sexta-feira, novembro 10, 2006

O FRADE DE FIDEL


Um dos grandes fatos deste ano que está acabando foi a saída momentânea de Fidel Castro do poder, em agosto, pela primeira vez em 47 anos de ditadura eterna. Como não poderia deixar de ser, os aduladores brasileiros do velho tirano e serial killer do Caribe, que os há às pencas, escreveram loas em sua homenagem. Um desses bobocas, Frei Betto, escreveu um texto sobre o assunto, que pode ser lido no endereço http://amaivos.uol.com.br/templates/amaivos/noticia/noticia.asp?cod_noticia=7362&cod_canal=53.

Então, apenas para chatear um pouquinho o padreco - embora saiba que dificilmente ele vá entrar neste blog um dia - resolvi escrever, eu também, um artigo sobre o assunto. Ei-lo aqui, reproduzido:
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Sou fã de Frei Betto. Talvez alguém estranhe essa minha declaração. Afinal, como posso sorrir para alguém que se diz frei e que, ao mesmo tempo, bate-se por uma ditadura que perseguiu religiosos e colocou até a festa de Natal fora da lei por trinta anos? Explico. Só posso admirar quem tem a coragem de romper tão radicalmente com a razão, mandando às favas qualquer lógica em favor de sua paixão esquerdista juvenil. Alguém assim, que não tem vergonha do ridículo, é uma criatura rara. Só pode merecer a minha simpatia.

Na ode que escreveu sobre seu grande ídolo – Fidel Castro –, o piedoso frei deixa claro seu desdém pela racionalidade, sua falta de compromisso com os rigores do pensamento crítico. Logo no início, o dominicano nos brinda com uma pérola de triunfalismo, afirmando que hoje uma parcela da esquerda se sente vexada porque o socialismo faliu, "exceto em Cuba". Ou seja: logo de cara somos apresentados a uma afirmação peremptória, retumbante: todos os regimes comunistas desde 1917 foram um desastre total, um fracasso completo, menos num lugar: Cuba. Ali, seguindo a linha de raciocínio do reverendo, estaria a concretização dos ideais socialistas. O triunfo da igualdade e da fraternidade entre os homens, é o que diz.

Frei Betto toma algumas precauções. Por exemplo, logo após proclamar o êxito de Cuba, ele tem o cuidado de excluir de sua lista de maravilhas modernas países como a Coréia do Norte, por ser um regime totalitário ("ao contrário de Cuba, uma verdadeira democracia", é o que diz nas entrelinhas) e a China, a qual classifica de um regime de capitalismo de Estado (Cuba, com suas jineteras e o monopólio do poder político e econômico nas mãos da curriola de Fidel, não se encaixaria nessa categoria). Não tendo a coragem ou a sinceridade intelectual de chamar pato de pato e cachorro de cachorro, ele prefere usar de filigranas lingüisticas. Desse modo, não precisa encarar o fato incômodo de que a principal diferença entre Cuba e a Coréia do Norte é que esta não tem, entre nós, defensores tão entusiasmados e apaixonados. Por aí se vê.

A partir daí, o texto se torna previsível como final de novela das oito. Estabelecidas as linhas-mestras da argumentação ("Cuba é um sucesso socialista", "é uma democracia" etc), tudo que o autor precisa fazer é repisar velhas platitudes. Assim, uma parte da esquerda menos aferrada a dogmas é criticada por não denunciar o "fracasso do capitalismo" (Frei Betto não especifica onde se deu esse fracasso: na Suécia? Na Dinamarca?) e por abraçar o "neoliberalismo" (sempre ele). Ainda mais – coisa imperdoável para um auto-proclamado devoto católico e socialista –, "sem culpa", cometendo, ainda, o pecado mortal de adorná-lo com o "eufemismo" de "democracia" (aqui, mais uma vez, a associação subliminar: democracia não seria um sistema de liberdades políticas e de economia de mercado, mas de partido único e de dirigismo estatal), que somente agravaria a desigualdade mundial e negaria os direitos humanos (Cuba, nessa percepção, seria um país campeão do respeito aos... direitos humanos!), fazendo, além disso, a idolatria "do dinheiro e das armas". Desnecessário dizer que falar da fortuna pessoal amealhada por Fidel Castro em 47 anos de poder ininterrupto está fora de cogitação. Lembrar os milhões gastos por Fidel em armas oriundas do ex-bloco soviético para manter-se no poder durante décadas então, nem pensar. Por aí se vê.

