terça-feira, maio 27, 2008

De volta ao blog - e aos comentários dos leitores

Duas semanas atrás viajei à China para fazer um curso, por isso fiquei um tempo sem publicar nada no blog. Tenho alguns textos novos que vou colocar aqui nos próximos dias, à medida que o tempo livre me permitir. Enquanto isso, vou respondendo aos comentários de alguns leitores. Um deles, o Cássius Bertoni, me mandou o seguinte e-mail, que respondo em seguida:
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"Caro gustavo:
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Há umas duas semanas descobri seu blog e comecei a ler seus artigos. Até agora tenho concordado com vários dos seus pontos de vista (principalmente no tocante aos duplos padrões da esquerda), mas tem algumas coisas em tuas idéias que ainda me causam duvida, alem de outras nas quais tenho divergências, o que pretendo discutir depois. Eis aqui algumas de minhas questões (tenho outras mas não quero sobrecarrega-lo:

1-Você diz que a ditadura cubana é personalista, mas até onde sei não me parece haver grande enfase no culto a fidel (digo, não ha cartazes e estatuas espalhafatosos dele pela ilha, como por exemplo no Turcomenistão de niyazov). Mas talvez você tenha alguma informação que desconheça, neste caso agradeceria se a mostrasse.
Ps.:Isto não é uma tentativa de diminuir a ditadura cubana, mas apenas um questionamento quanto ao carater personalista dela.

2-Li você fazendo críticas ásperas a religião e em especialmente ao islamismo, criticas com as quais até concordo; mas queria saber se quando você critica o islamismo se trata de uma critica apenas a religião (com a qual concordo) ou se é uma crítica contra os 1 bilhão de muçulmanos. Sinceramente não acredito que tenha algo contra uma pessoa apenas pela fé que segue (ou diz seguir), mas queria que você esclarecesse esta questão.

3-Por que na tua opinião Rousseau e Platão são totalitaristas e Voltaire é democrata?

4-Você defende que a onu esta falida e ineficiente, algo que concordo; mas para resolver questões envolvendo conflitos, direitos humanos e guerras o que você defende: Uma criação de um novo organismo internacional mais rigoroso (ou uma reforma da onu) ou que tais questões fiquem simplesmente sob responsabilidade de certas potências democráticas e "responsáveis"?

5-Ví você criticando Gandhi em um de seus artigos. Poderia me dizer os teus pontos de critica contra ele? E entre ele e Bush, qual deles você acha mais admirável?

Ps:Fique a vontade para responder meus questionamentos em teu blog, para transcrver este e-mail (total ou parcialmente) e para citar meu nome.

Obrigado pela atenção".

