O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, está dando uma aula de como pensam e agem os políticos no Brasil e, mais do que isso, os brasileiros. Há alguns dias, ele anunciou oficialmente sua saída do DEM, partido em que, desde os tempos do PFL, fez sua carreira política, para fundar uma nova agremiação, batizada de PSD (Partido Social-Democrático). Motivo alegado: o DEM, segundo afirmou Kassab em entrevista à VEJA, perdeu o rumo, tornando-se um partido de oposição tão irresponsável quanto foi um dia o PT. Ele, Kassab, não acredita nisso e quer trabalhar "pelo Brasil". Tradução: ele quer ter liberdade para aderir ao governo de Dilma Rousseff sem corar. Está ansioso para se juntar ao cordão de puxa-sacos, que nunca foi tão numeroso, e que não pára de crescer.
Que Kassab queira pular do barco oposicionista e ingressar no partido dos vira-casacas, vá lá, é um direito dele, embora seus eleitores devam estar se sentindo traídos. Mas não precisava ofender tanto a verdade e a inteligência. O DEM, partido de oposição, ainda por cima comparável ao PT dos velhos tempos? Só pode ser brincadeira. Se há algo que falta no Brasil de hoje, mais até do que vergonha na cara de gente como Kassab, é oposição. Refiro-me a oposição de verdade, como existe em qualquer país civilizado, e não a jogo de cena. O DEM virou um mero coadjuvante do PSDB, partido irmão do PT, gerado na mesma incubadora uspiana esquerdista em que este foi engendrado. O DEM, oposição ao lulo-petismo? Quem dera que fosse. Lembram da última eleição presidenciai?
Até as pedras da Praça da Sé sabem o real motivo de Kassab estar abandonando o DEM: ele quer trocar de partido, como já é rotina na política brasileira. Como não pode fazê-lo sem o risco de ter o mandato cassado, bolou uma estratégia: criar um partido-fantasma, o tal PSD, para depois fundir-se a um partido da base governista, o PSB (Partido Socialista Brasileiro). Tudo para ficar mais perto do pudê. De liberal a socialista, num passe de mágica. Coerência ideológica total, como se vê.
Kassab nâo é o primeiro, nem será o último, a se bandear para o lado do governo. Um dos primeiros que percebeu a mudança de ventos e montou a mula encilhada foi outro prefeito de capital, o carioca Eduardo Paes. Em 2005, então jovem deputado federal pelo PSDB, ele despontou como uma das estrelas da CPI do mensalão. Era, então, uma das "promessas éticas" do Congresso contra a corrupção etc. Menos de três anos depois, porém, lá estava ele, lépido e fagueiro, no PMDB, partido do governo (de qualquer governo), fazendo juras de amor a Lula. Chegou mesmo, nessa virada, a escrever uma carta à dona Marisa Letícia pedindo desculpas por ter participado da CPI do mensalão... O motivo? Sua eleição para a prefeitura do Rio de Janeiro (outro mestre insuperável na arte do puxa-saquismo é o governador do Rio, Sérgio Cabral).
A malandragem de figuras como Paes e Kassab - até no nome escolhido para o partido-tampão: quando um político não quer se definir ideologicamente, diz que é "social-democrático" ou coisa que o valha - é reveladora, ao demonstrar de forma quase pornográfica a vocação chapa-branca que caracteriza a política brasileira. E não só a política. Na verdade, trata-se de uma característica cultural tipicamente brasileira, assim como o samba e o carnaval. Bajular, adular quem está por cima, é um aspecto atávico da sociedade e da psicologia nacionais, que daria assunto, certamente, para vários tratados acadêmicos. Entre nós, historicamente, a atração pelo poder é uma força irresistivel, quase erótica. É algo que vem de longe, está nos nossos genes, por assim dizer. A atração pelo poder. A ânsia adesista. A vontade de ser áulico. O pendor para a vida de cortesão. O desejo de ser chapa-branca. A vocação do puxa-saquismo.
É algo facilmente encontrado em todos os setores, de todas as classes e categorias sociais. Pode-se com facilidade detectar o fenômeno, com níveis semelhantes de fervor e intensidade, entre intelectuais, jornalistas, artistas, bandidos e donas-de-casa. Sobretudo entre os que se convencionou chamar, por estas bandas, de intelectuais. Entre esses, o comichão servil se manifesta até mais do que entre os políticos.