Após esse festival de chavões ideológicos e de lugares-comuns, que trazem a marca das cartilhas distribuídas nas Comunidades Eclesiais de Base e em acampamentos do MST, nosso frei passa a filosofar sobre o que é ser de esquerda. Em sua opinião, ser de esquerda é "defender o direito dos pobres, ainda que aparentemente eles não tenham razão". Daí porque, "causa arrepio ver quem se diz de esquerda aliar-se à direita". Depois dessa aula de sofisticação intelectual, em que, como se vê, não há lugar para reducionismos e maniqueísmos, fica subentendido que ser de "direita", por contraposição, só pode significar ser a favor de milionários, de ricaços, e que Fidel Castro não deve ser de esquerda, pois tem entre seus amigos brasileiros o companheiro Antônio Carlos Magalhães...

Mas o próprio Frei Betto se adianta a qualquer crítica, ao dizer que Fidel "é um homem de esquerda" (assim como Stálin e Pol Pot). Trata-se de mais uma associação subliminar: se ser de esquerda é ser a favor dos pobres, e se Fidel é de esquerda, então Fidel é um campeão dos pobres, um defensor dos fracos e oprimidos, que fez a revolução para "resgatar a independência do país e libertar o povo da miséria", nas palavras originais do frei. Desse modo, fica desmontada qualquer crítica possível ao super-herói Fidel, e não se precisa encarar o fato de que, se houve algo de que ele libertou o povo cubano, foi da possibilidade de sair da penúria em que o mergulhou e de decidir livremente sobre seu destino.

Daí a fúria divina contra a "elite cubana" (identificada, por Frei Betto, com todo e qualquer cidadão cubano que ouse desmentir a idéia sacrossanta de que Cuba é o reino da igualdade e da prosperidade, ao agarrar-se a um pneu velho para fugir da ilha) e contra os EUA, que enviaram "10 mil mercenários" (sic) para invadir Cuba em 1961. O passo seguinte é repisar outro velho mantra dos defensores de Fidel: o de que "a Revolução, para se defender, não teve alternativa senão aliar-se à União Soviética". Além de inflacionar, deliberadamente ou por distração, os números dos "mercenários" anti-castristas em Playa Girón (na verdade, foram 1.500), o que se busca é isentar Fidel, o herói do povo, de qualquer responsabilidade pela comunização de Cuba. E, como hoje em dia só defende o comunismo quem for ruim da cabeça ou doente do pé, o jeito é botar a culpa no inimigo de sempre: os EUA. Nada a ver com as ambições políticas de Fidel Castro, que resolveu bandear-se para o lado da ex-URSS para ter uma potência nuclear apoiando seu projeto de poder pessoal, cuidadosamente urdido desde os dias de estudante. Por aí se vê.

Feito isso, o próximo passo é cantar as maravilhas das "conquistas sociais" proporcionadas pelo velho caudilho. Há quem cante as belezas naturais de seu país. Há quem cante os encantos femininos. Frei Betto prefere cantar a suposta excelência dos sistemas de saúde e de educação cubanos. Para começar, trombeteia, Cuba é "o único país da América Latina que logrou universalizar a justiça social". É verdade. Afinal, se considerarmos como "justiça social" o direito da imensa maioria de ser igualmente pobre e desesperançada, Cuba é, realmente, um exemplo de igualitarismo. Quanto à saúde, sob Fidel, todos passaram a ter direito a hospitais sucateados, em que falta de agulhas até esparadrapo, enquanto turistas endinheirados podem desfrutar, por uma módica quantia, de serviços exclusivos de qualidade. Quanto à educação, é preciso tirar o chapéu: todas as crianças cubanas passaram a ter o direito universal e gratuito de sofrerem lavagem cerebral em aulas-doutrinação baseadas em cartilhas ideológicas previamente aprovadas pelo regime. Se pensarem, um dia, em lerem ou escreverem algo que não convém ao Estado, serão brindadas com o direito a uma temporada de "reeducação" no Gulag tropical. Tal como na ex-URSS ou em outro éden socialista, onde também não havia analfabetismo nem se podia ler o que se quisesse.

