sexta-feira, novembro 10, 2006

LULA É PIOR QUE COLLOR


Em agosto de 2005, no auge dos escândalos de corrupção que atingiram em cheio a atual administração federal, a revista Veja publicou em sua capa uma foto do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sobre um fundo preto e com seu nome, escrito em letras garrafais em verde e amarelo: "Lulla", com o "l" dobrado. A intenção era associar a imagem de Lula a do ex-Presidente Fernando Collor de Mello, hoje sinônimo de corrupção. Muita gente certamente não gostou. Para muitos petistas e não-petistas, eleitores ou não de Lula, tal associação pareceu forçada e grosseira, para não dizer até mesmo mais um indício da onipresente "conspiração das elites e da mídia" contra o supremo mandatário da Nação. Para outros tantos, fiéis patrulheiros da correção política, pareceu algo simplesmente de mau gosto.

Um ano depois, quando o fedor da onda de denúncias - deflagrada por um personagem vindo das entranhas do Governo, é bom lembrar - parece ter-se dissipado, por única e exclusiva culpa da oposição, que acreditou ter derrubado em alguns meses um mito de três décadas, pode-se dizer, sim, que Veja errou. Não por ser descabida qualquer comparação entre Lula e Collor, mas pelo fato de que a revista igualou os dois. Lula não é igual a Collor. Ouso dizer: é pior.

Vejamos. Collor representava a velha política de sempre, as velhas oligarquias e o velho coronelismo travestido de "moderno". Era, como tal, um produto artificial, criação da grande mídia e principalmente da Rede Globo, ainda assustada com as "bravatas" - segundo o próprio Lula, depois de chegar ao poder - do então sapo barbudo. A "modernidade" do caçador de maracujás, portanto, era de fachada, pura pirotecnia. Além disso, por sua arrogância natural, seu jeito empolado e até mesmo por seu tipo físico, bem diferente do comum dos brasileiros, era fácil não ir com a cara delle.

Já Lula é pior, pois baseia seu inegável carisma em algo bem mais profundo e tenebroso do que uma bela estampa ou um jingle de campanha. Assim como Collor, ele convenceu a muitos que representa o "novo" na política, o lado bom e progressista, embora repita os métodos clientelistas e mandonistas velhos de guerra, tão antigos como o Brasil. Assim como Collor, ele usou e abusou do marketing para manipular o eleitorado e encobrir o próprio vazio de idéias. Mas, ao contrário de Collor, sua demagogia e seu populismo rasteiros estão alicerçados em bases culturais e psicológicas muito mais sólidas e menos superficiais, logo mais difíceis de erradicar.

Ao contrário de Collor, que criou um partido de aluguel para lançar-se às eleições presidenciais, Lula é fundador e dirigente de honra do PT - embora, nos últimos meses, tenha procurado desvincular sua imagem da do partido, como se uma coisa não tivesse nada a ver com a outra. Logo, não é um aventureiro, como o foram Collor e Jânio Quadros, mas um político profissional, figura de proa do auto-intitulado maior partido de esquerda do Hemisfério ocidental. Suas ações ou omissões, diferentemente de Collor, vêm chanceladas por uma visão ideológica articulada durante décadas e profundamente enraizada em vastos setores da população (veja-se, por exemplo, o funcionalismo público, a comunidade universitária e segmentos da Igreja Católica). Assim, se ele decide, de repente, rasgar a bandeira que defendeu durante um quarto de século para abraçar a mesma política econômica que um dia antes esconjurava - como fez em 2002, no maior exemplo de conversão sem confissão nem arrependimento registrado na História -, isso não é visto por muitos como desonestidade, mas como "realismo político". Do mesmo modo, se em 2006 escolhe como aliada uma legenda de aluguel criada por bispos evangélicos da Igreja Universal do Reino de Deus, isso é justificável. Em Lula, os defeitos viram virtudes, os vícios se tornam louváveis. É, portanto, um fenômeno muito mais perverso e sinistro, pois muito mais duradouro e desculpável aos olhos de nossa moral torta.

Era fácil detestar Collor por sua picaretagem explícita, sua origem social, suas gravatas Hermès ou suas fanfarronices. Lula, por sua vez, é admirado pelos mesmos motivos. Collor era criticável por ser uma figura "de fora", um outsider, e assim não nos sentíamos mal criticando-o, pelo contrário: sentíamo-nos vingados. Era, afinal, um farsante, um intruso que logo foi escorraçado da vida política, desmoralizado como corrupto e ridicularizado como o filhinho de papai megalomaníaco e narcisista que sempre foi. Aqueles que votaram sinceramente nele, esperando alguma saída em meio ao caos do final do Governo Sarney, podem dizer que foram enganados, e não precisam sentir nenhuma vergonha por isso.

