terça-feira, maio 08, 2007

"BATISMO DE SANGUE", A HISTÓRIA TORTURADA


O que acontece quando um dos livros mais desonestos já escritos sobre o período da luta armada no Brasil durante os anos 60 e 70, de autoria de um frade católico adepto da Teologia da Libertação e admirador incondicional de Fidel Castro, é adaptado para as telas do cinema? A resposta é: um filme também desonesto, cuja vítima, além da boa fé da platéia, é a verdade histórica.

É esse o caso de Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton, atualmente em cartaz nas salas de exibição do País. Trata-se de uma obra que aposta na ingenuidade e na ignorância do espectador para tentar vender uma versão ideologicamente enviesada e factualmente mentirosa de um dos episódios mais marcantes dos chamados "anos de chumbo" no Brasil: a morte, em uma emboscada policial em São Paulo, em 4 de novembro de 1969, do ex-deputado federal e dirigente comunista Carlos Mariguella, chefe da Ação Libertadora Nacional (ALN), que defendia a revolução armada para derrubar a ditadura militar que se instalara no Brasil em 1964.

Como fica claro pelo título e pelos créditos iniciais, o filme é baseado no livro homônimo do dominicano Carlos Alberto Libânio Christo, mais conhecido como Frei Betto, publicado originalmente em 1982 (e que se encontra atualmente em sua 14a edição). O livro conta a história em parte autobiográfica do envolvimento de frades da Ordem dos Dominicanos em São Paulo com a ALN de Mariguella (seu subtítulo original, aliás, era Os Dominicanos e a Morte de Carlos Mariguella, alterado na edição mais recente para Guerrilha e Morte de Carlos Mariguella).

Na versão de Frei Betto, que passou à história como a "verdadeira", Mariguella foi vítima de uma operação de infiltração da CIA, a agência de espionagem norte-americana, dentro da ALN. O livro sustenta essa tese, sem qualquer base factual, a fim de inocentar os dois frades dominicanos que, presos dias antes no Rio de Janeiro e brutalmente torturados pela equipe do DOPS paulista liderada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, entregaram a data e o local de um encontro clandestino com o líder guerrilheiro, na alameda Casa Branca, além da senha utilizada para marcar tais encontros por telefone ("Aqui é da parte do Ernesto. Esteja hoje na gráfica", telefonava um emissário de Mariguella para a livraria onde um dos frades trabalhava).

Na versão fantasiosa do livro de Frei Betto, todo o episódio da prisão e tortura dos dois dominicanos teria sido apenas uma "encenação" montada pelos serviços de repressão da ditadura para incriminá-los pela morte de Mariguella, de modo a indispor a ala "progressista" da Igreja Católica com os grupos que faziam oposição violenta ao regime militar. Nessa visão, Mariguella teria sido emboscado e morto com ou sem a delação dos dominicanos, cuja presença no local do tiroteio teria servido apenas ao propósito de forjar a versão oficial da delação.

Para dar lustre a sua teoria de infiltração da CIA, o livro de Frei Betto insinua que a agência estadunidense teria tido conhecimento dos planos da guerrilha brasileira de seqüestrar um avião, mas não tomou nenhuma providência no sentido de informar o Governo brasileiro e impedir a ação, para não prejudicar a operação contra a ALN e Mariguella - prova irrefutável, segundo Frei Betto, de que havia um espião da agência infiltrado na organização. Mais que isso, a "prova" definitiva de que os dominicanos não teriam tido qualquer responsabilidade na morte do líder terrorista foi que este teria sido abatido a tiros no meio da rua, do lado de fora do Fusca onde se encontravam os frades, e somente depois seu corpo teria sido colocado no banco de trás do automóvel, para simular uma traição dos dominicanos.

Coube a um outro representante da esquerda brasileira, o historiador marxista Jacob Gorender, ex-dirigente do PCB e fundador do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), outra sigla da luta armada, desmontar a farsa de Frei Betto, agora exposta em filme. Em seu livro Combate nas Trevas, publicado originalmente em 1987, 6a edição, Gorender, que está muito longe de ser um direitista ou um simpatizante da ditadura militar (ele mesmo foi preso e vítima de torturas nas mãos do delegado Fleury), escreveu o seguinte a respeito da morte do líder da ALN, no capítulo "Assim mataram Mariguella":

"Às vinte horas, Mariguella apareceu subindo a alameda Casa Branca. Como de costume, aproximou-se do Fusca azul, abriu a porta e sentou no banco de trás. Instantaneamente, conforme instruções recebidas, Fernando e Yves escapuliram do carro, deram alguns passos e se jogaram ao solo" (p. 195. Grifo meu).

