É impressionante. Nesse dias em que quase não se fala em outra coisa senão na crise das bolsas e no pacote de ajuda econômica do governo americano aos mercados financeiros, sou surpreendido a cada dia com um artigo ou uma análise de algum bambambã desancando o "neoliberalismo". Primeiro foi aquele professor da UNICAMP, que escreveu na Folha de S. Paulo botando a culpa pela quebradeira dos bancos nos "liberais". Agora é uma figura bastante conhecida de todos nós, o ex-presidente e atual senador José Sarney. Ele mesmo, o bigodão, autor de jóias da literatura universal como Os Marimbondos de Fogo. Lá está ele, na mesma Folha de hoje, no mesmo espaço, demonstrando toda sua incrível capacidade de argumentação e conhecimento de causa, para falar mal do sistema capitalista e do Bush. O título do artigo já diz tudo: "Réquiem para o neoliberalismo".
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Como escrevi antes, não me considero um liberal no terreno econômico. Mas coisas como a que vem em seguida vão acabar me convertendo às teses de Hayek e de von Mises. Sarney em vermelho, eu em azul.
.Réquiem para o neoliberalismo
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AS BOLSAS, fartas dos tempos do vale-tudo, pediram que não lhes mandassem flores, e sim o socorro que elas sempre condenaram como uma intervenção maléfica no mercado, que, sozinho, tudo resolveria, até mesmo os problemas da economia e da sociedade. Caímos na armadilha.
Vejamos de que "armadilha" nosso ex-presidente está falando. Provavelmente, não é o Plano Cruzado ou qualquer outro pacote, comuns até pouco tempo atrás, em que se acreditava que a intervenção benéfica do Estado tudo resolveria. Pois é, caímos nessa armadilha direitinho.
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O comunismo morreu sem um tiro, vítima de suas próprias contradições: foi um suicídio. O capitalismo está morrendo, não funciona mais com suas próprias pernas e socorre-se do Estado interventor. Este surge como tábua de salvação.
Que o comunismo morreu, pelo menos como realidade estatal ("socialismo real", como gostam de dizer os que ainda o defendem como "idéia"), não há dúvida, embora não falte quem queira ressuscitá-lo. Por exemplo, defendendo o lema oposto, de que "o capitalismo está morrendo". A história demonstra que esta é a melhor maneira de substituir o livre mercado e a democracia pelo seu inverso, ou seja: o dirigismo estatal e a tirania. Esta é a alternativa ao capitalismo.
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Tony Blair falou certa vez na Terceira Via, que não era nem terceira, nem via, mas, sim, uma maneira de salvar os dedos, perdendo alianças, e não anéis. Melhor pensou Deng Xiaoping, com sua China de dois sistemas, capitalista e socialista, que pelo menos tem a vantagem da evidência do sucesso.
Quanto a Blair e sua Terceira Via, estou de acordo. Não passava de uma forma enganosa de salvar a cara das esquerdas diante do fracasso inegável do socialismo. Mas quanto a Deng Xiao-ping... O sistema chinês não é modelo para ninguém, exceto para os que queiram as benesses do livre mercado sem abrir mão da repressão política. Ou seja: para os totalitários. Seria este o caso de Sarney? Ainda acredito que não, mas posso estar enganado.
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Aliás, é engraçado o Sarney citar a China, país em que cerca de 400 milhões de pessoas - dois brasis - foram retiradas da miséria nos últimos trinta anos por obra e graça do... "neoliberalismo"! Vejam só!
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Nesse episódio da atual e surpreendente crise a que estamos assistindo, sem saber onde está o fundo, fica a vergonha da classe política americana, que se mostrou incapaz de servir ao país e desrespeitou o interesse público.
Maravilha. De incapacidade de servir ao país e de desrespeito ao interesse público, Sarney entende bastante. Em casa de ferreiro...
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Deram o mau exemplo de não distinguir entre os interesses da pátria e os dividendos políticos e eleitorais. Onde estão um Lincoln, um Jefferson, um Washington ou um Roosevelt?
Hum... sério, presidente? Os gringos fizeram uma lambança eleitoral em cima da crise? Interessante... Isso me lembra um certo ex-presidente, de um ex-país da América do Sul, uns vinte e poucos anos atrás, que baixou um pacote congelando os preços somente para, no dia seguinte às eleições em que seu partido faturou quase tudo, revogar o congelamento e voltar à inflação. Pelo visto, Sarney sabe mesmo do que está falando quando fala em dividendos políticos e eleitorais...
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Os próprios candidatos esconderam-se na mediocridade de subterfúgios e lugares-comuns, sem mostrar capacidade de liderar. A primeira virtude do líder é a coragem, a segunda é não ter medo de decidir segundo o interesse do povo, sem julgar se ele próprio vai ganhar ou perder.