"Seria o paraíso?", pergunta Frei Betto. Sim, para quem vive na miséria em nossos países, responde. Para estes, a "cidadania dos cubanos" é algo invejável. Deve ser mesmo. Afinal, os miseráveis daqui não têm o que comer, mas podem gritar, e não falta quem defenda seus direitos. Já os invejáveis cidadãos de Cuba – exceto, claro, a companheirada que gravita em torno do barbudo – também não têm nada, mas pelo menos contam com os discursos de Fidel para alimentar suas almas famintas. Estranha concepção de cidadania esta, que exclui qualquer direito individual do cidadão... Mais: segundo o frei, para viver na ilha é preciso "ter consciência solidária" e "pensar em si pela ótica dos direitos coletivos". E dispara: "alguém conhece um cubano que deu as costas à Revolução para, em outra parte do mundo, defender os pobres?" Claro que não, ora. Afinal, defender os pobres, no evangelho segundo Frei Betto, significa ser de esquerda, e Fidel é de esquerda, lembram? Logo, dar as costas ao regime e defender os pobres seria, nessa visão, fugir da ditadura para defendê-la no exterior. O que seria, convenhamos, um tipo muito estranho de refugiado político.

Mas tudo isso é para dizer apenas uma coisa: para Frei Betto, o Embaixador não-oficial de Fidel Castro no Brasil, todos os que fugiram de Cuba, votando com os remos, não passam de vermes egoístas que estão se lixando para o "interesse coletivo". Os que permanecem "voluntariamente" na ilha, ao contrário, seguem os passos de Che Guevara, são verdadeiros revolucionários. Segue-se daí que nosso querido frei, assim como os demais aduladores brazucas da ditadura cubana, não é nada revolucionário, pois escolheu viver no inferno brasileiro a curtir a vida indefinidamente no paraíso socialista do Caribe...

Frei Betto gosta de lembrar um outdoor em Havana com o retrato de uma criança sorrindo e a frase: "Esta noite 200 milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma delas é cubana". A partir daí, fuzila, com certeza teológica: "Algum outro país do Continente merece semelhante cartaz à porta de entrada?" A dedução é simples: Fidel, o amigo das crianças, prometeu pão em troca de silêncio, teto em troca de censura. Como no resto do Continente tal troca não existe, logo o sistema cubano é melhor, mesmo que não ofereça hoje em dia nem pão nem liberdade. Até onde eu sei, nenhuma criança norte-coreana ou sueca dorme nas ruas. A diferença é que a Suécia conseguiu isso sem paredón nem presos políticos, ao contrário da Coréia do Norte – e de Cuba. Que tal colocar um outdoor na porta da Embaixada cubana dizendo: "Esta noite 500 milhões de latino-americanos dormirão sabendo que podem escolher livremente seus governantes. Nenhum deles vive em Cuba"?

Nosso frei indaga: para que cobrar democracia na ilha, se o que predomina aqui – corrupção, nepotismo, malversação etc – não é modelo de nada? Justíssimo. Afinal, como todos sabem, o que pessoas como Raúl Rivero e outros defensores dos direitos humanos querem implantar em Cuba não é a democracia, mas a "corrupção, nepotismo, malversação" etc. Como todos sabem, a nomeação por Fidel de seu irmão Raúl para a chefia do Estado cubano não tem nada a ver com nepotismo, claro... Como todos sabem, também, nossa democracia não é nenhum modelo de eficiência, mas aqui se podem denunciar as bandalheiras dos políticos, como, por exemplo, as maracutaias da quadrilha que se instalou no Palácio do Planalto (isso é possível em Cuba?). Mas se Frei Betto crê que o Brasil não é uma democracia, deveria então explicar como seu texto pôde ter sido publicado, enquanto quem falar mal de Fidel em Cuba acabará no xilindró.

