quarta-feira, abril 02, 2008

ESQUERDISTAS RECICLADOS

Como quem lê este blog sabe, estou fazendo um curso no Itamaraty. Por esse motivo reduzi um pouco o ritmo de mensagens aqui postadas, que, a certa altura, chegou a ser quase diário. Pois bem. Um dos palestrantes do curso foi Marco Aurélio Garcia. Ele mesmo. O Top, Top. Acabei de assistir à palestra dele. Ele tratou da política externa da América do Sul, das principais questões referentes à integração regional, das grandes linhas da ordem mundial no século XXI etc. Depois da apresentação, vieram as perguntas, umas quatro ou cinco. Depois, aplausos. Tudo muito civilizado, muito comportado, muito coerente com o local em que foi feita a palestra - o Instituto Rio Branco - e com o protocolo diplomático.
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Talvez quem esteja lendo estas linhas imagine que eu fui um dos que tomaram o microfone. Que eu tenha aproveitado a oportunidade para bombardear o assessor especial da presidência da República com as perguntas mais inconvenientes. De fato, pensei em fazê-lo, e já tinha preparado algumas perguntas bem embaraçosas. Mas, na hora agá, resolvi não perguntar nada. Calei-me. Uma colega minha, já sabendo de minha postura crítica em relação à atual política externa brasileira, perguntou-me, à saída do auditório, por que eu não encostei o Top, Top, Top na parede, conforme acreditava que eu faria. Cheguei a pensar nisso, confesso. Mas na hora simplesmente não deu. Desisti.
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Não foi por timidez de minha parte, nem por qualquer coisa do gênero - já questionei Marco Aurélio Garcia antes, em outra palestra, o que inclusive já mencionei aqui -, mas por algo, como direi?, muito mais profundo e pessoal. No meio da palestra, tive uma epifania, uma revelação. Sim, isso mesmo. Diante do clima de cordialidade quase cúmplice que se instalou no auditório com sua presença, das perguntas extremamente polidas que lhe foram dirigidas, das palavras amáveis que lhe foram dispensadas, dos elogios à sua bonomia - palavra que ele mesmo empregou para se referir ao Brasil em relação a nossos vizinhos mais pobres e problemáticos - e, principalmente, diante da falta total de disposição da platéia de fazer perguntas críticas ao palestrante, cheguei à uma conclusão que há muito vinha amadurecendo em minha mente. Pela primeira vez percebi que, naquele momento e naquele lugar, não valia a pena ser do contra. Minhas palavras, quaisquer que fossem, cairiam no vazio. Não iriam fazer nenhuma diferença. Só me restava calar.
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Sei que certamente decepciono alguns com essa minha atitude. Ou falta de atitude. Mas pensem comigo. Uma das perguntas que eu pretendia fazer a Marco Aurélio era sobre a Colômbia. Mais especificamente, sobre a posição brasileira em relação às FARC, que o governo brasileiro insiste em não reconhecer nem como um grupo terrorista, nem como força beligerante ("então são o quê?", já me via perguntando, em tom inquiridor). Antes da palestra, troquei umas idéias sobre isso com um colega meu, aliás insuspeito de qualquer simpatia pelas FARC e pelas esquerdas. Ele lembrou que o Brasil não era agência de classificação para dizer se tal ou qual organização era ou não terrorista. Além disso, endurecer com as FARC poderia trazer o conflito para o território brasileiro ("o que os impediria de jogar uma bomba aqui?", perguntou meu amigo). Tentei argumentar rapidamente que não se trata de se imiscuir nos assuntos de um país vizinho, mas de uma questão, acima de tudo, política e moral, e que qualquer idéia de uma "mediação" brasileira do conflito colombiano, que volta e meia aparece, é pura cortina de fumaça para encobrir a cumplicidade essencial dos governos esquerdistas da região - inclusive o do Brasil - com os narcoterroristas colombianos. Propositalmente deixei de mencionar o mais importante - o Foro de São Paulo. Fiquei com a nítida impressão de que meu amigo não tinha a menor idéia da existência do Foro. Não surpreende que ele tenha considerado "equilibrada" a posição brasileira sobre as FARC, vocalizada por Marco Aurélio Garcia em várias entrevistas. Não surpreende que eu não o tenha convencido.
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Quando a palestra começou, minha determinação inicial de tomar a palavra na hora das perguntas foi logo minguando, até desaparecer. Durante mais ou menos uma hora, Marco Aurélio Garcia discorreu sobre o quadro atual e as perspectivas das relações sul-americanas. Sem alterar a voz, falou em tom moderado, melífluo, como um professor - o que, aliás, ele é. Fez piadas. O público riu com ele. Afastou qualquer veleidade ideológica na atual política externa brasileira - na verdade, sequer mencionou isso -, defendendo a necessidade de maior integração com os países da região etc. Moderado ao extremo, parecia quase um técnico falando. Um verdadeiro estadista, diria quem o visse. Cordial, até simpático, estava, como se diz, feliz como pinto no lixo. Em nada lembrava o sujeito que foi flagrado no ano passado fazendo aquele gesto conhecido de Top, Top comemorando a notícia de que o governo supostamente não teria nada a ver com a tragédia do avião da TAM em Congonhas, em que morreram 199 pessoas.