Lula, ao contrário, será sempre o "líder operário", o "herói da classe trabalhadora", por mais mensalões, Marcos Valérios e Delúbios que apareçam. Não importa o quanto fique comprovado seu envolvimento com a corrupção que tomou conta do Governo - e as evidências são abundantes -, sempre haverá quem saia em sua defesa, como os artistas que justificaram recentemente as falcatruas da quadrilha petista, pois "não se faz política sem sujar as mãos". No caso de Collor, tal apologia da corrupção causaria um escândalo de proporções bíblicas. Mas não no caso de Lula. Quando achincalhávamos Collor, estávamos olhando para alguém com quem não nos identificávamos, e podíamos chamá-lo de ladrão a plenos pulmões, até com alegria. Com Lula, é diferente: sendo ele "do povo", um "autêntico líder popular", um "filho do Brasil" - como diz o título de sua mais conhecida hagiografia -, verdadeiro ídolo das massas e superstar da intelectualidade engajada, é muito mais dificil criticá-lo. Ao fazê-lo, estaríamos criticando não um mero charlatão, um simples histrião oportunista, mas nós mesmos, que alimentamos o mito de que ele seria uma espécie de Messias. Por outro lado, a explicação simplista de que "o poder corrompe" não cola, pois talvez em nenhum outro caso na História, ficou tão claro que o poder, em vez de corromper, revela e desmascara. Mesmo assim, sempre haverá quem encontre alguma finalidade nobre na sua corrupção, algum fim que justifique os meios.

Isso é tão verdade que os índices de popularidade de Lula continuam altos. Sua reeleição é quase certa (*). Lula, se reeleito, deverá sua vitória nas urnas a um programa assistencialista. Com ele, inaugurou-se uma nova era: a do "bom assistencialismo" (o nosso), em oposição ao "mau assistencialismo" (o dos outros). A população está ciente da gravíssima crise moral que assolou as mais altas instâncias da República - seria preciso morar na Lua para imitar o Presidente e dizer que não sabe de nada - mas mesmo assim votará no homem que chefia o Governo mais corrupto da História do Brasil. A conclusão é um duro golpe em nossa auto-estima: em nossa lista de valores, a honestidade não ocupa os primeiros lugares. A barriga vem primeiro. E se o Governo que dá a esmola e rouba o dinheiro público é do Lula e do PT, então está tudo bem. Lula rouba, mas faz.

Nenhum outro político brasileiro desde Getúlio Vargas na época do Estado Novo foi objeto de um culto da personalidade tão forte quanto Lula. Mesmo sem jamais ter ocupado nenhum cargo executivo antes de alcançar a Presidência, qualquer palavra sua adquiria imediatamente, para uma parcela crescente da sociedade, status e força de lei. Não lhe faltou sequer o toque dramático do martírio: filho de migrantes pobres nordestinos, preso no DOPS etc. Quem tem hoje trinta anos ou mais e era criança ou adolescente nos anos 80 cresceu sob a sombra dessa figura barbuda, de língua presa e fala rouca, repleta de erros de português - um atrativo a mais, na visão de muito intelectual stalinista -, sempre vociferando contra o governante de plantão e "a zelite". Quando se eleva alguém assim tão alto, quando se sacrifica dessa maneira a capacidade crítica em favor da glorificação do "líder", é bom desconfiar. De Lula se perdoava tudo, a ponto de ainda se considerar "preconceito elitista" chamar a atenção para um dado básico de sua biografia - sua já notória preguiça intelectual, elevada à categoria de culto da ignorância. Com seu ar de superioridade ética, pairando acima do bem e do mal, misto de Gandhi e Fidel Castro, Lula se tornou um ídolo pop. Em 2003, no auge da histeria lulista, chegou-se a pensar em lançar sua candidatura ao Prêmio Nobel da Paz. Que outro político já virou letra de rock por causa de uma frase sua ("Luiz Inácio falou, Luiz Inácio avisou...")?

Tão longe chegou o culto da personalidade do ex-operário-que-virou-Presidente que já se fala em uma nova ideologia, o lulismo, como substituto do petismo, que afundou até o pescoço no lamaçal ético. O fato de Lula ter passado incólume ao vendaval de 2005 prova a força do mito. Cobriu-se a figura do ex-metalúrgico de uma aura de santidade e pureza que lhe foi dada carta branca para que brincasse com o País do jeito que bem entendesse e não precisasse dar nenhuma satisfação para ninguém, o que traz a marca de um viés nitidamente autoritário. Collor agia como um oligarca provinciano, esbanjando caipirice? Pois Lula comporta-se como um novo-rico, deslumbrado com o poder. Collor foi denunciado por ter colocado dinheiro público na sua residência particular, a Casa da Dinda? Pois Lula permitiu que seu filhinho tungasse 5 milhões do Estado para turbinar sua empresa de fundo de quintal. Fernando Henrique foi execrado por gastar muito em viagens oficiais? Pois Lula multiplicou as viagens, torrou dinheiro num avião novo e, de quebra, ainda deixa os amiguinhos de seus filhos passearem de graça num jatinho da FAB de vez em quando para alguma farra. Collor sofreu impeachment por causa do tráfico de influências que seu tesoureiro, PC Farias, fazia no Governo? Pois Lula não só permitiu todo tipo de maracutaia, como espalhou dinheiro do mensalão pelos corredores do Congresso. A diferença é que Collor foi de antemão condenado pelo tribunal da opinião pública, enquanto que Lula tem essa opinião pública - nós, enfim - na palma da mão, graças aos esforços gramscianos de décadas de doutrinação política pela turma do PT. Lula é uma força muito mais funesta, porque diz muito mais sobre nossos vícios de origem, nosso fisiologismo, nossa dissimulação, nossa malandragem. Ele é a prova de nosso fracasso.

Collor foi um raio num dia de céu claro. Lula é uma tempestade que assola o país há três décadas. Collor durou pouco mais de dois anos. Lula continuará nos assombrando, lépido e fagueiro, por muito tempo ainda. Collor foi uma ilusão. Lula é o Brasil. O pior do Brasil.


(*) O texto foi escrito antes da reeleição.

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