Há algumas semanas, a Líbia mergulhou na guerra civil. O que virá daí, ninguém sabe. Até alguns dias atrás, parecia que as forças insurgentes, que tomaram a metade leste do país, iam ganhar a parada. O tal "comitê de transição" ganhou apoios importantes no campo diplomático, e foi mesmo reconhecido pelo governo da França. Agora, porém, já se admite que o ditador e destaque de escola de samba Muamar Kadafi - o "irmão e amigo" de Luiz Inácio, o Apedeuta - poderá manter-se no poder, esmagando a ferro e fogo a oposição. De qualquer maneira, é possível que, se os rebeldes marcharem sobre a capital e expulsarem Kadafi, o que surja daí seja algo até pior - o exemplo do Egito, onde os fanáticos da Irmandade Muçulmana ganham terreno a cada dia após a queda do regime de Hosni Mubarak, está aí para servir de aviso aos incautos, que acham que uma revolta popular contra uma ditadura é sinônimo de democracia (infelizmente não é, principalmente no Oriente Médio, principalmente nos países árabes).
Não tenho o menor apreço por Kadafi, um tirano assassino e terrorista, como já deixei claro em vários textos meus. Tenho-no na mesma categoria de outros tiranos assassinos e terroristas, como os mulás ensandecidos do Talibã e o finado Saddam Hussein do Iraque (ou seja: na mesma classe dos insetos pestilentos, como as baratas e os piolhos). Ficaria muito feliz de vê-lo no banco dos réus em Haia ou pendurado numa corda em Trípoli. É por esse motivo que não consigo entender o que tenho lido e ouvido na imprensa nos últimos dias sobre a guerra civil na Libia.
Ligo a TV e leio os jornais e vejo uma penca de jornalistas e comentaristas conclamando, indignadíssimos, as potências ocidentais a enviar os fuzileiros navais à Líbia e deporem o tirano Kadafi, em nome da liberdade, dos direitos humanos etc. Por coincidência ou não, trata-se das mesmas pessoas que passaram os últimos sete anos descendo o malho em Jorjibúxi por causa da invasão do Iraque, tais como, para ficar apenas no Brasil, Arnaldo Jabor. Tais jornalistas e comentaristas pintam a invasão e a ocupação anglo-americana como nada menos do que um desastre e uma catástrofe total, embora o Iraque tenha hoje algo parecido com uma democracia, quando jamais conhecera nada semelhante em 5 mil anos de história (também ninguém lembrou que Abu Ghraib era, nos tempos de Saddam, um matadouro humano). Muito bem. Também acho que intervir na Líbia e expulsar Kadafi seria prestar um serviço à humanidade. Mas uma pergunta incômoda me vem à mente: por que invadir o Iraque e derrubar Saddam Hussein foi um crime e fazer o mesmo na Líbia com Kadafi é um gesto humanitário? Alguém poderia me explicar ou só eu percebi a contradição?
Fui a favor da intervenção no Iraque, e não escondo isso de ninguém. Achei então, e continuo achando - e até agora ninguém conseguiu me mostrar um argumento convincente provando o contrário - que havia razões - éticas, morais, filosóficas, geopolíticas - mais que suficientes para que a ONU (que infelizmente declinou da missão para que foi criada), ou os EUA, ou o Reino Unido, enfim alguém, ocupasse o país e mandasse o regime e a pessoa de Saddam Hussein para os quintos dos infernos. Digo mais: havia muito mais motivos para derrubar Saddam do que há, hoje, para intervir na Líbia e destronar Kadafi.
