Às vezes alguém me surpreende com um comentário curioso, ou fora do comum. Como o de um leitor anônimo, que diz trabalhar para uma estatal do governo de Angola desde 2002, e já ter morado em Luanda por dois anos. Ele me pede que escreva alguma coisa sobre a guerra civil que se abateu sobre Angola desde a independência do país de Portugal, em 1975. Ele gostaria de conhecer minha opinião, como professor de História, sobre o conflito e, em especial, sobre o apoio que um dos lados, a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) do falecido Jonas Savimbi, recebeu de "determinados países" etc.
OK, vamos lá. Mesmo sabendo que é mais uma tentativa de pautar o blog (desconfio saber a posição do autor do comentário sobre o tema). Além do mais, como já estudei o assunto, não vejo por que não compartilhar aqui minhas impressões a respeito.
Provavelmente, o autor do comentário gostaria que eu escrevesse o seguinte:
Em 1975, as gloriosas forças internacionalistas cubanas, inspirados no exemplo do Guerrilheiro Heróico Ernesto Che Guevara, acorreram voluntariamente em socorro do povo irmão de Angola, que acabara de se tornar independente, após renhida e heróica luta de guerrilhas, contra o colonizador português. Sob a liderança sempre sábia e esclarecida do companheiro comandante-em-chefe Fidel Castro Ruz, as tropas cubanas, movidas pelo forte sentimento de solidariedade internacionalista, atravessaram o Oceano Atlântico num esforço inédito - apelidado de Operação Carlota - para auxiliar as forças amigas do progressista MPLA contra os mercenários da FNLA e da UNITA, a soldo do imperialismo ianque e do regime fascista da África do Sul. Foi uma luta gloriosa, marcada por batalhas heróicas como a de Cuito Cuanavale (1988), em que os bravos soldados de Martí enfrentaram e derrotaram as hordas do odioso regime do apartheid sul-africano, apoiado pela Casa Branca e pelo dinheiro de Wall Street. Graças à bravura e à tenacidade dos combatentes cubanos, muitos deles negros, as forças do imperialismo e do racismo foram rechaçadas em Angola, a independência da Namíbia foi assegurada e o regime criminoso do apartheid chegou ao fim na África do Sul...
É mais ou menos assim que a História da intervenção cubana em Angola - e na África, em geral - é contada pelo Granma, o jornal oficial da ditadura dos irmãos Castro em Cuba (e, acredito, pelo governo do MPLA em Angola). A verdade histórica, porém, é um pouco diferente desse conto cor-de-rosa.
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Em 1975, as gloriosas forças internacionalistas cubanas, inspirados no exemplo do Guerrilheiro Heróico Ernesto Che Guevara, acorreram voluntariamente em socorro do povo irmão de Angola, que acabara de se tornar independente, após renhida e heróica luta de guerrilhas, contra o colonizador português. Sob a liderança sempre sábia e esclarecida do companheiro comandante-em-chefe Fidel Castro Ruz, as tropas cubanas, movidas pelo forte sentimento de solidariedade internacionalista, atravessaram o Oceano Atlântico num esforço inédito - apelidado de Operação Carlota - para auxiliar as forças amigas do progressista MPLA contra os mercenários da FNLA e da UNITA, a soldo do imperialismo ianque e do regime fascista da África do Sul. Foi uma luta gloriosa, marcada por batalhas heróicas como a de Cuito Cuanavale (1988), em que os bravos soldados de Martí enfrentaram e derrotaram as hordas do odioso regime do apartheid sul-africano, apoiado pela Casa Branca e pelo dinheiro de Wall Street. Graças à bravura e à tenacidade dos combatentes cubanos, muitos deles negros, as forças do imperialismo e do racismo foram rechaçadas em Angola, a independência da Namíbia foi assegurada e o regime criminoso do apartheid chegou ao fim na África do Sul...
É mais ou menos assim que a História da intervenção cubana em Angola - e na África, em geral - é contada pelo Granma, o jornal oficial da ditadura dos irmãos Castro em Cuba (e, acredito, pelo governo do MPLA em Angola). A verdade histórica, porém, é um pouco diferente desse conto cor-de-rosa.
