Ossos de vítimas da ditadura comunista do Khmer Vermelho no Camboja: há quem prefira isso a viver em liberdade
Um leitor, o Diogo Dias, me mandou um comentário curioso. Pegando carona em minha resposta ao anônimo sadomasoquista que afirmou que trocaria a democracia pela promessa de segurança e outras coisas sob um regime ditatorial como o de Cuba ou da Coréia do Norte, ele resolveu enveredar por um debate, digamos, filosófico. E me fez um desafio.
Por coincidência - ou, seria melhor dizer, para azar dele -, já lecionei, durante um tempo, Ciência Política. Lembro que uma das aulas mais concorridas que dei foi sobre a diferença da concepção de Estado nos três autores contratualistas - Hobbes, Locke e Rousseau. Lembro que uma aluna insistiu comigo para que eu declarasse minha preferência por um dos três autores, o que tentei o máximo possível evitar fazer. Limitei-me, pelo que me lembro, a buscar contextualizar as três teorias, da maneira mais didática possível, sendo Hobbes um autor mais ligado ao Absolutismo (o que não é inteiramente verdadeiro: ele não acreditava no direito divino dos reis, por exemplo). Locke, por sua vez, é o filósofo político do Estado liberal moderno e Rousseau, do socialismo e de suas variantes.
Diogo não parece muito preocupado com essas nuances. Em vez de se debruçar sobre elas, ele prefere fazer a apologia da visão hobbesiana, de uma forma que me parece bastante cândida, com uma sinceridade que chega a ser comovente:
Passando por esse blog, não pude deixar de notar a boa discussão que se está levantando acerca da democracia. Cara, não acredito na democracia, mas isso não me faz de esquerda. O grande problema, a meu ver, da democracia é sua liberdade exacerbada. Tudo pode nessa porra de governo, um oba oba do caralho!
O fato de alguém dizer que não acredita na democracia - e que o "grande problema" desta seria sua "liberdade exacerbada" - diz tudo. Eu nem precisaria comentar. Mesmo assim, faço algumas observações.
Em primeiro lugar, não estou "discutindo" a democracia: estou defendendo-a. Para mim, liberdade de expressão, por exemplo, não se discute nem se negocia: é uma conquista da civilização. Trata-se de defendê-la contra tentativas de jogá-la no lixo. Não "discuto" democracia, pois não discuto o direito à liberdade, que para mim é um direito natural. Seria como discutir o direito a pensar ou a respirar.
Diogo diz que não acredita na democracia. O contrário de democracia, sabemos, é ditadura. Esta pode ser de dois tipos: ou um regime autoritário ou, pior ainda, totalitário - uma forma muito mais profunda e funesta de repressão estatal (os dois exemplos conhecidos são o nazifascismo e o comunismo). Não é preciso ser de esquerda para ser antidemocrático, pois há ditaduras de direita. Mas, de qualquer modo, o leitor acabou de dizer que prefere a ditadura à democracia. Ou que acha a liberdade um luxo, sei lá. Creio que não preciso dizer o que penso a respeito.
O leitor afirmou ainda, sem qualquer base que sustente sua afirmação, a existência de uma relação causal entre uma suposta "excessiva liberdade" e a corrupção governamental. Parece ter esquecido, com isso, que é exatamente o contrário: corrupção (ou "oba-oba do caralho", como ele diz) não decorre, provém ou resulta da democracia, mas de sua total deturpação; os desmandos da quadrilha petralha no poder - decorrentes do aparelhamento políticio-ideológico do Estado - são um fator de destruição da democracia, e não sua realização. Não por acaso, os lulopetistas investem tanto contra as instituições democráticas, como a separação dos poderes e a liberdade de imprensa: é que a imprensa livre é uma barreira contra esses desmandos. É nas ditaduras que a corrupção pode florescer com mais impunidade, pois não há quem fiscalize os detentores do poder. Dizer que a roubalheira é resultante da democracia é de uma estupidez atroz; corresponde a culpar a vítima pelo crime.
