terça-feira, maio 08, 2007

HUGO CHÁVEZ, OU O TOTALITARISMO DO SÉCULO XXI*


É triste o destino das esquerdas. Depois de mergulharem de cabeça na ilusão marxista, que intoxicou milhões de corações e mentes no mundo todo após a Revolução de outubro de 1917 na Rússia - tornando-se portanto cúmplices dos milhões de mortos gerados pelo comunismo no século XX -, estas se deixaram enganar por ditaduras como a de Fidel Castro em Cuba e por empulhações como o "pós-modernismo" e outras idiotices semelhantes, que geraram o discurso "politicamente correto". Agora, nossos esquerdistas, órfãos de qualquer referência após a queda do Muro de Berlim e o colapso da URSS, encontraram outro ícone da revolução mundial para idolatrar, outro "líder de novo tipo"(como gosta de dizer o editor do Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet). Enfim, outro guia genial dos povos, o herói dos fracos e oprimidos. Quem? Ele, o Presidente da República Bolivariana da Venezuela, o Coronel Hugo Rafael Chávez Frías.

Tendo estagiado na Embaixada do Brasil em Caracas de 2004 a 2005, tive a oportunidade de ver de perto a tal "revolução bolivariana" que o Comandante - é assim que ele é chamado por seus seguidores - Hugo Chávez vem implantando na Venezuela. Pude constatar até que ponto vai a manipulação da História e da vida política da nação, em favor de um projeto pessoal e narcisista de poder, chancelado pelo plebiscito de 15/08/2004, que confirmou a permanência de Chávez na presidência da República. Pude verificar, também, o grau de ingenuidade e ignorância (para ser caridoso) com que muitos dos intelectuais brazucas enxergam nosso vizinho problemático. Para se ter uma idéia do que digo, vou contar apenas uma história, que mais parece uma anedota.

Às vésperas do plebiscito que confirmou a permanência de Chávez no Palácio de Miraflores, um grupo de intelectuais brasileiros (dos quais fazia parte, ao lado de figurinhas carimbadas do esquerdismo tupiniquim, nomes como o de Chico Buarque de Holanda, certamente sem nada melhor para fazer no momento) resolveu publicar um manifesto, em que enaltecia a "iniciativa" do Presidente Hugo Chávez de "se submeter, voluntariamente" ao escrutínio popular em um referendo, coisa inédita na história mundial. Desse modo, buscavam apresentá-lo como um governante magnânimo e um verdadeiro democrata, que estaria colocando seu próprio cargo em jogo em favor da livre manifestação da vontade do povo.

Acontece que a tal iniciativa a que o manifesto se referia não partiu de Chávez coisa nenhuma. Partiu, isto sim, da oposição a ele que, utilizando-se de um dispositivo constitucional, durante mais de um ano lutou na Justiça para conseguir validar os milhares de assinaturas que pediam a convocação do plebiscito. Enquanto isso, Chávez e sua tropa de choque fizeram literalmente de tudo para impedir a realização da consulta popular! (E como, mesmo assim, ele se saiu vitorioso? A resposta a esta pergunta deve ser buscada nos estranhos mecanismos que comandaram o processo eleitoral... mas isso é outra história). Assim, os autores do manifesto, ao louvarem a realização do plebiscito, estavam, na realidade, enaltecendo a oposição a Chávez, e não o próprio.

Isso é apenas uma pequena mostra, embora significativa, do nível de confusão e de auto-engano a que se submeteram os defensores do Coronel fora da Venezuela. Dentro do país, por sua vez, o que existe é uma situação de crise permanente, provocada pelo desmoronamento das instituições republicanas, em função da ação de Chávez e de seus asseclas. A Venezuela de hoje, se não é ainda uma ditadura com todas as letras, está muito longe de ser uma democracia. Chávez recebeu carta-branca do Parlamento - controlado por ele - para governar do jeito que quiser, como quiser, e até quando quiser. A clássica separação de poderes, condição sine qua non do Estado de Direito Democrático, há muito deixou de existir. Existem hoje na Venezuela não três, mas cinco - cinco! - poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário, Cidadão e Eleitoral), todos meras fachadas para garantir o poder do "Comandante". Para dar um lustre, digamos, popular à sua ditadura de facto, o coronel venezuelano apela constantemente à máquina política do Estado, mediante a ação de seus seguidores do Movimento Quinta República (MVR) e dos "círculos bolivarianos" espalhados nos bairros pobres, e chama isso de "democracia participativa e protagônica". Pior: tudo isso a serviço de um modelo ideológico falido, uma mistura de nacionalismo, estatismo e militarismo que, à falta de uma definição clara e precisa, foi apelidado pomposamente de "socialismo do século XXI" - na verdade um simples rótulo para classificar o velho populismo e o caudilhismo latino-americanos. É o totalitarismo do século XXI, que não ousa dizer o nome.

