segunda-feira, setembro 10, 2007

O INTELECTUAL E O TERRORISTA


Já falei, aqui neste blog, de Noam Chomsky. Qualquer pessoa razoavelmente informada já deve ter pelo menos ouvido falar no quase octogenário intelectual norte-americano, considerado "a maior referência intelectual do mundo moderno, ao lado da Bíblia e de Shakespeare" (The Guardian) e "o maior intelectual vivo" (The New York Times). Creio que o personagem dispensa apresentações.

Uma das pessoas que já ouviu falar da obra e das opiniões de Chomsky é Osama Bin Laden. Mesmo distante do mundo civilizado, aparentemente sem internet nem outras comodidades da vida moderna, o megaterrorista islâmico, em sua última aparição em vídeo, fez rasgados elogios a Noam Chomsky, a quem qualificou de "um dos mais lúcidos analistas da política externa de George W. Bush e dos EUA". Ao mesmo tempo em que repetia as condenações de praxe ao Ocidente e a seus governantes apóstatas, convidando os norte-americanos a - vejam só - se converterem ao Islã, depois de ter ceifado a vida de alguns milhares de infiéis em dezenas de atentados mundo afora, o líder da Al-Qaeda, assim como o venezuelano Hugo Chávez, humildemente se rendeu aos argumentos antiimperialistas e anticapitalistas do professor do MIT, reconhecendo nele um grande pensador, como milhares de adolescentes e militantes esquerdistas que acreditam, assim como Chomsky e Bin Laden, que os EUA são o grande inimigo da humanidade (o "Grande Satã", diria o aiatolá Khomeini, outro que certamente aplaudiria as palavras do ilustre professor).

Bin Laden, como todos sabem, é um fanático islâmico, para quem todos que não compartilham da religião do Profeta devem converter-se ou ser sumariamente eliminados. Chomsky é ateu e anarquista (um "socialista libertário", em suas próprias palavras), um ardente defensor das causas terceiromunistas e crítico implacável do imperialismo norte-americano e do capitalismo. Aparentemente, portanto, nada mais diferente, nada mais antagônico. Aparentemente. Porque, como tentarei mostrar a seguir, há mais coisas em comum entre os dois do que supõe nossa vã filosofia.

Coincidiu que, na mesma semana em que Bin Laden revelou ao mundo sua admiração por Noam Chomsky, terminei de ler o livro do biólogo evolucionista inglês Richard Dawkins, The God Delusion (Deus, um delírio, na tradução brasileira). É um livro polêmico e corajoso, um dos melhores que já li (a propósito, recomendo também o Traité d'Athéologie, de Michel Onfray, e God is not Great, de Christopher Hitchens, que tratam do mesmo tema, mas de um ponto de vista mais filosófico e político). Ao ver o vídeo em que Bin Laden elogia Chomsky, lembrei imediatamente de um subcapítulo do livro de Dawkins, intitulado "como os 'moderados' alimentam o fundamentalismo". Nele, o autor elimina, de forma demolidora, qualquer ilusão a respeito de uma religiosidade "moderada", demonstrando, de maneira brilhantemente racional, que mesmo a fé mais "moderada", ao se basear em pressupostos essencialmente irracionais e anticientíficos (dos quais o maior de todos é a crença na própria existência de Deus), acaba sempre, invariavelmente, abrindo o caminho ao extremismo religioso. Em outras palavras, afirma Dawkins, não haveria homens-bomba se não existisse islamismo, nem teria havido Inquisição se não houvesse cristianismo - e não haveria nem um nem outro se não existisse a religião, a crença em Deus, em primeiro lugar.

