O Contrato Social. Ao contrário de Voltaire, Rousseau acreditava na virtude pessoal e na bondade natural dos homens, e fazia mesmo dessa crença uma obsessão e a base de sua filosofia. Diferentemente de Voltaire, Rousseau rejeitava a ciência e o progresso, assim como as desigualdades sociais decorrentes do capitalismo, e advogava, em lugar da sociedade industrial, um retorno à natureza. Em nome da "vontade geral", opunha-se à monarquia constitucional defendida por Voltaire, defendendo o que chamou de "soberania popular". Foi em nome de seus ideais de igualdade e justiça que a ala mais radical da Revolução Francesa, os jacobinos, tendo à frente Robespierre, o "Incorruptível" - tão incorruptível que, dizem, morreu virgem -, desencadeou o Terror na França, cortando milhares de cabeças dos que se opunham ao "Reino da Virtude" e lançando as sementes dos totalitarismos do século XX, como o nazismo e o comunismo. Paradigma da Virtude, Rousseau acreditava que o Estado, como encarnação da vontade geral, poderia substituir o indivíduo e a família. Coerente com essa crença, entregou seus filhos a um orfanato estatal e foi passear à beira do Lago Genebra, onde costumava sonhar com a redenção da humanidade, sustentado por uma rica viúva. Rousseau, o romântico, acreditava que os homens nascem bons e livres, apenas a sociedade é que os corrompia. Voltaire, o racionalista, acreditava que a sociedade poderia até ser algo bom, mas os homens, não. Durante um período, Voltaire e Rousseau trocaram uma rica correspondência. Certa feita, diante da insistência de Rousseau em condenar o progresso e em louvar as virtudes de uma vida pastoril, Voltaire, fiel a seu estilo sarcástico, não titubeou: sugeriu-lhe ficar de quatro e comer capim.
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Ao contrário de seu colega genebrino, Voltaire não dava a mínima para as assim chamadas causas sociais, esse fetiche das esquerdas. A coisa mais importante que um homem poderia fazer na vida, a única realmente de algum valor, dizia, era cuidar do próprio jardim. Somente uma vez Voltaire deixou suas roseiras de lado e entrou de cabeça na defesa de uma causa. Foi quando um morador de Toulouse, no sul da França, Jean Calas, protestante, foi acusado falsamente de planejar o assassinato de um filho que se havia convertido ao catolicismo. Voltaire sentiu, corretamente, cheiro de Inquisição no ar. O resultado foi uma das páginas mais corajosas e uma das defesas mais brilhantes da liberdade religiosa já escritas na história humana, seu Tratado sobre a Tolerância.
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Mesmo nesse caso, porém, Voltaire foi coerente com sua opção individualista. Ele não defendeu Jean Calas porque simpatizasse pessoalmente com ele, ou porque gostasse dos protestantes, ou porque queria mostrar ao mundo que era capaz de gestos altruístas e que não era tão individualista assim, afinal. Nada disso. O que estava em jogo para ele, naquele momento, era o mesmo sentimento que o levava a cultivar seu jardim: a defesa da liberdade individual. Em nome desta, ele estava disposto a servir de advogado em um obscuro caso de intolerância religiosa, em pleno "Século das Luzes", numa distante vila no interior da França. Ao fazê-lo, ele afrontou, assim como faria depois Émile Zola no caso Dreyfus - outro caso de intolerância religiosa, travestido de patriotada militarista -, um país inteiro, uma época inteira.
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Voltaire foi um dos maiores egoístas que já andaram sobre a terra. E um dos maiores benfeitores da humanidade, em todos os tempos. Seu cinismo legou-nos coisas como a liberdade de pensamento e a busca da felicidade individual, artigos até hoje considerados de luxo em muitas partes do planeta ainda submersas no obscurantismo. "Não concordo com uma palavra do que você diz, mas, enquanto viver, lutarei até o fim para que você tenha o direito de dizer o que pensa", é certamente sua frase mais citada. Pode-se dizer que ele é mesmo o modelo do célebre paradoxo formulado por Adam Smith, o pai da economia clássica, segundo o qual vícios individuais, como a cobiça e a avareza, geram benefícios coletivos.
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Entre nós, brasileiros, as idéias de Voltaire nunca foram muito populares. Em vez de seu saudável ceticismo e de sua mordacidade política, bem presente em sátiras como Cândido, preferimos Rousseau, com seu igualitarismo meio histérico. Este sempre teve, por estas bandas, discípulos devotos. É fácil encontrá-los: no governo, em ONGs, nas redações dos jornais e revistas. Alguns vestem batina. Outros, estão aboletados em algum Ministério. Todos preocupam-se com o próximo, com a humanidade, exalando virtude por todos os poros, arrotando altruísmo e compromisso com a coletividade, ansiosos por "fazer a diferença". Querem revolucionar o mundo, mudá-lo de alto a baixo para restaurar o império da virtude, assim como Rousseau e Robespierre. Em nome desse objetivo abstrato e de um futuro hipotético, no qual imperaria o bem absoluto, estão dispostos a tudo, não se importando em fazer o mal aqui mesmo, de forma concreta, no presente. A perfeita definição do revolucionário, pode-se dizer.
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Costuma-se afirmar, a título de boutade, que quem não foi de esquerda na juventude não tem coração, e quem continua a sê-lo na maturidade não tem cérebro. Eu discordo em parte. Como demonstram os 100 milhões de mortos produzidos no século XX pelo Reino da Virtude, quem é de esquerda, seja que idade tiver, não tem nem cérebro nem coração. Agora com licença, que eu vou cuidar do meu jardim.
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