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Respondo
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Cássius, obrigado pelas perguntas. Eis o que tenho a dizer sobre elas:
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1 - Sobre a ditadura cubana: pelo que entendi, você afirma que esta não seria um regime personalista pois, entre outras coisas, não haveria grande ênfase no culto a Fidel (cartazes, estátuas etc.). Sobre isso, tenho a dizer o seguinte:
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A ditadura cubana é totalitária e personalista, sim, Cássius. Isso significa que nela impera, sim, o culto da personalidade do "Líder Máximo", Fidel Castro, como em qualquer outro regime totalitário, como o da ex-URSS sob Stálin e na China de Mao Tsé-Tung ou na Coréia do Norte de Kim Jong-il. O culto da personalidade do líder, invenção dos regimes totalitários do século XX, pode expressar-se de diversas maneiras. Uma delas é a construção de estátuas e cartazes com a imagem do ditador. Mas esta não é a única forma.
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À primeira vista, não haveria culto da personalidade em Cuba pois não existiriam estátuas de Fidel na ilha etc. Trata-se de um erro crasso, que confunde um fenômeno - o culto da personalidade - com uma das formas que ele pode assumir. A primeira coisa a ter em mente é que o culto da personalidade é uma característica intrínseca de todos os regimes totalitários. E Cuba é uma ditadura totalitária. Que não haja estátuas de Fidel ou cartazes com seu rosto espalhados ostensivamente na ilha não é prova de que o regime seja mais democrático, ou que não haja culto da personalidade.
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O que caracteriza o culto da personalidade não é necessariamente a existência de estátuas ou cartazes, mas de uma veneração sistemática e quase religiosa da figura e das palavras do "líder". No caso de Cuba, este é um fato inegável, que caminha lado a lado com a própria natureza antidemocrática do regime. Nenhum outro líder latino-americano do século XX foi objeto de um culto e veneração de sua personalidade tão fortes quanto o tirano de Cuba. Sua imagem foi forjada durante décadas de propaganda intensiva, que buscava mostrá-lo como um líder da luta antiimperialista e benfeitor do povo cubano, na forma de centenas e milhares de livros e entrevistas com "intelectuais" esquerdistas cuidadosamente escolhidos - o brasileiro Frei Betto é um deles -, sem falar em incontáveis fotos e outros documentos iconográficos. Essa propaganda massiva foi responsável pela criação de um mito fortemente arraigado nas consciências de milhões de pessoas mundo afora sobre o regime cubano e seu principal líder, a ponto de ainda hoje ser difícil para muita gente reconhecer o óbvio: que Cuba é uma ditadura totalitária, com culto da personalidade. Diante disso, para que estátuas? (Lembremos ainda que algumas ditaduras, como a do Khmer Vermelho no Camboja nos anos 70, não dispunham de estátuas de seus líderes, como Pol Pot).
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Além disso, é preciso lembrar que nenhum outro líder deixou sua marca pessoal tão profundamente no processo político de seu país quanto Fidel Castro. Os outros ditadores, como Stálin e Mao Tsé-Tung, eram agentes de seus partidos, sendo, portanto, funcionários destes. Fidel, ao contrário, superou a todos, criando, ele próprio, seu próprio partido comunista, em 1965. De certa forma, ele tornou a Revolução Cubana, graças à repressão política, sua revolução pessoal, apropriando-se da história e do Estado cubanos para instalar sua ditadura particular, castrista ou fidelista. Impossível, portanto, negar que se trata de uma ditadura totalitária e personalista.
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2 - Quanto às minhas críticas ao Islã (e a todas as demais religiões), que fique claro: não tenho nada contra quem quer que seja por ser muçulmano, católico, protestante, judeu, budista, umbandista ou adepto da religião do grande espaguete voador. Nada tenho contra quem professe qualquer uma dessas crenças. Tenho, sim, contra as crenças em si, que são funestas pelos motivos já por mim apontados. Sinceramente, acredito que uma pessoa pode ser boa e ser profundamente religiosa, como pode haver ateus canalhas, e vice-versa. É por isso, aliás, que critico a religião - todas as religiões -: a moralidade e a ética podem perfeitamente prescindir da crença em Deus. Assim como a tolerância.
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3 - Não critico Rousseau e Platão por serem "totalitaristas" - o totalitarismo é um conceito do século XX, logo não haveria como criticar esses dois autores por isso sem cometer um anacronismo -, mas sim porque as idéias totalitárias encontram neles sua base teórica. É inegável que, com suas teses da "República ideal" e da "vontade geral", Platão e Rousseau lançaram as bases do que viria a ser, no século XX, as ideologias totalitárias (o comunismo, o nazismo e o fascismo), que sempre buscam justificar-se como formas de "democracia popular". Do mesmo modo, não se pode considerar Voltaire um democrata - ele era, isto sim, um aristocrata, para quem o povo era "a canalha". A diferença entre Voltaire e esses outros autores era que, ao contrário destes, Voltaire considerava como a base fundamental de qualquer regime político não o "bem comum" ou outra ficção do gênero, mas a liberdade de expressão e de pensamento. Ironicamente, o grande aristocrata tornou-se o maior defensor da democracia, enquanto autores "democráticos", como Platão e Rousseau, forneceram o substrato ideológico para o totalitarismo.
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4 - Sinceramente, não tenho uma resposta para a questão da falência da ONU, e que outro organismo internacional poderia substituí-lo - se eu tivesse uma resposta pronta sobre essa questão, eu seria provavelmente um esquerdista. Sei apenas que a ONU está falida como organização destinada a preservar a paz e a democracia no mundo, e que algo precisa ser feito a respeito. Sei também que, entre os EUA e países como o Sudão ou a Coréia do Norte, fico com o Tio Sam. Até que se encontre um caminho melhor, em que a palavra "multilateralismo" não seja uma desculpa para justificar regimes tirânicos e ditatoriais, os EUA continuarão a ser a polícia do mundo.
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5 - Quanto a Gandhi, critiquei-o num artigo sobre o Lula. O motivo foi o seguinte: tanto Lula quanto Gandhi são mais conhecidos pelo mito criado em torno de suas figuras do que pelo que realmente fizeram ou disseram. No caso de Gandhi, a brecha entre o mito e a pessoa de carne e osso é bastante grande para ser ignorada - lembremos que ele foi contra a guerra na Europa contra o nazismo, por exemplo. Além disso, sempre desconfiei dos pacifistas. Principalmente quando vejo que o pacifismo é, na maioria dos casos, um instrumento a serviço dos piores tipos de regime.
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Quanto a escolher entre Bush e Gandhi... francamente, acho essa comparação descabida. Creio que a melhor escolha não é entre Bush e o Mahatma, mas entre Bush e Saddam Hussein, ou entre Bush e o Talibã, ou entre Bush e Bin Laden. Nesse caso, minha escolha é clara e definida. Preciso dizer qual é?
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É isso. Espero que tenha esclarecido suas dúvidas.
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Um abraço.

Um comentário:

Stefano di Pastena disse...

Caro Gustavo

Parabéns ao leitor e às tuas respostas sempre claras e objetivas.

Abraços