Querem fatos e argumentos? OK, vamos lá. Os dois principais motivos pelos quais se criticou e continua a se criticar o envio de tropas à Bagdá - as tais armas de destruição em massa e o terrorismo - estavam presentes no Iraque, mas não na Líbia. Saddam não tinha as tais armas, mas se comportava como se as tivesse. Bravateou acerca das mesmas até não poder mais, brincando de gato-e-rato (melhor: de gato-e-sapato) com os inspetores da ONU durante doze anos e dezessete resoluções do Conselho de Segurança. Se tivesse mentido menos, e bravateado menos, é possível que ainda estivesse no poder. Mais que isso: ele havia usado as tais armas proibidas, como gases tóxicos, anos antes, contra o próprio povo iraquiano (curdos, principalmente). Era, portanto, comprovadamente um genocida sem qualquer escrúpulo em matar civis com armas como gás mostarda, e que se negava a permitir inspeções internacionais. E continuava, sim, a apoiar o terrorismo - por exemplo, abrigando chefes terroristas como Abu Nidal e dando dinheiro vivo a parentes de homens-bomba palestinos mortos em atentados contra cidadãos israelenses.
O mesmo não pode ser dito de Kadafi, que, apesar de ser um déspota asqueroso, fez um acordo com o mundo civilizado em 2003 - não por acaso, no mesmo ano da invasão do Iraque -, pelo qual renunciou formalmente a ter armas nucleares, e também, ao que se sabe, ao apoio ao terrorismo, que lhe tornara o maior inimigo dos EUA nos anos 70 e 80 e lhe custara um bombardeio norte-americano que quase o matou em 1986. Chegou mesmo, por esse motivo, a ser cortejado e adulado por muitos governos ocidentais, inclusive pelos EUA, que passaram a vê-lo, aliás burramente, como um "aliado" (Barack Obama só faltou pedir-lhe a bênção na reunião do G-8 em L'Aquila, na Itália - sem falar em genuflexões abjetas, como a do Apedeuta, que o chamou de "amigo e irmão"...). Kadafi é, portanto, um tirano sanguinário e certamente louco, mas nem de longe apresenta o mesmo grau de periculosidade do açougueiro de Bagdá (que Satanás o tenha).
Visto isso, o que sobra? Sobra o fato incontrastável de que Kadafi, assim como Saddam, é um tirano nojento, que oprime e mata seu próprio povo. Para mim, motivo suficiente para clamar por uma intervenção da comunidade internacional, ou de quem mais o possa, para livrar o mundo dessa escória. Mas e os que se encheram de indignação pela decisão de Bush e dos neocons de invadir o Iraque e livrar o mundo de Saddam, que justificativa têm para defender uma intervenção externa na Líbia hoje? O fato de Kadafi ser um tirano e um assassino? Mas Saddam também não era, e até pior? E por que ficaram em silêncio esses anos todos quanto ao genocídio em Darfur, por exemplo? Será que é porque o presidente dos EUA agora é Obama, e não Bush? Então uma invasão armada democrata é melhor do que uma invasão armada republicana? É mesmo? Por quê?
.Das duas uma: ou os que condenaram a invasão do Iraque retiram tudo que disseram e pedem perdão a George W. Bush, ou deixam de lado essa conversa oportunista de defender uma intervenção na Líbia. No primeiro caso, admitem que derrubar Saddam foi a decisão certa, e que ficaram contra por pura babaquice antiamericana. No segundo caso, tornam-se cúmplices do ditador, mas pelo menos mantêm um mínimo de honestidade. No primeiro caso, fazem as pazes com a coerência e com a democracia. No segundo, apenas com a coerência. De qualquer modo, essas são as únicas atitudes honestas que podem tomar. Tudo o mais é duplo padrão moral e demagogia.
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Parafraseando o que eu já disse sobre outros ditadores: eu posso defender uma intervenção estrangeira para retirar Kadafi do poder na Líbia, assim como defendi a intervenção estrangeira que retirou Saddam Hussein do poder no Iraque (e não me arrependo, muito pelo contrário). Posso dizer, sem medo de ser ou parecer contraditório, que odeio todos os ditadores, não somente uns, e que o caminho para lidar com eles é a força.
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E Arnaldo Jabor, será que pode?
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