Tem gente que insiste em manter a esperança diante de qualquer desastre, por pior que seja. Se estão num navio e ele bate num iceberg, preferem acreditar que foi só um esbarrão. Se o navio começa a fazer água e afundar, pensam que ele vai afundar só um pouquinho, não até o fundo do oceano. Se o casco empina e não há botes salva-vidas suficientes para todos, acreditam que podem escapar nadando. Se a água é fria demais para nadar ou o mar está coalhado de tubarões e a morte é certa, têm pelo menos o consolo de que vão para o céu, congelados e em pedacinhos.
É essa a atitude adotada por muitas pessoas tidas por "progressistas", diante da atual onda de governos populistas na América Latina, o do histrião Hugo Chávez da Venezuela à frente. Como se sabe, esses governos são um desastre monumental, uma verdadeira fórmula para o fracasso. Diante disso, muita gente boa, não querendo sair de vez do jardim-de-infância esquerdista nem passar por "de direita" - a encarnação do mal, segundo uma visão idiota há muito estabelecida -, termina caindo numa cilada mental, agarrando-se à primeira ilusão que aparecer como sua tábua de salvação.
Na América Latina, essa cilada responde atualmente pelo nome de teoria das "duas esquerdas" - uma, furibunda e "carnívora", adepta do nacional-estatismo mais atrasado; outra, racional e "vegetariana", que, pelo menos aparentemente, reconhece a importância da democracia e as regras da economia de mercado. São representantes da primeira os governos de Hugo Chávez na Venezuela, do índio fajuto Evo Morales na Bolívia e do enfant terrible Rafael Correa no Equador, sem falar, claro, no patrono de todos os perfeitos idiotas latino-americanos, o tirano Fidel Castro. A segunda corrente seria representada, por sua vez, pelos governos esquerdistas mais light de Lula, Michelle Bachelet no Chile e Tabaré Vázquez no Uruguai, com o argentino Néstor Kirchner esquizofrenicamente espremido em algum lugar entre as duas vertentes.
Essa teoria gastronômica das "duas esquerdas" vem sendo elaborada por pessoas que sempre militaram nas hostes esquerdistas, como o venezuelano Teodoro Petkoff (autor, aliás, de um livro chamado Dos Izquierdas), um ex-guerrilheiro e veterano dirigente comunista. Diante do caráter burlesco e histriônico do fenômeno chavista, Petkoff passou-se para a oposição a Chávez, a quem chama de legítimo expoente da esquerda "borbônica" (a que não esquece nem aprende). Até mesmo os autores do Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano e de El Regreso del Idiota, livros fundamentais para se compreender a onda de idiotice esquerdizóide que vem tomando conta do hemisfério, endossaram essa tese. No Brasil, a revista Veja (até ela!) também parece ter-se deixado iludir, ao afirmar recentemente que a melhor forma de lidar com as presepadas de Chávez e companhia seria simplesmente ignorá-los, deixá-los de lado, pois contaríamos aqui com um governo - o de Luiz Inácio Lula da Silva - que, apesar dos pesares, estaria fechado com a democracia e com a estabilidade econômica, sendo, portanto, um mal menor, ou mesmo um antídoto contra o neopopulismo castro-chavista-indigenista.
Trata-se de um grande erro, evidentemente. A chamada esquerda "vegetariana", representada entre nós por Lula, não passa de uma escada para a esquerda "carnívora" de Chávez, Fidel, Morales e Correa. Ambas se completam, se complementam. A esquerda "carnívora", para sobreviver, precisa de cúmplices, de simpatizantes. A ditadura de Fidel Castro em Cuba, por exemplo, certamente não existiria nem continuaria prendendo e fuzilando dissidentes se não fosse a complacência com que foi e continua a ser tratada pelos governos "vegetarianos" do continente e de fora dele, como o de Rodríguez Zapatero na Espanha. Do mesmo modo, a semi-ditadura de Chávez e as estripulias "indigenistas" do índio de araque Evo Morales só são possíveis porque há governos - como o do "vegetariano" Lula no Brasil - que preferem virar o rosto e justificar suas ações, mesmo que estas, como no caso da nacionalização das refinarias da PETROBRAS na Bolívia, prejudiquem os interesses nacionais brasileiros.