Por toda parte a que se vá no país, sente-se um clima de déjà vu, de paródia; respira-se um ar de tapeação, como na célebre frase de Marx sobre a História repetindo-se primeiro como tragédia, depois como farsa. Cartazes com o rosto de Chávez, sozinho ou ao lado de ditadores como Fidel Castro - seu mentor político - ou de heróis nacionais como o onipresente Simón Bolívar são vistos em vários lugares de Caracas, no melhor figurino totalitário, como um Stálin ou um Mussolini tropical. Hábil comunicador, Chávez costuma desfilar seus impropérios contra Bush e o "império" em linguagem de cortiço. Para tanto, ele tem até um programa dominical de TV, no qual anuncia as decisões de seu governo, entre um e outro interminável monólogo contra os EUA, o imperialismo, a globalização etc., para o delírio de claques especialmente selecionadas de perfeitos idiotas latino-americanos.

A utilização da mídia, aliás, tem lugar de destaque na chamada "revolução" chavista. Além da farta propaganda oficial, ultimamente Chávez vem investindo pesado contra as redes e jornais que lhe fazem oposição, mandando fechar, por exemplo, a mais antiga rede de TV do país, acusada por ele de "golpista". Além disso, o governo já baixou um decreto de censura aos meios de comunicação - apelidado de "Lei Mordaça" -, impondo uma série de limites à liberdade de expressão. Em lugar de uma imprensa livre, Chávez resolveu patrocinar, juntamente com a Bolívia, o Brasil, a Argentina e o Uruguai, a criação de um canal de TV chapa-branca, a Telesul, para fazer concorrência, segundo ele, às grandes redes norte-americanas como a CNN e a Fox News e divulgar a "verdadeira" versão dos fatos. Desnecessário dizer que se trata, na verdade, de mais um veículo de propaganda ideológica oficial a serviço do chavismo.

A ASCENSÃO DO CAUDILHO

Mas como um indivíduo tão escancaradamente desqualificado, com um discurso tão anacrônico e intenções claramente autoritárias, para não dizer totalitárias, conseguiu alçar-se à condição de principal fator de instabilidade na América Latina? A resposta para essa indagação, evidentemente, deve ser buscada na trajetória de Chávez, que se confunde com a da própria Venezuela em anos recentes. País rico em petróleo - é o quinto maior produtor mundial do produto -, com uma tradição de quarenta anos de democracia e estabilidade política de 1958 a 1998 (quando, tirando algumas tentativas de guerrilha patrocinadas por Cuba nos anos 60, predominou um sistema na prática bipartidário), a Venezuela era, até meados dos anos 80, uma exceção na América Latina dominada por ditaduras militares e líderes populistas. A "Venezuela saudita", como se dizia então, ostentava alguns dos melhores índices econômicos e sociais do continente, graças à fartura do ouro negro. A vida política, dominada por dois partidos que se alternavam no governo - a AD e a COPEI -, transcorria com previsibilidade e monotonia quase suíças.

Entretanto, como sói acontecer com países que dependem de um único produto de exportação, não foi dada a devida atenção ao desenvolvimento de uma base industrial sólida. Assim, quando o boom do petróleo, que atingiu seu auge nos anos 70, chegou ao fim, o resultado foi uma explosão de descontentamento social. Este se refletiu de maneira trágica no famoso Caracazo de 1989, quando centenas de pessoas morreram em protestos nas ruas da capital contra um aumento do preço da gasolina, durante o segundo governo de Carlos Andrés Pérez (1989-1992).

Com os partidos e os políticos tradicionais desacreditados, estavam criadas as condições para o surgimento de líderes demagógicos e de um salvador da pátria. Este veio, finalmente, da única instituição que ainda não era considerada contaminada pelo descrédito e pela corrupção reinantes, as Forças Armadas, na forma de uma tentativa sangrenta de golpe militar, em fevereiro de 1992 (seguida de outra, igualmente sangrenta, alguns meses depois). À frente dessa primeira intentona putschista, estava um até então desconhecido tenente-coronel do Exército, vindo de um lugar obscuro no interior. Seu nome: Hugo Chávez.