A respeito da teoria geral do assassinato de Mariguella inventada por Frei Betto, Gorender é incisivo:

"Frei Betto preferiu a meia verdade, o que é igual a meia falsidade. Sua versão reconhece que, sob tortura, Fernando e Yves (hoje, ex-frade) denunciaram o dispositivo de ligação com o líder da ALN. (...) Mas sua versão acumula invencionices, cujo desmentido já está na exposição acima. Devo referir-me, contudo, a uma delas: a de que o comparecimento de Mariguella ao ponto da alameda Casa Branca não se deveu exclusivamente (sic) aos dominicanos. Com ou sem o telefonema à Livraria Duas Cidades, ele iria até lá atraído por agentes da CIA infiltrados na ALN. O telefonema teria visado tão-somente a uma encenação (sic), que comprometesse a Igreja e a Ordem dos Dominicanos com o movimento subversivo". (p. 198. Grifos no original)

Em suma, o que Gorender afirma em seu livro - com base em depoimentos e sólida documentação, como está lá para quem quiser comprovar com os próprios olhos - é o seguinte: sob tortura, os dominicanos entregaram o local, a data e a senha do ponto com Mariguella. Na hora marcada, coagidos pelos policiais, esperaram o líder da ALN entrar no Fusca em que o estavam esperando. Quando este entrou, eles se afastaram rapidamente do carro. Os policiais então fuzilaram Mariguella. Não havia nenhum agente da CIA infiltrado na ALN. Nenhum espião norte-americano. Nada.

Como se não fosse suficiente, Gorender põe a pá de cal sobre a tese do livro de Frei Betto e do filme de Helvécio Ratton, ao se referir a um documento recentemente descoberto: o plano de captura de Mariguella pelo DOPS paulista, cujo primeiro ponto diz o seguinte, textualmente:

"Aguardar entrada Mariguella no carro dos padres; acionar os outros; dar voz de prisão". (p. 199. Grifo meu.)

Gorender conta ainda que ouviu de um dos dominicanos, quando estava preso com este no Presídio Tiradentes, a verdadeira história da morte de Mariguella. No entanto, em 1996, quando estavam sendo discutidas as indenizações às famílias dos mortos e desaparecidos políticos durante o regime militar, o frade misteriosamente voltou atrás, em depoimento perante a Comissão Especial da Câmara dos Deputados criada para essa finalidade. Desde então, os dois dominicanos que estiveram presentes na alameda Casa Branca têm mantido silêncio tumular sobre o episódio, endossando com isso a versão de Frei Betto, que agora se transforma em filme.

Pela análise de Gorender, fica claro que a versão de Frei Betto teve por objetivo não esclarecer a verdade, mas isentar seus irmãos de batina de qualquer culpa pelo ocorrido. De quebra, ainda inventou uma esdrúxula teoria conspiratória, baseada tão-somente em um livro - A CIA e o Culto da Inteligência, dos norte-americanos Victor Marchetti e John D. Marks - que só ligeiramente faz menção a uma suposta infiltração da CIA na ALN, e que já se encontra totalmente desacreditada pela pesquisa criteriosa de Gorender.

A bem da verdade, deve-se reconhecer que o filme de Helvécio Ratton é menos desonesto do que o livro de Frei Betto no qual é inspirado. A tese do agente infiltrado da CIA na ALN, por exemplo, não é encampada pelo filme, pelo menos não abertamente, talvez por ser algo improvável ou absurdo demais, até mesmo para seus realizadores (mesmo assim, em algumas pinceladas, o filme se permite algumas insinuações mais ou menos sutis. Após a morte de Mariguella, por exemplo, os dominicanos presos se perguntam várias vezes, em tom de perplexidade, como a repressão sabia do encontro entre eles e o líder da ALN, se nem eles próprios sabiam que estava programado tal encontro - uma clara falsificação, já que os torturadores, sabedores da ligação dos dominicanos com a ALN, desejavam saber apenas quando e onde seria o próximo encontro dos frades com Mariguella). Mas onde o filme copia ao pé da letra a versão historicamente fictícia do livro de Frei Betto é na cena da morte de Mariguella - no meio da rua, antes de entrar no carro com os dominicanos (versão esta apresentada, também, em recente episódio do programa policialesco Linha Direta, da Rede Globo de Televisão). Poderia ter optado pela reconstrução fidedigna dos fatos, tal como está na obra de Gorender, mas optou pela meia verdade - ou meia falsidade.