A idéia de que os "vegetarianos" seriam inofensivos e representariam o juste milieu, o caminho do meio, é uma das maiores empulhações que já surgiram sob o sol. Se estes proclamam seu amor à democracia e ao mercado, não o fazem por convicção ou compromisso filosófico, mas por conveniência política ou falta de opção. A diferença é que os "carnívoros" não se dão sequer a esse trabalho, proclamando abertamente seus propósitos totalitários. Como disse certa vez o Diogo Mainardi, refrigerante light engorda menos, mas também engorda. Assim como não existe socialismo democrático, não existe esquerda light, existe esquerda ingênua ou dissimulada.
A divisão entre "carnívoros" e "vegetarianos", "radicais" e "reformistas","xiitas" e "moderados", "jurássicos" e "modernos", não é de hoje. Sua origem remonta, pelo menos, à Segunda Internacional, fundada por Karl Marx e Friedrich Engels no final do século XIX, onde se digladiavam "revolucionários" (que dariam origem aos comunistas) e "evolucionistas" (que se tornariam, depois, os sociais-democratas). Durante a Revolução de 1917 na Rússia, essa divisão se expressou na cisão entre "bolcheviques" e "mencheviques". Mais tarde, as duas correntes se juntaram, após 1935, na política de "frentes populares", baseada na aliança entre os comunistas e os setores democráticos da burguesia "contra o fascismo". Essa política foi aplicada, com resultados desastrosos, na Espanha e na França, tornando-se, durante a Segunda Guerra Mundial, a base da aliança da ex-URSS com os países democráticos contra o Eixo nazi-fascista. Ao mesmo tempo, a tática revolucionária comunista passou a apoiar-se cada vez mais na simpatia de importantes setores das artes e ciências nos países do Ocidente, como atores, diretores de teatro e cinema, músicos, pintores, professores etc. - enfim, a intelligentsia, de acordo com a visão gramsciana de conquistar cada vez mais espaço("hegemonia") na superestrutura da sociedade capitalista para miná-la por dentro, sempre usando uma máscara de bom-moço, de defensor da liberdade e da democracia.
De lá para cá, a política de "frentes populares" só mudou de nome, conservando, em sua essência, o caráter tático de caminho para a tomada do poder pelos "carnívoros", os comunistas. Foi assim, por exemplo, na antiga Tchecoslováquia, onde os vermelhos impuseram sua ditadura logo depois de vencerem as eleições, em 1948, com o apoio da esquerda "vegetariana" -socialistas, sociais-democratas, liberais etc. -, a qual foi logo recompensada pelos novos donos do poder, sendo enviada aos magotes para mofar em campos de concentração. Vinte anos depois, em 1968, o que restou dessa esquerda "vegetariana", anti-totalitária, resolveu manifestar-se na famosa "Primavera de Praga", defendendo um "socialismo com liberdade". O resultado foi uma dura lição, na qual ela foi novamente calada, dessa vez pelos tanques da ex-URSS que invadiram o país, em nome do socialismo e para enterrar a liberdade.
E isso também na América Latina. Aqui, os "vegetarianos" sempre serviram de escada ou de trampolim para os "carnívoros". Assim como os comunistas, nos países desenvolvidos, passaram a se esconder atrás de palavras de ordem aparentemente inofensivas, como "paz" e "democracia", para ocultar seus verdadeiros objetivos (guerra e ditadura), por essas plagas nunca faltaram companheiros de viagem e inocentes úteis do comunismo. Estes, a pretexto de defender teses nacionalistas ou conciliar o inconciliável - socialismo e liberdade -, apenas prepararam o caminho para o assalto comunista ao poder. Em nome de slogans aparentemente democráticos, o que se planejava, na verdade, era a implantação de regimes totalitários.