Desde então, Chávez apenas colheu os frutos do esfacelamento do sistema político venezuelano, à medida que a crise econômica e social se agravava. Precisava apenas de um referencial histórico (Bolívar, certamente se revirando no túmulo) e de um suporte ideológico. Este veio, finalmente, de outro regime cambaleante, o de Fidel Castro em Cuba, com quem Chávez foi buscar conselhos e inspiração logo após sair da prisão, em 1994. Ao contrário do moribundo regime democrático de Caracas, porém, o de Fidel Castro tinha algo a oferecer ao recém-libertado coronel golpista venezuelano: uma fórmula para conquistar e - principalmente - manter o poder, um projeto político de caráter ditatorial - e os meios para isso.

Outra fonte de inspiração, menos conhecida, para as parlapatices chavistas foram os escritos de Norberto Ceresole, idéologo fascista argentino, já falecido, que entre suas façanhas contava a de ter assessorado a ditadura militar do general Viola na Argentina nos anos 70, e para o qual a derrota das forças de Hitler e Mussolini na 2a Guerra "foi uma tragédia para a América Latina". De Ceresole - que foi mesmo, ao lado do ditador de Cuba, o guru de Chávez nos anos que se seguiram à sua soltura da prisão -, o coronel venezuelano aproveitou a tese do "Exército-Caudilho-Povo", segundo a qual estas três forças juntas deveriam constituir a base da "revolução" pretendida - ou seja, uma mistura de militarismo, caudilhismo e populismo, com uma pitada de fascismo e de anti-semitismo. Dele extraiu também o antiamericanismo visceral, base da idéia de criar um eixo latino-americano de oposição aos EUA - usando, para tanto, a arma do petróleo. Daí os modelos políticos adotados por Chávez serem todos ditaduras - a de Fidel Castro em Cuba, a de Velasco Alvarado no Peru, a do coronel Muamar Kadafi na Líbia etc -, o que faz dele um personagem que está muito mais para Mussolini do que para Marx. Ao que parece, a multidão de idiotas úteis esquerdistas que ora idolatra o histrião de Caracas desconhece esse detalhe ou, então, prefere ignorá-lo.

Chávez não perdeu tempo. Ancorado no partido por ele criado, o MVR, e em sua crescente popularidade, principalmente - mas não exclusivamente - entre os setores mais pobres da população, foi fácil para ele chegar à presidência, em 1998. Na ocasião, ele tinha um discurso anódino, certamente inspirado na experiência de Fidel Castro em Cuba antes de impor sua ditadura, quando este jurava de pés juntos que era um democrata e anticomunista. Assim que botou os pés no palácio presidencial, porém, Chávez deu início a seu plano autoritário. O primeiro passo foi convocar uma Assembléia Constituinte para estabelecer uma nova Constituição, que lhe deu poderes ampliados. Em seguida, a composição do Supremo Tribunal também foi modificada, com a nomeação de juízes sintonizados com o novo governante. E, como que para marcar definitivamente uma ruptura com o passado, mudou-se o nome oficial do país, agora rebatizado de República Bolivariana da Venezuela (algo tão significativo quanto rebatizar o Brasil de República Tiradentina ou coisa que o valha). Com isso, o novo Presidente tratou de consolidar seu poder, sobretudo após os acontecimentos de abril de 2002, quando chegou a ser deposto (ou renunciou, não se sabe) por dois dias, antes de ser reconduzido ao governo por obra dos mesmos militares que o haviam apeado do cargo, em um episódio ainda hoje não esclarecido - e cuja versão oficial, claro, vem sendo desde então explorada ad nauseam pelo governo para fins de propaganda.

