Corria o ano de 2003, poucos meses após a derrubada do ditador Saddam Hussein pelas forças da coalizão anglo-americana, quando foram divulgadas fotos mostrando soldados dos EUA claramente abusando de prisioneiros iraquianos. Em imagens chocantes, presos eram mostrados amontoados, nus, cobertos de fezes, encapuzados, ameaçados por cães e em poses obscenas, enquanto sorridentes carcereiros, entre os quais uma jovem franzina de 21 anos de idade, pareciam divertir-se como se estivessem num churrasco. Logo o local dos abusos, a prisão de Abu Ghraib, viraria sinônimo, na imprensa mundial, de tortura e arbitrariedade.
Em meio à onda de revolta geral que se seguiu à publicação das fotos, a opinião que mais se ouviu foi que Abu Ghraib deitava por terra, definitivamente, a justificativa de que a guerra era necessária para derrubar uma tirania e instalar, em seu lugar, a democracia. Como demonstrava o escândalo, os americanos seriam iguais a Saddam etc. e tal.
Foi então que, no meio do clamor universal de condenação aos EUA, um escritor e jornalista britânico, com longos anos de militância na esquerda e conhecido por sua defesa intransigente dos direitos humanos - escrevera um livro com duros ataques ao ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger, que considerava um criminoso de guerra - publicou um artigo em que, destoando radicalmente da onda mundial anti-EUA, ousava afirmar que, desde a invasão do Iraque e a queda do regime tirânico de Saddam, o respeito aos direitos humanos dos prisioneiros em Abu Ghraib aumentara drasticamente.
Como assim?, perguntaram-se muitos, atônitos. Simples, meus caros, prosseguia o autor do artigo: após a guerra, os americanos compraziam-se em humilhar e expor os prisioneiros em cenas degradantes; na época de Saddam, nenhum desses presos sairia vivo da prisão.
Em outras palavras: Abu Ghraib era agora um centro de torturas; antes, era um matadouro humano. Além do mais, os soldados americanos que aparecem nas fotos judiando dos presos que deveriam guardar responderam a processos e foram condenados, algo impensável na época de Saddam. Alguém poderia negar que houvera uma evolução?
Quem era esse escritor, jornalista e crítico literário que ousou desafiar assim um consenso mundial, do qual faziam parte a totalidade da esquerda, o New York Times, ONGs, a "Velha Europa", o papa etc.?
Seu nome era Christopher Hitchens.
No último dia 15, Hitchens, inglês de nascimento, morreu de câncer, aos 62 anos, nos EUA, país que (para horror de muitos de seus críticos) adotara como seu há alguns anos. Uma perda irreparável para todos aqueles que prezam a lucidez e o bom senso, pontuado por generosas doses de polêmica, que eram sua marca registrada.
Hitchens foi um dos poucos, praticamente o único public intellectual, ou intelectual público - figura absolutamente inexistente no Brasil, onde predominam os palpiteiros ou os ideólogos de quinta categoria do tipo emir sáder e frei betto - a não fazer coro com os que condenaram de antemão a intervenção anglo-americana no Iraque em 2003.
Na ocasião, ele defendeu ardentemente a mudança de regime em Bagdá como um imperativo da democracia e dos direitos humanos em face de um tirano sanguinário, que tinha em sua ficha corrida duas guerras e milhares de mortes em décadas de terror absoluto.
Por causa disso, ele, Hitchens, apanhou um bocado de seus pares, que pareceram não se importar com a contradição de falarem em nome da humanidade e, ao mesmo tempo, defenderem a permanência no poder de um facínora como Saddam. Hitchens, ao contrário deles, pode ser acusado de muitas coisas, menos de falta de coerência.
Poucos escritores de nossa época conseguiram revelar, com tanta verve e com tanta ênfase, a idiotia do antiamericanismo, sua completa miopia política e moral, que leva autoproclamados defensores da liberdade a se colocarem como escudo entre os EUA e regimes fascistas regidos por tiranos homicidas.
Raros são os intelectuais que, assim como Hitchens, desafiaram consensos fabricados em nome de princípios, não dando a mínima para a opinião do rebanho e para convencionalismos politicamente corretos. O fato de ser George W. Bush o presidente dos EUA não o deixou cego para o caráter realmente demoníaco (embora ele, Hitchens, fosse ateu) da ditadura de Saddam.
Tenho em Christopher Hitchens uma de minhas referências. Nem tanto por suas idéias, que quase nada tinham de originais (era um divulgador, não um filósofo). Mas, acima de tudo, por sua atitude de rebeldia intelectual, baseada no confronto da maioria e no pensar com a própria cabeça.
Como polemista, ele era nada menos do que brilhante. Com a mesma lógica implacável com que defendia a derrubada de Saddam (cujo regime totalitário, ao contrário de muitos que se opuseram à guerra, ele conheceu de perto nos anos 70), Hitchens ajudou a demolir mitos como Madre Teresa de Calcutá e, em livros magistrais como A vitória de Orwell e Carta a um jovem contestador, firmar posição em defesa dos ideais democráticos. Era, enfim, um intelectual sem peias ideológicas, um espírito livre lutando pela liberdade - um verdadeiro "do contra".
Hitchens era ateu, e um cínico veria em sua morte prematura uma espécie de castigo divino (o que só reforçaria, desconfio, seu ateísmo - para quê um deus que fulmina os que não se curvam perante Ele?). Ninguém tentou, assim como no caso de Voltaire, chamar um padre. Sabiam que seria inútil. (Li que, em seu leito de morte, em estado terminal de câncer, ele queria falar de literatura.)
Honestamente, porém, acho essa característica de Hitchens - seu ateísmo - a menos interessante de suas qualidades. Muitos conhecem sua obra principalmente por causa do livro Deus não é grande que, juntamente com outras obras de autores como Richard Dawkins, Daniel Dennet e Sam Harris, tornou-se um best-seller da literatura ateísta que, de uns anos para cá, virou moda.
Pessoalmente, acho esse seu livro mais fraco, embora a premissa por trás dele seja interessante - em um momento em que se vê a ascensão de movimentos fanáticos e do fundamentalismo religioso, que atingiu o auge em 11 de setembro de 2001, um autor atrevido vem e ousa afirmar, com todas as letras que não, Deus não é grande, e que é melhor e mais saudável (mental e fisicamente) viver sem essa invenção de padres, rabinos e mulás...
Como polêmica, o livro é certamente eficaz, mas é raso filosoficamente, concentrando-se nos aspectos exteriores da religião, particularmente na forma como leva pessoas em outras circunstâncias boas e sensatas a cometer toda sorte de loucuras e insanidades em nome da fé. Além do mais, Hitchens ignorava que a militância ateísta e anti-religiosa pode ser um instrumento para tolher a liberdade, como demonstram as ex-repúblicas comunistas e alguns "movimentos" atuais, que, em nome dos direitos de minorias, pretendem calar a maioria que reza (sim, estou me referindo aos talibãs do gayzismo e assemelhados). Prefiro o Hitchens ácido polemista político, inimigo declarado dos chavões e lugares-comuns esquerdistas que, por ter partilhado um dia, conhecia tão bem e demolia com tanta competência.
Tais fatos à parte, o mundo perde com a morte de Christopher Hitchens. Perde em inteligência, perspicácia, incredulidade, inconformismo e, acima de tudo, em espírito crítico e independência intelectual. E fica, infelizmente, um pouco mais parecido com o Brasil de hoje.
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