José Saramago é o maior nome atual das Letras Portuguesas. É o único falante da língua de Camões a ostentar um Prêmio Nobel de Literatura em sua sala de estar. Ele é uma dessas pessoas veneráveis, que se tornam ainda mais veneráveis diante da ignorância generalizada da maioria da população, mais ou menos como é, entre nós, um Oscar Niemeyer ou um Chico Buarque: um "sábio", enfim. Por isso, tudo que ele diz, mesmo que seja sobre a melhor maneira de fritar um ovo, ganha automaticamente, para muita gente, status de Dogma Revelado. Para essas pessoas, Saramago é um oráculo: sua palavra tem quase a força de Lei.
Ontem Saramago deu uma entrevista coletiva - claro sinal de que o personagem em questão é um VIP, pois só VIPs, como Saramago e Paris Hilton, dão entrevistas coletivas - sobre o lançamento do filme Ensaio sobre a Cegueira, do diretor brasileiro Fernando Meirelles, em Lisboa. Embora a entrevista fosse sobre o filme e o livro homônimo de Saramago que o inspirou, em certo momento o guru português deixou de lado a Literatura e enveredou por seu passatempo preferido: fustigar o capitalismo. Ao comentar a atual crise financeira que abala as bolsas de valores no mundo inteiro, Saramago, o arauto do anticapitalismo literário, saiu-se com a seguinte pérola: "Karl Marx nunca teve tanta razão como agora". Sobre o desbloqueio do dinheiro que está sendo efetuado agora para salvar o sistema financeiro, afirmou o ganhador do Nobel de Literatura de 1998: "Onde estava todo esse dinheiro? Estava muito bem guardado. Logo apareceu, de repente, para salvar o quê? Vidas? Não, os bancos". Acrescentou ainda, não se sabe se com tristeza ou com júbilo, que "as piores conseqüências ainda não se manifestaram".
Ah Saramago, Saramago... Desculpem a frase que já virou um hit, mas não consigo evitar: por que não te calas? Sempre que o escritor português fala em outra coisa que não Literatura (leia-se: Política ou Economia), quem fala não é o escritor, mas o ideólogo, o devoto de teses obsoletas e descartadas pela História. Nesse particular, diga-se, ele não está sozinho: para ficar apenas nos latino-americanos que também já levaram o Nobel, Pablo Neruda, por exemplo, era um stalinista de babar na gravata (como diria Nelson Rodrigues), e Gabriel García Márquez é um tiete de Fidel Castro (assim como Saramago, aliás um comunista empedernido que chegou a anunciar seu rompimento com a castradura cubana em 2003, depois que Fidel mandou fuzilar três pobres-coitados e prender 78 dissidentes, mas voltou atrás pouco depois, acometido de delirium totalitarium). Agora, com a crise das bolsas, o sábio lusitano aproveita para prestar sua reverência ao velho Marx.
É verdade que Marx previu, sim, as crises periódicas do capitalismo - que o próprio capitalismo, mediante a intervenção pontual (e não-permanente) no mercado trata de sanar -, mas daí a dizer que ele "estava certo", vai uma certa distância. A não ser que se considere o remédio prescrito por Marx para tais situações, assim como para todos os problemas da humanidade - a estatização completa dos meios de produção, a ditadura do proletariado - a saída mais racional para crises como a que estamos vivenciando. A História, essa mestra implácável, já tratou de mostrar que, nesse caso, o "remédio" é muito pior do que a doença. Mas para Saramago isso não importa. Afinal, nas ditaduras comunistas do Leste Europeu, como sabemos, não havia crises do mercado. Pelo simples motivo de que não havia mercado, ora! Alguém aí está disposto a seguir o conselho de Marx - e de Saramago - e cortar a cabeça para acabar com a enxaqueca?
Saramago é comunista. Talvez o último que sobrou, ao lado de Oscar Niemeyer. Isso significa que ele é um humanista, certo? Que é alguém que se preocupa com "vidas", como ele diz, e não com bancos (claro que não as vidas perdidas das cem milhões de pessoas que sentiram na pele - literalmente - todo o "humanismo" marxista na ex-URSS e na China de Mao, mas isso, como já disse acima, não importa). Enfim, um exemplar superior da espécie humana, como dizia aquele argentino barbudo que gostava de fuzilar pessoas e que virou estampa de camiseta... Daí essa sua indignação com o desbloqueio do dinheiro para salvar não "vidas", mas "bancos". Acho estranha essa fixação dos esquerdistas em separar a vida humana, o bem mais precioso, do que seria o pérfido sistema financeiro, dominado por tubarões, só interessados em dinheiro. Principalmente porque isso parece ir de encontro ao que o próprio Marx preconizava. Afinal, não foi ele quem defendeu, durante toda sua vida, que eram as condições materiais de existência que possibilitavam as condições espirituais, a própria vida humana, enfim? E a tal "ajuda aos bancos", tão condenada por Saramago, não visa justamente a impedir o colapso do sistema, que levaria consigo à ruína não dos gatos gordos do sistema financeiro - os "bancos", enfim -, mas de milhões de correntistas e pessoas comuns, que se veriam, caso os bancos quebrem, na rua da amargura? Em suma, não seriam as vidas dessas pessoas comuns, muitas sem dinheiro no banco, que estariam sendo resgatadas também? Que coisa cruel, o capitalismo, não é mesmo?
À certa altura da entrevista coletiva, Saramago foi indagado sobre o vínculo entre o tema de seu romance e a crise financeira. Ele respondeu: "sempre estamos mais ou menos cegos, sobretudo, para o fundamental". Ele sabe disso por experiência própria.
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