Ao mesmo tempo em que montava o aparato institucional necessário à sua perpetuação no poder, o "Comandante" tratou de ampliar sua base de sustentação política entre as camadas mais desfavorecidas da sociedade, mediante as chamadas misiones - programas improvisados de cunho assistencialista, como a Misión Robinson (de alfabetização) e a Misión Barrio Adentro (saúde), ambas levadas a cabo, respectivamente, por professores e médicos cubanos. Como em política não há vácuo, as comunidades assistidas por esses programas, agradecidas, passaram a fornecer o grosso da militância chavista, e tais programas, a despeito de sua eficiência bastante duvidosa, tornaram-se um importante instrumento para garantir a lealdade política ao chavismo: aqueles que assinaram a petição a favor do referendo contra Chávez, por exemplo, tiveram seus nomes incluídos numa lista e ficam de fora dos supostos ou reais benefícios desses programas. Como se vê, uma democracia verdadeiramente "participativa e protagônica".

OS BONS COMPANHEIROS

De todos os regimes com os quais o coronel venezuelano se identifica, o principal é a ditadura comunista de Fidel Castro em Cuba. A "revolução" de Chávez, aliás, não seria possível se não fosse pela candura e condescendência com que até hoje é tratada por muitos governos da região a ditadura castrista. É dela que Chávez retira a inspiração diária para impor sua ditadura pessoal, acumulando poderes, calando a oposição, estabelecendo aos poucos seu próprio culto à personalidade.

É patente a influência cubana nas medidas adotadas pelo regime de Chávez. Um exemplo: em 2005, os governos de Caracas e de Havana assinaram um acordo de cooperação policial que praticamente concede a agentes cubanos o privilégio da extraterritorialidade, ao permitir-lhes deter qualquer pessoa de nacionalidade cubana que viva na Venezuela e extraditá-la para Cuba, por delitos só existentes na legislação cubana (por exemplo: falar mal de Fidel Castro). Como a Venezuela tem uma população de exilados cubanos relativamente grande, tal medida tem um caráter claramente unilateral.

Também no terreno econômico o Comandante venezuelano parece ter buscado inspiração na ilha do Caribe: de 1999 para cá, o PIB da Venezuela vem despencando ladeira abaixo, o nível de vida da população só caiu, e os índices de criminalidade e de inflação crescem sem parar. (Exemplo quase cômico do descalabro do país sob Chávez foi a queda do viaduto que liga o aeroporto de Caracas à capital. É quase uma metáfora da situação do país desde que ele assumiu o poder). Mesmo assim, a Venezuela veio em socorro à ditadura cubana, tendo assumido hoje o papel que um dia já foi da ex-URSS, na forma de 100 mil barris diários de petróleo fornecidos praticamente de graça à ilha, em troca dos tais professores e médicos para as misiones.

Em todas as suas ações, é clara a intenção de Chávez de fazer da Venezuela uma cópia xerox de Cuba, assim como, em épocas passadas, Fidel Castro tentou transformar Cuba em um papel carbono da ex-URSS. Em consonância com esse fim, Chávez já anunciou, de uma penada, uma reforma agrária tão pirotécnica quanto fajuta e a criação de uma nova doutrina militar, baseada no conceito de "guerra assimétrica" - recentemente, ele comprou um lote de caças supersônicos russos e instalou uma fábrica de fuzis AK-103 no país. Além disso, ele já anunciou sua intenção de formar uma milícia com 2 milhões de cidadãos armados. Para quê? Para resistir à "invasão imperialista ianque", claro, no que fica evidente mais uma vez a inspiração cubana (assim como seu ídolo Fidel, Chávez não cansa de denunciar conspirações dos EUA e da CIA para invadir o país e assassiná-lo, o que demonstra uma clara tendência paranóica-esquizóide). Inclusive os famigerados "Comitês de Defesa da Revolução" (CDRs) - cuja função é espionar a vida dos indivíduos em cada quarteirão de Cuba para garantir a fidelidade ao regime - ele vem emulando, criando suas próprias "Unidades de Defesa da Revolução" (UDRs).