Mais uma vez: que corajoso esse Sarney, heim? Corajoso e altruísta. Tanto que não estava nem aí para qualquer ganho eleitoral em 1986, quando patrocinou a monumental farsa do Cruzado. Um exemplo de coragem e coerência política, como se vê. E ainda passa um pito nos americanos, como Lula quando criticou os "especuladores" por sua "falta de ética"... Pois é.
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Acrescente-se o fato de que esta é a primeira crise que ocorre com a globalização financeira, que chega até mesmo a Bora-Bora. Para usar uma citação lugar-comum, lembremos Fukuyama falando no fim da história, com a definitiva implantação da economia de mercado e da democracia liberal. Se uma e outra se mostram incapazes de resolver uma crise dessa dimensão, como achar que elas esgotam os caminhos da humanidade? Faliram o mercado selvagem e a democracia, logo no país que é o seu berço e padrão, mostrando-se incapazes de criar homens públicos que sirvam de exemplo de estadista mundial.
Epa, que estória é essa de dizer que "uma e outra" - ou seja, a economia de mercado e a democracia liberal - se mostram "incapazes" de resolver a atual crise econômica? Tomado o que está dito aí em cima ao pé da letra, teremos a conclusão de que as antíteses de ambas - o intervencionismo estatista e o totalitarismo - é que são a solução para todos os problemas. Será que é isso o que Sarney quer dizer? Ou terá sido um lapso? Então o "mercado selvagem" e a DEMOCRACIA "faliram"? Foi isso mesmo que eu li? E isso tudo por causa de um bando de especuladores? Então a democracia e o capitalismo, em vez de serem reforçados e estimulados, devem ser abandonados, é o que diz Sarney.
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O senador maranhense comprova aquilo que era apenas uma suspeita para mim: quando um adversário do livre mercado apregoa o "fim do neoliberalismo", está mirando, na verdade, na própria democracia. É por isso que, sempre que um desses senhores cita Francis Fukuyama - que falou em "fim da história", mas também no "último homem" -, fico com uma pulga atrás da orelha.
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Bush nivela-se a tais parceiros neste episódio. Ele passará à história não como Quixote, o cavaleiro da triste figura, mas como a figura do triste homem que levou seu país ao fundo do poço.
Os EUA estão no fundo do poço? E o culpado por isso foi o Bush? Jura? Mas não foram os "neolibeais", o próprio mercado, enfim, que teria produzido a crise e agora apela para a proteção estatal? Sarney me confunde. Afinal, Bush é criticado por muitos economistas e políticos conservadores nos EUA exatamente porque estes o consideram demasiado... intervencionista! Aliás, foi justamente por isso que muitos de seu próprio partido votaram contra o pacote de emergência para injetar US$ 700 bilhões na economia e salvar o sistema financeiro, só voltando atrás depois de um monte de emendas. Ainda que a crise fosse o canto do cisne do capitalismo - o que está longe de ser verdade -, seria preciso encontrar outro culpado. Tenta outra, Sarney!
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Ele, que era o grande conservador capitalista, matou-o não com um beijo, como Oscar Wilde na ‘Balada do Cárcere de Reading’, mas com a espada da crueldade, cujo único triunfo foi a cabeça de Saddam. Ela valeria isso? Agora vão querer consertar, mas o estrago e as conseqüências já estão aí.
Que bonito... Sarney, como bom beletrista, não perde a chance de enxertar uma referência literária aqui e ali para embelezar seu texto. Nada contra. Só acho que usar Oscar Wilde para dizer que "o capitalismo morreu" e que foi morto, ainda por cima, "com a espada da crueldade", me parece assim algo meio, como direi?, forçado, além de um pouco afetado. Além do mais, "o único triunfo" a cabeça de Saddam?! Ainda se fosse, não seria pouca coisa, convenhamos. Mas há um país, o Iraque, e outro, o Afeganistão, que, pelo menos em minha opinião, valem "isso". Ou, como diria Churchill: a democracia - e, eu acrescentaria, a economia de mercado - continua sendo o pior dos regimes, excetuando todos os outros.
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É impressionante como as turbulências no mercado financeiro dos EUA se tornaram um pretexto para que os arautos do intervencionismo e inimigos da democracia viessem a público anunciar o fim do mundo e clamar por menos mercado e mais Estado. Como já escrevi antes, isso não passa de um engano ou auto-engano de quem insiste em viver num mundo à parte. Um mundo em que o capitalismo é o inferno na Terra e o socialismo, em qualquer de suas formas, é uma promessa de justiça e de solidariedade. Uma promessa feita de cem milhões de cadáveres. Ou vão dizer que a culpa disso é também dos "neoliberais"?
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