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A intervenção cubana em Angola começa muito antes da independência, já no começo dos anos 60 (para ser exato, em 1964), quando a ditadura castrista começa a treinar guerrilheiros do MPLA. Nessa época, Fidel Castro e Che Guevara se dedicavam a "exportar a revolução", mediante organizações criadas por Havana como a Organização de Solidariedade para a África, Ásia e América Latina (OSPAAL) e a Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS, uma espécie de proto-Foro de São Paulo). Com base nesse objetivo, os barbudos começaram a fornecer treinamento, dinheiro, armas e pessoal para diversas guerrilhas no Terceiro Mundo, em especial na América Latina (e, ao contrário do que conta a lenda, não somente contra regimes ditatoriais - vide a Colômbia e a Venezuela nos anos 60, por exemplo). Já em 1962, Fidel Castro pronuncia sua famosa Segunda Declaração de Havana, na qual promete "transformar os Andes na Sierra Maestra da América do Sul". O objetivo, como escreveu o porco fedorento Che Guevara, era "criar um, dois, vários Vietnãs"...
Um lugar que parecia perfeito para os cubanos colocarem em prática essa idéia incendiária era a África. Foi para lá que Guevara se dirigiu, em 1965, para tentar organizar uma guerrilha no Congo. A guerrilha foi um fracasso total, como o próprio Guevara admitiu - um de seus contatos no Congo era um tal Laurence Kabila, que trinta anos depois se destacaria como um dos maiores carniceiros e genocidas africanos -, só sendo superada pela aventura fracassada da guerrilha de Guevara na Bolívia, em 1967 (quando morre o homem e nasce a lenda - e bota lenda nisso...).
Mas, voltando à Àfrica. Em meados dos anos 70, as guerrilhas latino-americanas apoiadas por Cuba haviam sido quase todas derrotadas (inclusive no Brasil), e Fidel Castro, cada vez mais dependente economicamente da URSS (e talvez um pouco entediado também), estava inquieto. Ele precisava de uma ação gloriosa, uma campanha militar, para se projetar internacionalmente como líder do Terceiro Mundo. Mas onde? Quase todas as colônias africanas já haviam conquistado sua independência. Quase todas, menos as colônias de Portugal. E, dentre estas, principalmente Angola, a mais rica de todas (petróleo, diamantes etc.).
Assim, em 1975, antes mesmo da declaração de independência (em novembro), ele começa a enviar primeiro "assessores" e depois tropas a Angola. O país se transformara num palco da Guerra Fria, com três forças se digladiando: o MPLA, marxista e apoiado, além de Cuba, pela URSS; a FNLA (apoiada pelo Zaire); e a UNITA (apoiada pela China, pelos EUA e pela África do Sul). Nos combates, o MPLA sai vitorioso e impõe sua ditadura, com apoio cubano, que dura até hoje.
Tudo isso é conhecido. O que poucos sabem é por que Fidel Castro resolveu mandar quase 30 mil soldados a Angola. Aqui é que entra minha visão de professor de História.
Em primeiro lugar, havia a ambição pessoal do Coma Andante (também conhecido pelos cubanos como Esteban - "Este Bandido"). Nos anos 70, ele queria emergir como figura de proa da causa terceiro-mundista, ou do "movimento não-alinhado", que estava então no auge. Ele necessitava disso, em parte por razões pessoais, ligadas à egolatria, e em parte porque desejava também livrar-se um pouco da dependência em relação à URSS, acentuada após uma série de desastres econômicos (Cuba é um exemplo perfeito de como destruir um país em nome do socialismo). Por esse motivo, ao que tudo indica a decisão de intervir em Angola foi dele, Fidel Castro, e não dos soviéticos, que parece ficaram até preocupados de início com a decisão (era a época da "détente" entre a URSS e os EUA). De qualquer modo, o Napoleão do Caribe viu recompensada sua ambição ao ser eleito, em 1979, presidente do "movimento não-alinhado" (apesar de ter tido que justificar, no mesmo ano, a invasão soviética ao Afeganistão, como justificara em 1968 a invasão soviética da Tchecoslováquia - sabem como é, Fidel é um "antiimperialista"...). E havia, claro, outros motivos internacionalistas para estar em Angola: motivos negros (petróleo), brancos (marfim), brilhantes (diamantes)... Esses motivos, ao que parece, também seduziram o comandante das tropas cubanas em Angola, o general Arnaldo Ochoa Sánchez, fuzilado em 1989 (pelo menos é o que está na acusação contra ele - o mais provável, a meu ver, é que tenha sido um expurgo).