O exemplo clássico desse tipo de manipulação é, claro, Cuba. Lá, Fidel Castro e seus barbudos tomaram o poder, em 1959, prometendo democracia e eleições livres. Bastaram pouco mais de dois anos, porém, para que a revolução castrista mostrasse sua verdadeira face, transformando a ilha numa ditadura comunista vitalícia e num porta-aviões soviético nas Américas. Em outras palavras: prometeu-se uma revolução e fez-se outra. Quanto ao motivo verdadeiro da rebelião contra a ditadura anterior, o restabelecimento da democracia e das eleições livres, até hoje os cubanos esperam por elas.
Isso quase ocorreu em outros países da região, como a Guatemala sob o coronel Arbenz em 1950-1954, passando pelo governo da Unidade Popular no Chile em 1970-1973 e pelo fracasso sandinista na Nicarágua nos anos 80. O Brasil, claro, não passou incólume a essa onda histórica - basta lembrar as palavras de Luiz Carlos Prestes, então Secretário-Geral do Partido Comunista Brasileiro (e, se a revolução triunfasse, futuro Líder Máximo da República Soviética do Brasil), às vésperas do golpe que derrubou o governo de João Goulart - protótipo do esquerdista "vegetariano" -, as quais não deixam dúvidas: "nós, os comunistas, já estamos no governo; só não estamos ainda no poder".
Hoje em dia, com o comunismo morto e enterrado, muitos acham que esse tipo de análise não mais procede, sendo tudo paranóia de um punhado de"direitistas" e "reacionários", saudosos da Guerra Fria. É assim que pensam aqueles, que constituem a imensa maioria, que são simplesmente indiferentes à política e à História. É outro erro, certamente induzido por décadas de infiltração marxista na mídia e nas universidades. Basta olhar, por exemplo, para os muçulmanos "moderados"("vegetarianos"), diante do terrorismo dos fundamentalistas ("carnívoros"). Que líder muçulmano "moderado" se atreve a condenar abertamente, perante os fiéis, os atentados do Hamas e da Al-Qaeda (ao contrário, sempre estarão dispostos a dizer alguma palavrinha contra Israel e os EUA)? Em que momento Lula e Zapatero condenaram abertamente regimes como o de Chávez e Fidel? Nem precisa ir muito longe: mostrem-me quando Lula resolveu enquadrar os "carnívoros" do MST, por exemplo. Sem a cumplicidade ou, pelo menos, o silêncio dos "vegetarianos", os "carnívoros" não teriam como existir. Aqueles são seus melhores relações-públicas.
Assim como durante décadas se alimentou o mito de que o socialismo pudesse ser compatível com a democracia, muitos mantém hoje a falsa esperança de que uma esquerda "boa", vegetariana, com Lula à frente, possa contrabalançar o furor populista da esquerda "má", carnívora, na América Latina. E, assim como aquela, esta é uma esperança vã, dramaticamente desmentida pelos fatos todos os dias: nos últimos anos, a força e influência dos "carnívoros" só aumentou, de forma inversamente proporcional a qualquer suposta capacidade moderadora dos seus colegas "vegetarianos". Em vez de servir-lhes de contrapartida, estes têm-se limitado a dizer amém a suas sandices, o que apenas os estimula a ir adiante. Caso haja alguma dúvida quanto a isso, sugiro dar uma olhada na maneira vergonhosa e acabrunhada como o Governo do Brasil se curvou à monumental tunga das refinarias brasileiras na Bolívia pelo índio de butique Evo Morales.
Não há solução para a América Latina dentro do campo esquerdista. Assim como os nacionalistas e outros exemplares da esquerda "vegetariana" na época de Prestes e Goulart, os "vegetarianos" de hoje são instrumentos dos "carnívoros". Para usar uma metáfora futebolística, tão na moda nestes tempos de muita lábia e poucos neurônios, aqueles passam a bola, enquanto estes a chutam. O que se pretende, com essa falsa dicotomia, é salvar o próprio conceito de "esquerda", cobrindo-o com uma aura de racionalidade, atribuindo-lhe virtudes contra as quais sempre lutou. Se é de forma consciente ou não, por malandragem ou ingenuidade, não faz a menor diferença. De um jeito ou de outro, o navio acaba afundando.
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