quarta-feira, abril 30, 2008

UMA PEQUENA LIÇÃO DE HISTÓRIA


Fidel Castro e o premiê soviético, Nikita Krushev, 1961: o Brasil deveria ter votado a favor dessa aliança, diz atual Chanceler brasileiro

Estive ontem na cerimônia do Dia do Diplomata no Itamaraty, ocasião solene, seguida da formatura dos novos diplomatas. Estavam presentes o Presidente da República e o Ministro das Relações Exteriores, os quais, segundo o protocolo, discursaram na cerimônia. Fui para ouvir os discursos de Lula e do nosso Chanceler. O de Lula me decepcionou um pouco. Ele não estava em sua melhor forma. Como sempre faz nessas ocasiões, primeiro ele leu um texto previamente preparado, no qual, entre os rapapés de praxe, defendeu a atual política externa brasileira e respondeu as críticas ao programa brasileiro de biocombustíveis. Em seguida, fez seu já tradicional improviso, em que costuma soltar o verbo e a língua presa. Não estando num de seus dias mais inspirados, falou por cerca de trinta minutos, encerrando logo o discurso.
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A fala de Celso Amorim, por sua vez, chamou-me mais a atenção. Discursando de improviso, nosso Chanceler desfiou os costumeiros auto-elogios à atual política externa brasileira, cobrindo-a de adjetivos como "independente" e "altiva", e enaltecendo os princípios que, segundo ele, norteiam a conduta diplomática do governo Lula, quais sejam a não-interferência ("mas não indiferença", emendou) e o respeito à autodeterminação dos povos. Em certo momento, querendo fazer uma ponte entre a orientação atual da diplomacia brasileira e a Política Externa Independente do governo João Goulart, Sua Excelência fez menção a Francisco Clementino de San Tiago Dantas, Chanceler brasileiro no período. Mais especificamente, referiu-se a um episódio em particular: a atuação do Itamaraty, então chefiado por San Tiago Dantas, na Reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA) ocorrida em Punta del Este, Uruguai, em 1962, que decidiu pela expulsão do governo de Cuba do sistema interamericamo. Segundo Celso Amorim, se tal reunião ocorresse hoje, o Brasil não deveria ter optado pela abstenção, mas sim votado contra a exclusão do regime de Havana da OEA.

