quinta-feira, maio 31, 2007

PICARDIAS ESTUDANTIS

Já tinha começado a escrever um texto sobre o cancelamento da concessão da RCTV pelo governo Chávez na Venezuela e outro sobre a monumental farsa que foi a Revolução Cubana – assunto que, por seu alcance e significado práticos para a realidade atual, mereceria vários livros – quando tive a atenção voltada para um fato que insiste em ocupar as manchetes nesses últimos dias. Refiro-me ao fenomenal circo midiático criado em torno da invasão da reitoria da USP por um bando de autoproclamados "estudantes", que já completou vinte dias.

Às vezes é preciso dar um tempo e deixar de lado assuntos mais importantes para mergulhar na vala comum do besteirol cotidiano. Isso porque um fato aparentemente banal muitas vezes pode encerrar preciosos ensinamentos, revelando até que ponto vai, ou melhor, a falta de limites, da babaquice e estupidez humanas.

O motivo que me chamou a atenção para mais essa patacoada foi um debate a que assisti numa rede estatal de televisão. Às vezes perco tempo vendo esse tipo de programa. Embora irremediavelmente chatos, podem ser bem instrutivos.

No debate, além do moderador, havia dois professores – um deles, autor de um livro sobre o "poder jovem", claramente a favor, e outro, timidamente contra, quase pedindo desculpas por suas observações – e um representante da "classe estudantil" (sic), um dos líderes do tal "movimento", apresentado como estudante de filosofia da USP.

Este último, com cara e jeito de nerd e fala empolada de leitor voraz de orelhas de livros de Gramsci e Lukács, foi o que teve mais tempo para falar, aproveitando cada minuto da ribalta para desfiar um extenso rol de divagações filosóficas, em tom triunfalista, sobre a emergência de um "novo padrão", "avesso às instituições oficiais", saudando o "revigoramento" das "lutas dos estudantes" etc.
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Sobre a justeza ou não das reivindicações do referido movimento, bem como sua utilização por partidos políticos que não têm nenhum interesse específico por elas, pouco se falou. A maior parte do tempo foi gasta com as ponderações gramscianas do nerd de óculos e cabelos revoltos, entrecortada por uma ou outra comparação do professor a favor com as agitações dos anos 60. Enquanto isso, o que deveria fazer o papel "do contra", meio acabrunhado, limitava-se a esta ou aquela observação sobre a ilegalidade de invadir prédios públicos, ao mesmo tempo em que confessava sua falta de "capacidade analítica" para interpretar melhor os acontecimentos da USP e elogiava a notável inteligência do tal estudante de filosofia uspiano, a vedete do programa.

Findo este, pus-me a pensar no que acabara de ver. Um "debate", transmitido por uma rede pública de televisão, em que se faz de tudo, menos debater, ou seja, polemizar, argumentar, discutir, e em que os "debatedores" tudo fazem para justificar e enaltecer uma ação ilegal já é uma coisa grave o suficiente para causar preocupação. Usar um canal pertencente ao Estado para louvar o suposto aparecimento de um "movimento" com claras motivações anacrônicas e patrimonialistas, na maior universidade do Brasil, seria motivo para uma CPI. Mas o buraco, como se verá, é mais embaixo.

Chamar a "ocupação" – é assim que são chamadas a invasão e depredação de prédios públicos no Brasil – por uma horda de militantes travestidos em acadêmicos de baderna e desrespeito, assim como o suposto "movimento estudantil" de "movimento" e "estudantil", seria por demais caridoso. Trata-se de uma ação de grupelhos radicalóides que usam os estudantes (com ou sem aspas) para atingir seus objetivos políticos revolucionários. No caso em questão, o catalisador foi a reação contra um decreto do governo do Estado de São Paulo (encabeçado, aliás, por um ex-dirigente nacional da UNE), que prevê maior transparência nas finanças de uma instituição pertencente ao Estado.

Sob o disfarce da defesa da "autonomia" universitária, e acobertados por reivindicações oportunistas ("melhores alojamentos", "melhor comida nos restaurantes" etc) e pela leniência oficial, o que os "estudantes" querem, na verdade, é a conservação de um modelo falido e patrimonialista que, ironicamente, só beneficia aquela parcela da população mais abonada procedente das melhoras escolas particulares, a qual se apossou das universidades estatais (os mais pobres, como se sabe, têm o estranho hábito de preferir as universidades pagas). Em nome do ensino universitário público, o que se defende, na realidade, é o império do interesse privado de quem pode pagar, mas prefere continuar mamando nas generosas e maternais tetas estatais.