Dou um exemplo: Arnaldo Jabor. A partir de 2005, ano do mensalão, e durante todo o segundo mandato do mandarinato lulista, não passou uma semana sem que o cineasta de filmes que quase ninguém viu e comentarista da Globo não despejasse suas performances indignadas contra os petistas. Nisso, ele pareceu querer expurgar a responsabilidade da classe artística na criação do mito Lula: tendo ajudado a erguer o monumento à falsidade que é o lulo-petismo, intelectuais como Jabor subitamente descobriram que o PT é um partido corrupto, e que Lula é um político brasileiro, não um santo ou um messias (alguns ainda acreditam nisso, mas para esses não há remédio que dê jeito). Como acontece quando um marido se descobre traído, a perplexidade dá lugar à desilusão, a desilusão à raiva, e esta à indignação. Que pode ser para sempre ou diluir-se com o tempo, mostrando-se, assim, uma paixão momentânea e superficial.
(Claro, para não fugir à regra dos intelectuais esquerdistas, não faltaram a Jabor, nesses anos todos, oportunidades de compensar sua desilusão com o lulo-petismo, reforçando o coro dos inimigos de George W. Bush e da guerra no Iraque, por exemplo, ou cantando loas a Barack Obama. Outros fazem o mesmo por outros meios: criticando, por exemplo, o "politicamente correto", mas apondo suas assinaturas em manifestos e abaixo-assinados em favor de Hugo Chávez... Tudo para ficar de bem com a beautiful people, a gente linda e maravilhosa que dita as regras de pensamento e comportamento no Brasil. Como diz o provérbio: quem muito fuma cachimbo, fica com a boca torta.)
Hoje, vê-se que toda aquela raiva e indignação de Jabor em relação a Lula e aos mensaleiros não passou de fogo de palha, de uma oposição de ocasião, como foi também a do PSDB e a do DEM (vide Eduardo Paes e Kassab). Mal acabou o governo Lula e Jabor já retornou ao estado normal de um intelectual brasileiro, substituindo a indignação pelo adesismo. Seguindo sempre a corrente, ele apressou-se em ver as diferenças entre Dilma Rousseff e seu criador e inventor, Lula da Silva, inventando uma Dilma que não existe.
Para ele, Jabor, assim como para muita gente, Dilma é a anti-Lula. Onde Lula falava e aparecia demais, ela, Dilma, acerta ao falar e aparecer de menos, governando discretamente por trás dos bastidores, quase como uma rainha da Inglaterra. Onde Lula apoiava ditadores, ela, Dilma, condena os apedrejamentos de mulheres no Irã. Onde Lula se mostrava omisso e dizia não saber de nada, ela cobra resultados de seus subordinados. E assim por diante.
É mais um mito, claro, assim como foi o mito lulista. Dilma não é o anti-Lula coisa nenhuma. É, sim, a continuação do Apedeuta, que a pariu e que a moldou. As mudanças (se é que se pode chamar assim) cosméticas na política salarial ou na política externa, por exemplo, nada mais são do que isso: mudanças cosméticas, necessárias para corrigir os abusos do lulanato (a verdadeira herança maldita), como o aumento dramático do déficit público e os danos à imagem do governo pelo apoio ao que há de pior na humanidade. A essência do lulo-petismo, esta continua intocada. O projeto de poder continuísta do PT e de seus sócios permanece exatamente o mesmo. O objetivo de acabar com a democracia - mediante o amordaçamento da imprensa, por exemplo - está mais forte do que nunca. A diferença é que, com Dilma, o projeto de poder petista deixou de ser pessoal para virar uma pelegocracia.
Tamanha é a cegueira para esse fato mais que óbvio que gente como Arnaldo Jabor, mesmo sem ser petista, acaba exagerando na bajulação. Jabor já chegou a dizer que acha Barack Obama "sexy". Agora, acaba de declarar que acha Dilma Rousseff bonita. Bonita só, não. Bonita e inteligente. Que ele a ache bonita, tudo bem: afinal, tem gosto para tudo. Mas, inteligente... Bem, inteligente supõe certo nível de coordenação mental, ou, pelo menos, de articulação verbal. E quem já teve o duvidoso privilégio de ouvir Dilma Rousseff discorrer sobre qualquer assunto, sabe que lhe faltam esses dois requisitos num nível abaixo do aceitável para um adolescente, quanto mais para alguém que ocupa a Presidência da República.
Se jogadas como a de Gilberto Kassab e comentários como os de Arnaldo Jabor provam alguma coisa, é que o desejo de agradar, a vocação para aplaudir, é a verdadeira ideologia nacional do Brasil. A tal ponto que provoca mesmo frêmitos de excitação erótica em quem a pratica. Parafraseando o ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, o poder - melhor dizendo, a bajulação dos poderosos - é mesmo um afrodisíaco.
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