
De vez em quando, sou obrigado a trocar idéias com cérebros ginasianos, altamente influenciáveis pela última leitura que fizeram. Estou acostumado a esse tipo de coisa desde meus tempos de professor. Lembro que alguns alunos ficavam entusiasmados com certas teorias políticas, ao ponto de querer aplicá-las imediatamente na realidade.
Os mais inteligentes logo percebiam que aquilo era uma canoa furada, e abandonavam esse projeto delirante. Outros, porém, insistiam no delírio, acreditando ingenuamente na possibilidade de ajustar o mundo ao que disse tal ou qual filósofo iluminado em tal ou qual parágrafo de sua obra magna. É uma forma preguiçosa de pensar, típica de mentes adolescentes e dogmáticas.
É o caso de um certo Diogo, que, ao que parece, deve ter acabado de ler O Leviatã, de Thomas Hobbes e, acometido da mesma sensação atordoante que geralmente se tem ao se terminar de ler o livro pela primeira vez, acredita ter encontrado o Graal. Ele está convencido de que o Estado-Leviatã é superior à democracia. Está convencido de que eleições livres, liberdade de expressão e pluralismo político são bobagens e que renunciar a essas conquistas da humanidade em nome de uma suposta proteção estatal é algo razoável. Até aqui eu consigo entender. O que não consigo entender de jeito nenhum é por que ele nega que isso seja defender o totalitarismo.
Diogo escreveu o seguinte (e começou com uma epígrafe de Platão; sabe como é: para dar mais autoridade ao que diz):
"A liberdade em excesso, portanto, não conduz a mais nada que não seja a escravatura em excesso, quer para o indivíduo, quer para o Estado". (Platão, República, 564a)
O problema com a utilização de epígrafes é que elas podem dizer qualquer coisa, dependendo da intenção de quem as utiliza. Sempre procurei ser bem cuidadoso quanto a isso. Retirada de seu contexto, uma epígrafe pode ser utilizada para justificar tudo, até o contrário do que se quer dizer. Eu, se quiser, posso interpretar a frase acima de forma alternativa, por exemplo como um alerta contra os que usam a democracia para destruí-la (os extremistas e os demagogos). No caso, o contexto é a tese do Diogo segundo a qual o a democracia seria um regime inferior, pois padeceria de um “excesso de liberdade”, que se revelaria na corrupção do governo lulopetista (um “oba-oba do caralho”, como ele diz). Conclusão: Platão estava falando do mensalão e da roubalheira no ministério dos Esportes…
Agora que aprendi que Platão, além de filósofo, tinha poderes divinatórios (e que a resposta para a corrupção é acabar com a democracia), vou tentar entender o que o Diogo diz em seguida:
O problema que coloquei, e você não entendeu, não é a liberdade, mas sim o excesso.
Sou obrigado a corrigir o leitor, já que ele não se corrige: o problema, caro Diogo, é sim a liberdade, e não seu “excesso”, como você diz: é essa a questão para Hobbes. A liberdade, para ele, é um bem a que os indivíduos renunciam em troca de segurança, em primeiro lugar. Você acha isso perfeitamente válido nos dias de hoje. Portanto, só posso concluir que a liberdade, para você, é um bem descartável, e não um direito natural e inalienável do cidadão.
Prossegue Diogo:
Você coloca as coisas numa teoria dualista que não posso concordar: se é contra a democracia, então é pró-ditadura. Ou seja, ou se é democrata, ou se é pró-ditadura.
Será que fui eu que coloquei a questão em termos dualistas, como diz o leitor? Vamos lembrar o que ele mesmo escreveu:
“Cara, não acredito na democracia”
“O grande problema, a meu ver, da democracia é sua liberdade exacerbada. Tudo pode nessa porra de governo, um oba oba do caralho!”
“Com toda a certeza o Estado Leviatã é muito melhor”
“Renunciar à liberdade em troca da proteção não é nenhum absurdo”
“O Estado tem total importância dentro da composição do cidadão”
Quem escreveu o que está aí em cima é alguém que nega ter uma visão dualista sobre a democracia. Alguém que diz não acreditar nela, pois esta padeceria de uma “liberdade excessiva” (daí a corrupção dos petralhas, nessa visão distorcida e míope), entre outras coisas. A diferença entre mim e ele é que eu acredito na democracia, e acho-a superior a todos os outros regimes. Ele acha que ditadura é melhor.
Mesmo assim, Diogo diz: “sou contra a democracia, mas não a favor da ditadura”. Sério? Conheço apenas duas alternativas possíveis à democracia: a ditadura ou a anarquia. Anarquista, já sei que Diogo não é, pois ele diz defender o Estado (e um Estado “forte”, o Estado-Leviatã). O que sobra?
Vamos colocar a questão assim: digamos que apareça alguém dizendo-se a favor da ditadura. Do que devo chamá-lo? De democrata?