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Logo me veio à mente a lembrança recentíssima de minha conversa pré-palestra: se até mesmo alguém sem nenhuma inclinação esquerdista como meu amigo era incapaz de enxergar a realidade do Foro de São Paulo, a ponto de eu hesitar várias vezes em mencioná-lo para ele, o que dizer de uma pergunta feita ali, na lata, ao seu ex-coordenador, diante de uma platéia que lhe era claramente simpática ou que, pelo menos, estava ali para vê-lo e ouvi-lo por obrigação profissional? Eu correria o risco de ser ridicularizado, olhado de esgüela como um alienígena, um estranho, um penetra naquele ambiente tão asséptico, tão inteligente, tão pouco ideologizado da Casa de Rio Branco. Foro de São Paulo? Coisa de maluco, certamente pensariam.
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Definitivamente, o Itamaraty não é o lugar mais apropriado para o debate franco e sem restrições. Foi por isso que me calei. Mas não só por isso. A atitude abertamente lisonjeira em relação ao palestrante foi algo que, confesso, me desanimou. Não por medo de ser uma voz solitária, o que nunca tive, mas por isso demonstrar de forma clara que a capacidade de sedução dos esquerdistas é algo realmente acachapante, que é capaz de embotar até as mentes mais preparadas intelectualmente, a ponto de ser inútil tentar ir contra essa maré. A palestra de Marco Aurélio Garcia me convenceu de que a capacidade proteiforme dos esquerdistas é realmente inesgotável. Se antes eles eram os inimigos jurados da "democracia burguesa", hoje se apresentam como seus guardiães. Se antes eram os coveiros do capitalismo, hoje são seus principais sustentadores. Se antes aplaudiam regimes como o da ex-URSS, um dos maiores poluidores do meio ambiente, hoje se proclamam os campeões da causa ecológica, e convencem a muitos de que o são de verdade. E assim também na política externa. Marco Aurélio Garcia esquivou-se calculadamente de tocar nos temas mais espinhosos da agenda política latino-americana, como o conflito colombiano, os ataques à democracia pelo regime de Hugo Chávez na Venezuela e, last but not least, a ditadura cubana. Defendeu, mesmo, a necessidade de o Brasil manter relações com todos os países, sem preconceitos ideológicos, retomando um antigo chavão da Política Externa Independente do começo dos anos 60. Quis, assim, passar uma imagem de bom-moço, de esquerdista reciclado e moderado, "moderno", "vegetariano", em comparação com a esquerda "carnívora" representada por Chávez, Correia e Morales, seguro de que a platéia e a ocasião lhe eram favoráveis. Numa demonstração de quase resignação filosófica, afirmou ser necessária uma postura altiva frente aos grandes, e compreensiva com os pequenos. Enfim, uma visão benévola da política externa do governo Lula, quase franciscana em sua bonomia. Diante disso, que espaço haveria para falar de coisas como a parceria entre o governo Lula e as FARC no Foro de São Paulo? Pareceria pura provocação, ou delírio. Algo completamente fora de lugar.
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Daí porque assisti à palestra em silêncio. Espero que perdoem essa minha pequena pusilanimidade. Eu seria um Dom Quixote lutando contra um moinho de vento. No caso, um moinho gigantesco, sob cujas águas são lavados milhares de cérebros, todos os dias. Além disso, descobri que a palavra escrita, e não a falada, é que é o meu forte. Por isso, guardo minhas críticas a Marco Aurélio Garcia e às esquerdas para este blog. Aqui, pelo menos, a crítica não dá lugar ao excesso de polidez e ao protocolo diplomático.

Um comentário:

Augusto Araújo disse...

Pow Gustavo, sacanagem, uma perguntinha q fosse, nao precisava ser das mais porradas nao, Foro de SP deixava pra outra

sobre as FARC seria ótimo, e nem precisava falar a sigla FARC

Tipo:

como o Brasil gostaria q os vizinhos agissem (e classificassem) um grupo q sequestrasse civis e politicos brasileiros e estivesse adentrando as fronteiras dos países vizinhos?

qdo o filme Herceles 56 passou aqui, vieram o Zé Dirceu e o diretor do documentario, teve palestra depois.Eu perguntei (mas era pergunta escrita, falar é foda mesmo, ainda mais q vc estava em ambiente de trabalho) sobre Cuba e se o Brasil teve a ditadura militar pra nao nos transformarmos num pais-presidio, se a ditadura nao poderia ter sido encarado como um mal necessario

O Zé saiu pela tangente da pergunta de Cuba e deu uma de democratico, "toda ditadura é ruim"

sao safos mesmo