Além disso, Batismo de Sangue, o filme, mantém-se fiel ao livro de Frei Betto em outros aspectos importantes - o que, nesse caso, depõe contra sua credibilidade como obra de referência para se entender um período crucial da história nacional. Assim como o livro, o filme se exime de uma visão mais crítica e menos romantizada da opção dos dominicanos pela violência revolucionária, na forma do envolvimento com a ALN, uma delirante organização terrorista apoiada por Cuba, responsável por dezenas de mortes e assaltos a bancos e supermercados. Em nenhum momento de seus 110 minutos, o filme faz qualquer referência às idéias extremistas de Mariguella, que em seus escritos da época chegou a justificar abertamente o terrorismo como forma de luta, tornando-se após sua morte uma espécie de ideólogo do terror, cuja obra mais conhecida, o Minimanual do Guerrilheiro Urbano, tornou-se referência indispensável para grupos terroristas europeus como as Brigadas Vermelhas italianas e o Baader-Meinhof alemão ocidental. Também não há nenhuma referência crítica, por menor que seja, aos objetivos dos terroristas, que, como bem observaram Daniel Aarão Reis Filho e Elio Gaspari, não tinham nada a ver com democracia, mas com a implantação no Brasil, em última instância, de uma ditadura revolucionária, nos moldes da de Cuba ou da Coréia do Norte.

Tal abordagem maniqueísta acaba prejudicando a composição dos personagens, transformando-os em meros estereótipos em vez de seres de carne e osso. Assim, os dominicanos, estudantes e militantes da luta armada, sem falar no próprio Mariguella, são apresentados como figuras heróicas e idealistas, quase angelicais, enquanto os agentes da repressão, como o delegado Fleury, são interpretados de forma histérica e caricatural. Tudo denota uma clara e indisfarçável simpatia pelos padres-guerrilheiros, armados da Bíblia e de O Capital nas mãos, como na cena, que beira o piegas, em que os dominicanos celebram um arremedo de missa na prisão com suco de uva e biscoitos de maizena.

Como cinema, Batismo de Sangue tem algumas qualidades - as cenas de tortura, por exemplo, são as mais realistas e angustiantes já mostradas em um filme nacional - mas, como registro de um pedaço da história recente do Brasil, está a anos-luz da verdade dos fatos. Algo ainda mais grave diante dos incentivos financeiros à produção recebidos de empresas estatais, como a PETROBRAS e o BNDES, o que significa que o imposto do contribuinte está financiando uma versão falsa de acontecimentos históricos.

A segunda metade do filme, a exemplo do livro, descreve o longo calvário de Frei Tito de Alencar Lima, que enlouquece nas torturas e termina se suicidando no exílio na França. Ao final do filme, porém, fica-se com a impressão de que as vítimas da tortura não foram apenas os presos políticos nas celas do DOPS e do DOI-CODI - A exemplo de outros filmes apologéticos da luta armada e do comunismo, como o chatíssimo Cabra-Cega e o insuportável Olga, a principal vítima, aqui, é a própria História.

3 comentários:

Anônimo disse...

O seu artigo de certa forma é válido.Porém entre outras coisas, não posso concordar com sua opinião recheada de uma carga emocional, quando se refere a o Frei Beto, como um "Frade católico adpto da Teologia da libertação e admirador de Fidel Castro.Na verdade ele e os demais dominicanos, não eram revolucionários.Apenas estavam dando apoio a um movimento que contribuiu mais tarde, para que você por exemplo, pudesse escrever seu artigo.Portanto,não seja injusto com pessoas que lutaram por uma causa nobre.Eu não vivi a época de chumbo mas tenho idéia do que foi.Acho que você também não viveu essa época, mas ao contrário de mim, não faz idéia.

Ass. João Paulo Cavalcante

Anônimo disse...

Ah e só pra lembrar, o Carlos Marighela não era uma terrorista não seu imbecil.

Ass. Paulo

Anônimo disse...

Putz! não acredito que perdi meu precioso tempo lendo uma idiotice dessas...
Vc é ex professor de historia, ex estudante de direito, ex estudante de ciencia politica, devia ser ex escritor de artigo tbm. Vai curtir o sossego e a praia e rever suas posições.