Como se não fosse o bastante, Frei Betto ainda nos brinda com o seguinte raciocínio: por que os que defendem democracia para Cuba não exigem, primeiro, que o governo dos EUA deixe de "profanar o Direito Internacional e suspenda o bloqueio e feche seu campo de concentração em Guantánamo?" Em outras palavras: Por que não deixam de chatear e vão cuidar de seus problemas? Outra troca justa. Parte do princípio de que, qualquer passo que se der em Cuba na direção da democratização do regime depende, primeiro, de um gesto compatível por parte da Casa Branca, como se Cuba fosse ainda, ironicamente, uma colônia norte-americana. Da minha parte, estou de pleno acordo com a barganha. Proponho o seguinte: os EUA fecham a base de Guantánamo e Fidel deixa de prender dissidentes políticos. De quebra, os EUA suspendem o "bloqueio" (o correto é embargo, mas isso é outra história) e o Comandante convoca eleições livres, enterra a censura e desiste do poder absoluto. Será que ele topa?

O mesmo no caso dos fuzilamentos. Segundo Frei Betto, para que Cuba aposente de vez o paredón, é preciso, primeiro, que se encerre a pena de morte nos EUA e as execuções sumárias praticadas no Brasil pela polícia. Os que serão fuzilados em Cuba, portanto, devem ser pacientes e esperar, até que os cruéis ianques e meganhas brasileiros deixem de matar... Mas aqui Frei Betto se revela desinformado, pois o que parece incomodá-lo é uma suposta "falta de protestos" contra essas mortes capitalistas, quando qualquer um sabe – a menos que more numa caverna ou na Lua – que a cada morte na cadeira elétrica nos EUA ou de menino de rua no Brasil pipocam protestos de todos os lados. A diferença é que os que protestam aqui e nos EUA não correm o risco de serem presos por isso. Ao contrário do que ocorre numa certa ilha do Caribe...

Nada disso parece preocupar Frei Betto, pois, para ele, o importante é que Cuba tem hoje o maior número de médicos e de bailarinos de balé clássico por habitante na América Latina, chegando ao requinte de exportar essas conquistas! Já falei do sistema de saúde cubano. Quanto aos bailarinos, admitamos, por um momento, que este seja um indicador ideal de justiça social. Nesse caso, teríamos de considerar países como a ex-URSS, a Romênia de Ceaucescu e a Coréia do Norte – onde a população foi colocada, literalmente, para dançar em gigantescas coreografias de louvor ao regime – como exemplos de felicidade terrestre. Não custa lembrar: a antiga Alemanha Oriental (comunista) ganhava quilos de medalhas olímpicas a mais do que a sua rival capitalista. Adivinhem qual das duas tinha o melhor padrão de vida.

O que tira o sono de Frei Betto é que rumo tomará Cuba sem Fidel. Ou, como ele coloca, se o socialismo cubano descerá à tumba com o caixão do Comandante. Difícil dizer. Uma coisa, porém, é certa: Fidel já arrastou a ilha para o buraco há muito tempo. E ainda há quem o aplauda.

Outra frase de Frei Betto merece atenção: segundo ele, 70% da população cubana é composta de jovens que não chegaram a conhecer as glórias da gesta revolucionária, e que não demonstram nenhum anseio pela volta ao capitalismo. Trocando em miúdos: como a maioria dos cubanos nasceu sob as delícias do socialismo, deve estar tremendo de medo com a possibilidade da chegada do lobo feroz neoliberal após a morte do patriarca. Devem todos estar assustadíssimos com a idéia de viver num um país sem censura e sem partido único. A conclusão é lógica: os que fogem da ilha, deixando para trás as maravilhas do regime, só podem ser masoquistas. Para Frei Betto, "Cuba não quer como futuro o presente de tantas nações latino-americanas, onde a opulência convive com o narcotráfico, a miséria, o desemprego e o sucateamento da saúde e da educação". Como se a ilha já não tivesse tudo isso (e sem liberdade).

No final, Frei Betto deseja saúde ao enfermo ditador: "Feliz idade e pronta recuperação, Comandante". Pobre Frei Betto.

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