Agora eu pergunto: as frases acima são de quem é a favor ou contra ditaduras?
Por que o Diogo se nega a admitir seu juizo de valor e, portanto, seu dualismo antidemocrático? Porque leu Platão (com as mesmas lentes com que leu Hobbes):
Platão, na Reública, se demonstra tanto contra a democracia quanto ao seu oposto, a tirania. Segundo seu entendimento, a tirania viria da democracia e, portanto, deveria combater as duas formas de governo.
Sim, Platão tinha um problema com a democracia grega de seu tempo – que ele culpava pela morte de seu mestre Sócrates (e que era bem diferente da democracia representativa atual, mas isso também passou despercebido ao Diogo). Ele preferia um tipo de regime aristocrático. A pergunta é: e daí? Platão tambem era a favor de um tipo de sociedade ideal dividida em castas, como na Índia. Devemos tantar "aplicar" isso também?
Embora o leitor negue, fica claro que ele enxerga na filosofia de Platão uma justificativa para regimes totalitários, como a Alemanha nazista e a URSS. Como, aliás, muitos viram, enxergando em A República uma espécie de utopia precursora do comunismo e do nazismo (e, de fato, pode-se tracar a origem filosófica do totalitarismo a esse livro seminal). Se é esse o caso, aproveito para repetir: sorry, sou pela democracia.
Diogo vai além, e, enxergando um “problema metodológico” nos exemplos que dei, recusa-se a ver qualquer relação entre o Estado hobbesiano e regimes totalitários.
De qualquer maneira, há um problema metodológico em seus exemplos. Aonde é que podemos afirmar que Khmer Vermelho, Fidel Castro ou Ditadura Stalinista são exemplo de uma aplicação prática da teoria hobbesiana? Sabemos que todos esses exemplos fogem (e muito) do que seria a aplicação da teoria hobbesiana da maneira como ele a coloca. E você, como leitor e professor de Hobbes, sabe muito bem disso!
Quando eu lecionava, fazia questão de dizer que teorias são teorias, não fórmulas mágicas que podem ser aplicadas como experimentos sociais. Onde quer que isso aconteceu, aliás, o resultado foi opressão e tirania. Com Hobbes não é diferente. Exatamente por isso, teorias são coisas perigosas, que não deveriam ficar ao alcance de cérebros juvenis: estes são incapazes de perceber a relação entre hobbesianismo e totalitarismo, por exemplo. E terminam negando o óbvio, caindo numa grande confusão.
Eu até me disporia a debater filosoficamente com gente como o Diogo, se ele não tivesse recorrido a um argumento bucéfalo. Uma das maiores lorotas que alguém já inventou é que a democracia favorece a corrupção, enquanto a ditadura a combateria. Isso ocorre porque, com a imprensa livre, os escândalos são mais divulgados, dando a impressão, nas mentes pouco cultivadas, de que se rouba mais na democracia. É um argumento bucéfalo, porque se baseia numa inexistente relação causal entre liberdade política e roubalheira. Além do mais, corresponde a dizer que os petistas, por exemplo, são os maiores democratas que existem, pois são os que mais roubam. Se, mesmo com a vigilância das instituições democráticas, esse pessoal apronta tanto, imagine o que fariam com poder absoluto e imprensa sob censura? Já pensaram se, em vez da VEJA, só tivessemos, sei lá, a Carta Capital?
De todos os motivos que se poderia ter para desprezar a democracia, a crença de que ela padeceria de um "excesso de liberdade" que favoreceria a corrupção é, de longe, o mais idiota, o menos digno de ser rebatido. Basta lembrar da frase de Lord Acton: "O poder corrompe; e o poder absoluto corrompe absolutamente".
Não, Diogo, não concordo que o grande problema da democracia seja o “excesso de liberdade”. Qualquer excesso da democracia é resolvido com mais, e não menos democracia. Do mesmo modo que qualquer virtual excesso da liberdade de imprensa é resolvido com mais, e não menos, liberdade de imprensa, como dizia Thomas Jefferson. Qualquer coisa diferente disso – censura, por exemplo – é flerte com a tirania e com o totalitarismo. Ponto final.
O engraçado é que isso tudo começou, lembrem, porque um energúmeno veio aqui e chamou o tirano Fidel Castro de "herói da humanidade", afirmando que trocaria a democracia por um prato de lentilhas...
A história é bastante conhecida, mas vale a pena repetir: certa vez, perguntaram a Winston Churchill o que ele achava da democracia. Sua resposta foi a seguinte: a democracia é o pior dos regimes politicos, excetuando todos os outros. Assino embaixo.
Enfim, assim como não é possível "derrubar" uma teoria política, não se pode "aplicá-la", ipsis literis. Quando tentaram, o resultado foi apenas terror e opressão (e aí estão Hitler e Stalin para provar). Seria bom, juntamente com a leitura, um pouco de senso crítico e de bom senso. É isso que distingue um estudioso sério de um boçal.