Nesse sentido, falar em mais verbas em defesa da "universidade pública, gratuita e de qualidade", é até piada de mau gosto. Se dependesse do gasto com as universidades públicas, o Brasil seria líder mundial em diversas áreas do conhecimento. Entretanto, não é o que se verifica, o investimento estatal não se traduz em resultados concretos na área de pesquisa. Excetuando-se algumas raras ilhas de excelência – em geral, devido à parceria com a iniciativa privada – o que impera é o reino da mediocridade, no qual professores fingem que ensinam e os alunos fingem que estudam. O que os "estudantes" uspianos que invadiram a reitoria querem não é um ensino de qualidade, mas a preservação desse lamentável estado de coisas.
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Nas faculdades de ciências humanas, por exemplo, vigora não o estudo e a pesquisa, mas uma forma de doutrinação político-ideológica, eivada de vulgata marxista ou "politicamente correta", que há muito substituiu o estudo sério por palavras de ordem para agitar as "massas" contra o "sistema", o "capitalismo", a "globalização" etc. De tempos em tempos, estoura uma greve - a principal ocupação acadêmica de muitos "estudantes" -, o que leva sempre a atrasos no ano letivo e serve apenas para agravar ainda mais o já calamitoso estado do ensino (mas isso não é problema para esses "estudantes", pois esta é a menor de suas preocupações). Sem falar no sistema de cotas raciais – importado dos EUA, onde, ao contrário do Brasil, quase não houve miscigenação –, esta invenção do lulismo, já vigente na Universidade de Brasília, uma imposição ("conquista" é o nome que usam) do "movimento negro" incrustado nas faculdades de antropologia.
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Em suma, nas universidades públicas do Brasil, não há lugar para o mérito e o ensino de verdade. Daí porque, apesar dos milhões gastos todo ano pelo governo, quase não há pesquisadores importantes brasileiros citados em publicações científicas internacionais. Mostrem-me um, somente um, filósofo ou cientista político brasileiro famoso mundialmente, por exemplo. A busca será em vão.

Sob o manto do patrocínio oficial, as universidades viraram locais de festa ou substitutos do jardim-de-infância, em que jovens ou nem tão jovens assim, certos de que sempre haverá quem passe a mão em suas cabecinhas ocas, fazem de tudo, menos estudar de verdade. Não surpreende, portanto, que falar em ensino pago nas universidades públicas brasileiras – o que já ocorre nos EUA e até na China Comunista, para citar apenas alguns exemplos – seja anátema. O que esses privilegiados desejam mesmo é manter a boa vida de filhos da classe média e da burguesia, sustentados e mimados pelos cofres públicos para "estudar" (leia-se: farrear entre uma aula e outra, isso para a minoria que freqüenta as salas de aula). Bastou neguinho ter falado em obrigar as universidades a prestar contas à sociedade – ou seja, a nós, otários, que pagamos impostos – e a molecada, correndo o risco de perder a mesada oficial, revoltou-se – ó, que absurdo – contra essa tentativa "arbitrária" de acabar com esse sacrossanto "direito".

Não falo isso por ouvir dizer, mas por experiência própria. Estudei em universidade pública e, lá, pude ver e sentir o que é o chamado "movimento estudantil". A palavra mais adequada para descrevê-lo – na verdade, não consigo achar outra melhor – é palhaçada. Os estudantes, com a UNE à frente, contentam-se em ser massa de manobra das infindáveis disputas entre partidos de esquerda como o PT e o PCdoB, sem falar nos incontáveis grupelhos trotskistas, anarquistas ou simplesmente oportunistas que povoam os DCEs. Eu mesmo, nos meus 19 ou 20 anos, talvez por tédio juvenil, quase caí na besteira de entrar num desses grupos, mas felizmente a razão falou mais alto.
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Duvido que a garotada que faz parte desse "movimento" saiba o que está fazendo. O que a atrai é a festa, o agito, o oba-oba, além da mania, bem adolescente, de seguir a maré, apenas para não ficar de fora da galera. Entre uma farra e outra, regada a muita cerveja e maconha, namoricos e pileques homéricos, de tempos em tempos um dos "líderes" acaba se sobressaindo e termina sendo eleito por alguma legenda de esquerda, apenas para ser esquecido depois, como o Lindbergh Farias (lembram dele?) e agora aquela gatinha gaúcha, eleita – a contragosto, segundo diz – a musa do Congresso.
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A origem disso tudo está na mitologia criada em torno da "geração 68". Há mitos difíceis de erradicar. Um deles, que foi prontamente apropriado pelo "movimento estudantil", é o da juventude idealista que lutou, alguns com armas na mão e o sacrifício da própria vida, contra a malvada ditadura militar e a favor da democracia e da liberdade. Que muitos desses estudantes fossem, na verdade, militantes de organizações terroristas, manipulados por gente velha, e que sua luta não tivesse nada a ver com democracia ou liberdade, mas com ditadura e opressão (basta lembrar que o modelo de quase todos era a Cuba de Fidel Castro), é algo que se tratou de botar debaixo do tapete. Também que remanescentes dessa época, como Zé Dirceu, tenham acabado como paradigmas de corrupção, é algo que não parece incomodá-los muito. O importante é ser "rebelde", ainda que a rebeldia, aqui, esteja direcionada contra a transparência nas contas públicas e para a conservação de privilégios corporativos e patrimonialistas.

O teatro da invasão da reitoria da USP é apenas isso: teatro. Nesse e em outros casos, nossos "rebeldes" estudantis estão mais para aquele grupinho musical infanto-juvenil mexicano do que para Lênin ou Gramsci.
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P.S.: Já tinha terminado de escrever este texto quando irromperam as manifestações de protesto na Venezuela contra a decisão de Chávez de fechar a RCTV. Os estudantes venezuelanos estão dando uma lição a seus colegas brasileiros. Após pintarem a cara contra Collor, em 92, estes viraram uma espécie de papagaios do lulismo, dominados que estão há décadas pela retórica marxistóide-esquerdista. Enquanto os estudantes em Caracas vão às ruas enfrentar a polícia chavista em defesa da democracia e da liberdade de expressão, os estudantes brazucas se calaram diante da tempestade de corrupção que avassalou o país nos últimos anos, servindo de megafone do governo e prestando-se ao ridículo papel de invadir reitorias para manter privilégios. Lamentável!

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