Com toda a certeza o Estado Leviatã é muito melhor e isso não tem nada com ser de esquerda. Quero ver você derrubar argumentativamente a teoria hobbesiana do Estado Leviatã. Quando você escrever um artigo acadêmico que apresente bons argumentos e consiga provar estes argumentos, daí eu concordo contigo.
Alguém dizer que o Estado-Leviatã (onde o governante tem poder de vida e morte sobre os súditos, e a figura do cidadão é inexistente) seria "muito melhor", ainda por cima "com toda a certeza", é algo revelador da personalidade e da natureza de quem escreve. Nada tenho a afirmar a respeito, a não ser o fato de que sou um liberal, portanto não gostaria de viver sob o tacão de um regime todo-poderoso, com o qual eu teria uma relação de servo para com o senhor. Como escrevi antes, há quem goste de ser dominado; eu, não.
Também como já falei, defender o Leviatã estatal não é exclusividade da esquerda (aliás, falei exatamente isso no meu texto, quando lembrei que há quem suspire de saudades da ditadura militar). Quanto a derrubar argumentativamente a teoria de Hobbes, sinto desapontá-lo, leitor, mas não posso nem quero fazê-lo. Por dois motivos: 1) este não é um blog acadêmico; e 2) academicamente, é impossível "derrubar" a teoria hobbesiana, como é impossível "derrubar" a teoria de Locke ou a de Rousseau. Isso porque, assim como todas as teorias políticas, não se trata de uma teoria científica, demonstrável empiricamente: pode-se comprovar ou não, por exemplo, uma teoria sobre a gravidade ou sobre as estrelas, mas nunca, jamais, uma teoria sobre a origem e finalidade do Estado. No terreno das ciências humanas, pode-se dialogar com autores, mas não "derrubá-los". Isso só é possível nas ciências físicas ou naturais, onde há um grau razoável de certeza. Aristóteles, por exemplo, está completamente superado quanto a suas teorias científicas; mas sua filosofia continua uma referência indispensável. Compreender isso é básico.
Em outras palavras: eu posso concordar ou discordar da visão hobbesiana sobre o estado de natureza e o contrato social; posso concordar com sua visão pessimista da natureza humana e, ao mesmo tempo, apontar o que considero erros e contradições em seu pensamento político; mas daí a dizer que posso "derrubá-lo", ainda mais "argumentativamente", vai uma grande diferença. Tudo o que posso fazer, no terreno das idéias políticas, é afirmar com quais delas me identifico e explicar racionalmente por quê. Eu, por exemplo, prefiro a democracia ao Estado totalitário. Você, Diogo, prefere o totalitarismo. Prefiro a liberdade individual. Você prefere o arbítrio estatal. Ou, dito de outro modo: prefiro eleições livres e pluralismo político; você prefere censura e opressão. Qual das duas opções é mais compatível com o atual estágio da civilização? Melhor: qual dos dois regimes - o democrático ou o autocrático - é mais compatível com a felicidade humana?
Renunciar à liberdade em troca da proteção não é nenhum absurdo como pensa a mente democrata.
É sim, se se é democrata. E mesmo do ponto de vista da segurança: em geral, regimes totalitários não dão nem uma coisa nem outra. Os regimes comunistas, por exemplo, mataram 100 milhões de pessoas no século XX. Gostaria de saber que segurança houve para as vítimas.
O Estado deve dar ao cidadão segurança, saúde, educação, moradia e tudo mais que se possa esperar do Estado. Ou você vai me dizer que somos seres autônomos, que o Estado é inútil e que só deve existir para preservar a economia? Ou, seguindo suas palavras, depois dos seis anos nos libertamos do Estado e nada mais deve ser por ele garantido. Isso é pura falácia! O Estado tem total importância dentro da composição do cidadão e Hobbes sabia disso. Portanto, te desafio, de maneira argumentativa, a romper com o contrato social!