Esse outro traço comum com o regime comunista cubano, a militarização da sociedade, caminha de mãos dadas com a exportação da "revolução bolivariana". Assim como Fidel Castro tentou exportar sua revolução, apoiando abertamente grupos guerrilheiros e subversivos na América Latina nos anos 60 - e não só contra regimes ditatoriais, como se tornou um lugar-comum afirmar desde então -, Chávez vem usando os petrodólares para interferir nos países da região e promover a instabilidade no continente. Nos últimos anos, utilizando o dinheiro advindo dos lucros do petróleo, Chávez imiscuiu-se descaradamente nos assuntos internos de vários países vizinhos, tendo apoiado, por exemplo, uma tentativa de golpe militar no Peru em 2005 e comprado briga com o Chile, ao declarar que adoraria molhar os pés "no mar da Bolívia". Chávez já entrou em bate-bocas públicos com os presidentes da Colômbia (Álvaro Uribe), do Peru (Alan García) e do México (o ex Vicente Fox), além de ter sido, como sabemos, o verdadeiro cérebro por trás da decisão recente do governo de Evo Morales de encampar as refinarias da PETROBRAS na Bolívia. Suas fanfarronices já começaram a fazer escola, tendo surgido êmulos seus na Bolívia (Evo Morales) e Equador (Rafael Correa), todos regiamente apoiados pelos petrodólares bolivarianos, generosamente depositados em seus cofres de campanha. Pelo visto, a defesa da soberania nacional, no jargão chavista, vale apenas para criticar os EUA.

Se a chamada "revolução" de Chávez se limitasse à Venezuela, talvez seu governo não passasse de uma excentricidade, um exotismo inofensivo, colorido pelo caráter folclórico de seu líder. Certamente, esta é a visão de muitos no Brasil, que o vêem como um paladino do orgulho terceiromundista ou que, pelo menos, divertem-se com suas palhaçadas. No entanto, por suas próprias características, o regime chavista só pode sobreviver estendendo seus tentáculos aos países vizinhos. Chávez não faz segredo de suas intenções expansionistas, baseadas na idéia megalomaníaca de recriar o sonho de Bolívar. Seu objetivo, na verdade sua obsessão, é a formação de um eixo latino-americano, que, além da Venezuela, já abrangeria Cuba, Bolívia, Equador, Argentina e Nicarágua, além de, relutantemente, Brasil e Uruguai, com ele, Chávez, obviamente como guia e líder. A finalidade de tal eixo político é uma só: enfrentar os EUA. Para tanto, Chávez comemorou a não-implementação da ALCA - o que ele se vangloria de ser um de seus maiores triunfos -, propondo, em lugar desta, uma certa "Alternativa Bolivariana das Américas" (ALBA), e conseguiu, com a complacência do governo brasileiro, transformar o MERCOSUL num palco para suas arengas antiamericanas.

Nesse quesito, aliás, ele perde para poucos, fazendo questão de aparecer como o campeão do antiamericanismo no continente. Basta dizer que ele já chegou a afirmar que a Secretária de Estado norte-americana Condoleeza Rice é apaixonada por ele, e, num célebre discurso na Assembléia Geral da ONU - o palco por excelência de todos os déspostas e carniceiros do mundo, de Yasser Arafat a Idi Amim - chamou o Presidente George W. Bush de "diabo", em um gesto teatralmente ensaiado. Chávez fez questão de ser o último governante a visitar Saddam Hussein antes de sua queda pela invasão anglo-americana de 2003, e foi um dos poucos a defender os testes nucleares norte-coreanos ano passado. Entre seus amigos, figura um louco, o Presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, e o venezuelano Illich Ramírez Sánchez, mais conhecido como "Carlos, o Chacal", antiga estrela do terrorismo internacional, atualmente preso e condenado à prisão perpétua na França, que compartilha com Chávez o gosto narcísico pela publicidade e com quem costuma trocar calorosas mensagens de fim de ano. Como se não bastasse, ele tomou de assalto o Fórum Social Mundial, transformando-o num palanque para destilar suas platitudes anti-EUA, e muita gente no Brasil acha o máximo.

O antiamericanismo de Chávez provoca às vezes situações esdrúxulas. Até pouco tempo atrás, por exemplo, o governo da Venezuela era um firme defensor da pesquisa e produção de combustíveis alternativos, como o etanol. Bastou que Bush se interessasse pela idéia, realizando uma visita ao Brasil em março passado, e o mandatário venezuelano mudou radicalmente seu discurso. Para tanto, valeu-se de seu amigão do peito Fidel Castro, que, do leito de morte, publicou um artigo no jornal oficial cubano condenando o etanol, pois este iria "provocar mais fome no mundo"...

Tudo isso torna imperativo não se deixar iludir pela retórica chavista, falsamente integracionista. Tudo que Chávez faz ou diz, todas as suas iniciativas de "integração" com os países vizinhos, seja no terreno econômico ou energético, obedecem tão-somente a um cálculo político, são um instrumento a serviço de seu projeto populista de poder continental. Governar, para ele, é polemizar, é buscar o confronto: com os EUA, com a oposição interna, com quem quer que se coloque no caminho de seu objetivo narcisista de poder absoluto e de liderança continental. Contemporizar, aqui, significa apenas reforçar as ambições de um dirigente autoritário e megalomaníaco, que em nada favorecem a integração latino-americana. Muito pelo contrário.