Por coincidência, o assunto é tema de um dos capítulos do livro que pretendo lançar ainda este ano, sobre as relações - formais e nem tão formais - entre o Brasil e Cuba, de 1959 até o reatamento diplomático, em 1986. Logo, não posso ficar indiferente a essa referência histórica. Como ex-professor de História e estudioso do assunto, não posso deixar de apontar na declaração acima um forte viés ideológico - no caso, a favor da ditadura cubana. Vejamos.
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A VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos, que se realizou em Punta del Este no final de janeiro e começo de fevereiro de 1962, foi convocada pela Colômbia no fim do ano anterior para discutir a permanência ou não do regime de Cuba na OEA, tendo em vista a transformação de Cuba num regime comunista. Em dezembro de 1961, Fidel Castro tornou irreversível essa sua decisão, ao se declarar, em discurso perante milhares de pessoas, um marxista-leninista "até a morte". Com isso, ele atirou ao lixo todas as promessas democráticas feitas no começo da revolução, e tornou oficial sua aliança com o bloco comunista liderado pela hoje defunta URSS. Na prática, ao se aliar a Moscou, Fidel Castro estava autoexcluindo-se da OEA.
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A situação de um Estado declaradamente marxista nas Américas criou um dilema para os demais países do continente. Liderados pelos EUA, a maioria deles se colocou frontalmente a favor da exclusão de Cuba do convívio continental. Para tanto, invocaram a Carta da OEA promulgada em 1948, que declarou o comunismo incompatível com os princípios democráticos do sistema interamericano, declaração confirmada em reuniões posteriores (Caracas, 1954; Santiago, 1959; São José da Costa Rica, 1960). Por esse mesmo princípio, argumentou-se, nenhum Estado da região poderia aliar-se, sob pena de expulsão, a uma potência extracontinental (no caso, a URSS). Na votação que se seguiu, o governo cubano foi expulso da OEA por 14 votos a favor, 1 contra e 6 abstenções (Brasil, Argentina, Uruguai, México, Chile e Bolívia). A declaração final da reunião, que o Brasil subscreveu, também aprovou uma moção de condenação ao comunismo, reafirmando o espírito da Carta da OEA.
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O voto brasileiro de abstenção na Reunião de Punta del Este foi alvo de fortes críticas no Brasil. Um grupo de ex-Chanceleres publicou inclusive uma nota no jornal O Globo criticando duramente a decisão. Em resposta, San Tiago Dantas teve de defender a posição do Itamaraty em relação a Cuba na TV e no Congresso Nacional. Sua argumentação foi essencialmente jurídica: embora condenasse o comunismo, declarando a preferência do governo brasileiro pela democracia representativa e sua crença na superioridade desse regime político, o então Chanceler adotou uma postura principista na Reunião, em defesa da não-interferência e da autodeterminação. Nesse sentido, apegou-se à própria Carta da OEA, que, se bem condenava o comunismo, não trazia nenhum instrumento jurídico que autorizasse a expulsão de qualquer de seus Estados-membros. Para que a exclusão de Cuba fosse juridicamente aceitável, argumentou San Tiago Dantas, seria preciso convocar uma nova Conferência da organização, e não uma Reunião de Consulta dos Chanceleres dos países americanos, como era o caso. O voto da delegação brasileira em Punta del Este sobre a questão cubana tornou-se um exemplo de argumentação jurídica na diplomacia brasileira, tendo sido exposto num livro clássico (Política Externa Independente, Civilização Brasileira, 1962).
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Juridicamente falando, não há como não dar razão a San Tiago Dantas. De fato, sua lógica jurídica é impecável. Pelo ineditismo da situação - nunca antes havia sido instalado um regime comunista no continente -, esta exigia, do ponto de vista do Direito Internacional, um tratamento especial. Mas nem por isso pode-se dizer que a posição brasileira no episódio, assim como em relação à questão cubana em geral, fosse inatacável. Na época, nem San Tiago Dantas, nem qualquer outro diplomata brasileiro conhecia ainda a real dimensão da intervenção cubana nos assuntos internos dos países latino-americanos. Hoje, porém, não há como usar o desconhecimento desse fato como argumento. Nove meses depois da reunião, em novembro de 1962, a intervenção de Cuba nos assuntos brasileiros foi revelada quando foram descobertos, nos escombros de um avião comercial da Varig que caiu em Lima, Peru, documentos secretos na mala de um agente cubano que comprovavam os laços de Havana com as guerrilhas das Ligas Camponesas. Esse apoio se realizava desde 1961, portanto antes da Reunião de Punta del Este. Antes e depois disso, o governo de Fidel Castro deu amplo apoio político, moral e material - na forma de dinheiro e treinamento de guerrilha, principalmente - a milhares de guerrilheiros latino-americanos que tentavam derrubar, por meio da violência e do terrorismo, os governos da região. E não somente governos autoritários, como as ditaduras centroamericanas e os regimes militares da América do Sul - algo que se tornou costumeiro dizer nas décadas seguintes -, mas também governos democraticamente eleitos. Por exemplo: em 1964, na reunião seguinte da OEA, os países da região concordaram em romper relações com Havana depois que foi descoberto, no ano anterior, um carregamento de armas provenientes de Cuba para os guerrilheiros castristas que lutavam contra o governo constitucional do presidente Rómulo Betancourt, da Venezuela. A abstenção brasileira em Punta del Este teve pelo menos o aspecto da eqüidistância em relação ao caráter ideológico do regime castrista e à sua aliança com a URSS. O voto contra, defendido retroativamente por Celso Amorim, teria o mesmo significado de um voto a favor dessa aliança e da ditadura - e, por extensão, da intervenção cubana no hemisfério.
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Essa pequena lição de História se faz necessária para colocar a frase de Celso Amorim em seu devido contexto. A decisão de expulsar Cuba da OEA, embora juridicamente discutível, foi acertada, pois Fidel Castro estava de fato interferindo abertamente nos negócios internos dos países da região, na forma do apoio a movimentos subversivos e revolucionários no continente. Logo, ao dizer que a atitude correta em relação a Cuba teria sido não a abstenção, mas o voto contrário à sua expulsão da OEA, Celso Amorim ou ignorou ou deu sua aprovação oficial às ações intervencionistas do regime de Fidel Castro, fartamente documentadas. Não há como não enxergar nisso uma boa dose de preferência ideológica pela ditadura dos irmãos Castro.
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A Política Externa Independente (PEI) de João Goulart e San Tiago Dantas e a atual política exterior de Lula e Celso Amorim têm em comum o fato de reivindicarem uma postura de independência ideológica e de pragmatismo nas relações com os demais países. Em comum, também, têm a dificuldade de dissimular um certo viés ideológico, que está em clara contradição com esse discurso e que se manifesta principalmente nas relações com vizinhos problemáticos. No caso da PEI, isso se expressou sobretudo na questão cubana, na qual o governo Goulart oscilou entre as pressões de grupos à direita e à esquerda, com esses últimos passando a ditar a agenda do governo em sua fase terminal. No caso do governo Lula, a diplomacia brasileira coloca-se cada vez mais a reboque de um projeto ideológico estranho ao interesse nacional, como demonstra a atitude tíbia e complacente, para dizer o mínimo, em relação às peripécias de Chávez, Morales e cia. - sem falar na Cuba castrista, onde, segundo o Itamaraty, não há nenhuma violação aos direitos humanos. Declarações como a de Celso Amorim sobre Cuba não deixam dúvidas quanto a isso. De não-ideológica, a política externa brasileira tem muito pouco.

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