Segurança é dever do Estado, segundo a teoria liberal clássica. Quanto à saúde, educação, moradia "e tudo mais que se possa esperar" (o que seria isso?) só é dever do Estado segundo a visão rousseaniana, que deu origem ao socialismo moderno (nem Hobbes falava sobre isso, a não ser obliquamente). Gostaria de saber o que o leitor entende por "seres autônomos"; estaria ele se referindo à autonomia individual perante a sociedade e o Estado, defendida por Locke e J.S. Mill? Nesse caso, estou de acordo com eles: o fato de o Estado prover segurança, justiça e defesa nacional (suas três funções clássicas, ou "mínimas" - que curiosamente, o mastodôntico Estado brasileiro não cumpre direito, como quase tudo o mais) não retira do cidadão sua autonomia em matéria econômica, intelectual ou espiritual (se ele crê em Deus ou não, por exemplo). A menos, claro, que a pessoa seja um defensor do totalitarismo.
Há ainda um erro de lógica no comentário: se o Estado, segundo a concepção liberal-democrata (que eu defendo) seria "inútil", então não poderia, por definição, cuidar da economia: deveria cuidar de coisa nenhuma. Melhor dizendo: deveria desaparecer. Mas isso não seria mais liberalismo, e sim anarquismo. Estou em outra, como qualquer pessoa razoalmente inteligente pode perceber com facilidade ao ler este blog.
Mais dois erros: um, de interpretação e outro, de concepção. O de interpretação: não falei que, depois dos seis anos de idade, "nos libertamos do Estado e nada mais deve ser por ele garantido" (!). Primeiro, porque aos seis anos de idade ninguém tem discernimento para se libertar de nada: nem da família, nem do Esrado. Segundo, porque o Estado deve garantir - é o que diz a tradição liberal - os direitos individuais do cidadão, como a liberdade e a propriedade (que são inseparáveis). Portanto, o leitor me atribuiu uma falácia impossível. Talvez porque pense com as categorias que usamos quando temos seis anos de idade.
Outro erro, de concepção: o autor me desafia a romper com o contrato social (!). Ora, eu não poderia fazê-lo, nem se quisesse: contratos sociais, sejam de que tipo forem, não podem ser rompidos, a não ser por uma revolução. Um indivíduo, que dele faz parte, é incapaz de romper com ele. No caso do contrato social hobbessiano, o contrato, ou pacto, é firmado entre os indivíduos que aceitam renunciar à liberdade individual em nome da segurança e da esperança de uma vida melhor. Trata-se de um esquema filosófico, não de um pacto concreto. Como eu poderia "romper" com algo assim?
Romper com a Lógica, isso sim, eu poderia fazer. Mas desconfio que, ao colocar a discussão nos termos acima, o leitor já fez isso.
Um comentário:
"A liberdade em excesso, portanto, não conduz a mais nada que não seja a escravatura em excesso, quer para o indivíduo, quer para o Estado". (Platão, República, 564a)
O problema que coloquei, e você não entendeu, não é a liberdade, mas sim o excesso.
Você coloca as coisas numa teoria dualista que não posso concordar: se é contra a democracia, então é pró-ditadura. Ou seja, ou se é democrata, ou se é pró-ditadura.
Platão, na Reública, se demonstra tanto contra a democracia quanto ao seu oposto, a tirania. Segundo seu entendimento, a tirania viria da democracia e, portanto, deveria combater as duas formas de governo.
De qualquer maneira, há um problema metodológico em seus exemplos. Aonde é que podemos afirmar que Khmer Vermelho, Fidel Castro ou Ditadura Stalinista são exemplo de uma aplicação prática da teoria hobbesiana? Sabemos que todos esses exemplos fogem (e muito) do que seria a aplicação da teoria hobbesiana da maneira como ele a coloca. E você, como leitor e professor de Hobbes, sabe muito bem disso!
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