Mas os cubanos são um povo generoso, e havia outras latitudes que demandavam sua assistência. Outro país africano que conheceu a solidariedade do regime castrista foi a Etiópia, que em 1974 se tornou um regime marxista. Os cubanos estiveram por lá também, dando uma força para o companheiro Mengistu Hailé Mariam, que estava brigando com os somalis por um pedaço de deserto. Morreram alguns milhares de etíopes e somalis, mas nada comparado ao 1 milhão de mortos na grande fome de 1984. Enquanto o povo etíope morria, os cubanos estavam por lá, ajudando o regime de Adis-Abeba.
"Ok, ok, mas você não vai falar nada da África do Sul? O Nelson Mandela agradeceu ao Fidel pela luta contra o regime do aparheid" etc. Pois é, né? Um dos grandes mistérios para mim é como alguém como Mandela, incensado pelo mundo como um líder democrático, viu alguma relação entre a presença cubana na África e o fim do apartheid na África do Sul. Provavelmente, isso se deve ao fato de que ele estava preso na época, sei lá eu... Sei apenas que a queda do apartheid na África do Sul não teve nada a ver com o que os cubanos fizeram em Angola: o regime caiu por causa da combinação de um forte movimento de oposição interna com as pressões da comunidade internacional - pressões que a ditadura castrista nem de longe conhece, apesar de toda a retórica sobre o "bloqueio".
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Quanto a Cuba, bom... Depois de tanto dinheiro jogado fora e, principalmente, de tantas vidas perdidas em guerras e aventuras inúteis no exterior para saciar a megalomania de um unico homem, o país é hoje uma ruína - econômica, física, social, moral. Somente a censura e a repressão a quem pensa diferente do regime funcionam. Realmente, um modelo de solidariedade a ser exportado...
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Bom, acho que é isso. Não sei se preenchi as expectativas do caro leitor. Provavelmente não. Mas quem disse que ligo para isso? Para mim, são os fatos que interessam. Não o que diz Fidel Castro.
Um comentário:
Cara, muito legal a sua visão da guerra em Angola. A influência de Cuba foi realmente bem grande, senão decisiva. No entanto, ficou parecendo que o MPLA atuou como coadjuvante apenas. Marionetes do "Comandante". A guerra civil continuou até 4 de abril de 2002, dia em que foi assinado o acordo de paz. Até essa data, a UNITA tinha apoio dos EUA. Você pouco falou do apoio que a UNITA recebia. Ok, entendi que você foi para o centro da questão.
Mas será que não vale falar um pouco desse interesse que os EUA e a África do Sul tinham nessa guerra? Será que os EUA apoiaram a UINTA apenas para tentar livrar mais um país de uma ditadura horrenda e cruel ou será que petróleo e diamantes têm algo a ver com isso?!
Quando MPLA e UNITA "racharam", o país ficou dividido assim: MPLA tomou para si grande parte do território onde havia petróleo; a UNITA, parte das minas de diamantes. Quando as torres gêmeas desabaram, 2001, houve festa nas ruas de Luanda. Por que será?
Bem, mesmo assim fiquei satisfeito com o que você relatou. Tem muito a ver com a história que se conta por lá.
Uma curiosidade. Quando a guerra civil estourou, muitas petrolíferas norte-americanas tinham os pés fincados - como até hoje - no país. O governo precisava dar segurança aos funcionários e executivos dessas empresas, certo? E quem passou a flanquear os prédios e proteger os funcionários americanos?!!! Soldados cubanos, claro.
História é fascinante.
Abraço
A propósito, vou deixar de assinar anônimo. Meu nome é Eduardo.
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