RUMO À DITADURA

Este é um fato a que alguns governos sul-americanos, como o do Brasil, infelizmente ainda parecem não terem se dado conta. O governo Lula insiste em tratar Chávez, assim como Morales na Bolívia, como um amigo e aliado (Chávez é um "aliado excepcional", declarou recentemente Lula), quando este já deu mostras mais que suficientes de seu caráter funesto e pernicioso. Isso mostra que Chávez, além de tudo, é um político de sorte: para construir sua base de poder, ele contou não apenas com sua própria esperteza e com a incompetência e mediocridade da oposição venezuelana - até hoje incapaz de apresentar uma alternativa viável ao Coronel -, mas também com a cumplicidade dos governos dos países vizinhos, que insistem em fechar os olhos ou em minimizar a ameaça que ele representa para o continente.

A Venezuela caminha para a ditadura. Não há dúvida quanto a isso. No início do ano, a Assembléia Nacional venezuelana, composta por 100% de deputados favoráveis a Chávez, concedeu-lhe poderes ditatoriais, e outra lei permitiu-lhe reeleger-se indefinidamente, quantas vezes quiser (ele já declarou para quem quiser ouvir que pretende ficar no poder, pelo menos, até 2030). É verdade que, na Venezuela atual, ainda não há fuzilamentos nem presos políticos em campos de concentração, ao contrário da ilha de Cuba ou da Coréia do Norte. Também é verdade que, diferentemente desses países, a imprensa, apesar das restrições crescentes à liberdade de expressão, ainda funciona livremente. Ainda. Pois, a julgar pelo andar da carruagem, é só uma questão de tempo até que o Coronel repita o gesto de seu mestre e mentor Fidel Castro, e, empoleirado no poder, proclame aos quatro ventos, com a cara mais lavada do mundo: "Eleições? Eleições para quê?". Se algo não for feito, tal dia, cedo ou tarde, vai chegar. Podem apostar.

Há muito de bufonaria e de chanchada, de caricatura, na tal "revolução" de Chávez e no "socialismo" por ele preconizado. Todavia, é um erro não lhe dar a devida atenção. Chávez certamente é um demagogo, um palhaço e um político primitivo em suas palavras e ações, mas está longe de ser inofensivo. Com seus petrodólares abundantes, suas incursões na política dos países vizinhos e suas armas recém-adquiridas, ele é um perigo para a saúde da democracia na América Latina.

Que o povão da Venezuela, há muito abandonado pelas elites do país, enxergue em Chávez uma espécie de Messias ou um herói vingador, assim como o povo alemão via Hitler na década de 20 como um redentor da nação humilhada e empobrecida, é algo até compreensível. Que tantas pessoas tidas por inteligentes, porém, deixem-se voluntariamente cair em mais esse conto-do-vigário, prestando-se ao papel de porta-vozes do fanfarrão de Caracas e de sua "revolução bolivariana", é um desses mistérios insondáveis da humanidade, que apenas comprovam aquilo que Raymond Aron chamou de "ópio dos intelectuais" e Jean-François Revel, de "tentação totalitária". É algo que desafia a razão, parecendo provar que uma certa categoria de seres humanos sente-se irremediavelmente atraída por políticos histriônicos e demagogos, que usam e abusam da retórica vazia e de gestos teatrais para atingir seus objetivos personalistas. Na América Latina, nos últimos cem anos, tivemos uma safra bastante prolífica desses tipos: Perón na Argentina, Vargas e Lula no Brasil, Fidel Castro em Cuba... Com a diferença de que estes, pelo menos, eram/são grandes atores. Ao contrário de Chávez, um deslavado canastrão. Mas atores canastrões, assim como os cantores bregas, sempre terão um público cativo. E, como este, os admiradores de Chávez, Fidel Castro, Morales et caterva são atraídos não pela qualidade do espetáculo, mas por sua escrachada histrionice, por seu caráter farsesco e absurdo. É triste, muito triste mesmo o destino das esquerdas.


* Texto publicado originalmente em 27/04/2007, e republicado por motivos de melhor editoração.

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