Do mesmo modo, vendo-se os elogios de Bin Laden a Noam Chomsky, é tentador afirmar que muito, mas muito dificilmente mesmo haveria terrorismo islâmico - ou tiranias totalitárias, como a de Stálin ou de Fidel Castro - sem um Noam Chomsky ou um Tariq Ali que lhes prepare o caminho e os justifique. Assim como os religiosos "moderados" servem aos propósitos dos fundamentalistas, e a esquerda "vegetariana", moderada, atua como retaguarda da esquerda "carnívora", radical, o antiamericanismo de Chomsky e seus discípulos cai como uma luva para os desígnios dos terroristas e extremistas de todos os matizes. É por isso que Bin Laden se sente tão grato a pessoas como Noam Chomsky. Ele sabe que, a cada atentado terrorista que promover, a cada homem-bomba que vá pelos ares no Iraque ou na Cisjordânia em nome de Alá, poderá contar com a pena e a voz do renomado lingüista norte-americano, que tratará, sempre, de buscar uma justificativa para suas ações homicidas em alguma decisão anterior do Departamento de Estado e do Pentágono.

O livro de Dawkins é certamente muito bom, mas há momentos em que o autor dá umas derrapadas. Todo o livro é pontuado por críticas bastante ácidas a Bush e à direita religiosa norte-americana, inimiga ferrenha do evolucionismo darwiniano e favorável ao ensino do criacionismo nas escolas (é uma pena que Richard Dawkins não conheça a enorme contribuição brasileira ao rol de absurdos teológicos, como o espiritismo e a teologia da libertação...). Do ponto de vista científico, isso é mais que correto, mas o leva a ignorar algumas questões políticas importantes. Por exemplo: é curioso como um carola fervoroso como Bush, que se opõe intransigentemente ao direito ao aborto e às pesquisas científicas com células-tronco por motivos religiosos, tenha sido o responsável pela derrubada de uma das teocracias mais retrógradas e odiosas de que já se teve notícia (os nomes Talibã e Afeganistão lembram alguma coisa para você?). É interessante também que seja o Estado de Israel, geralmente execrado pela intelectualidade esquerdista como imperialista e até mesmo fundamentalista (!), o único regime democrático e pluralista do Oriente Médio. Enquanto isso, os esclarecidíssimos europeus, muito mais sofisticados do que os brucutus estadunidenses, fazem todo tipo de contorcionismo verbal para justificar a intolerância religiosa dos mulás palestinos e aiatolás iranianos, inclusive com o argumento do "relativismo cultural" (por exemplo, pedindo desculpas aos muçulmanos enraivecidos por alguma frase mal-interpretada do Papa ou por alguma caricatura blasfema de Maomé, a qual estes respondem com fatwas e ateando fogo em embaixadas ocidentais, demonstrando, assim, que o Islã é mesmo uma religião de paz e de tolerância...). Creio que, para ser coerente com o argumento central de seu livro - com o qual, aliás, estou de total acordo -, Dawkins deveria atentar um pouco mais para esses detalhes.

Visto isso, não fica muito difícil entender os elogios de Bin Laden a Noam Chomsky. A aliança profana entre o terrorista islâmico e o intelectual anarquista (além do mais, de origem judaica) não deve surpreender ninguém. Afinal, como explica Richard Dawkins, os "moderados" (e não se pode sequer chamar Chomsky de "moderado", sob qualquer ponto de vista) estão a serviço do fundamentalismo. Faço apenas um adendo: não somente em religião, mas em política também.

Pelos mesmos motivos por que não sou religioso e não creio em Deus, nem em Diabo, céu, inferno, anjos, santos, demônios, espíritos, saci-pererê e mula-sem-cabeça, sempre fui extremamente cético em relação às ideologias políticas. Sobretudo se essas ideologias se apresentam com os rótulos de "esquerda", "progressista", "socialista" (ou comunista), ou, ainda, "dos trabalhadores". A meu ver, crer em Deus ou na grande conspiração imperialista-sionista mundial (da qual Chomsky e Bin Laden são crentes devotos) é a mesma coisa, ambas as crenças possuem a mesma carga de irracionalidade e superstição. E, do mesmo modo que um fiel religioso - cristão, muçulmano, judeu, espírita, budista ou mesmo agnóstico - não é capaz de conceber uma moralidade independente e mesmo contrária à religião, um verdadeiro esquerdista, moderado ou radical - como Noam Chomsky -, só poderá entender o bem e o mal em termos de "nós", os iluminados defensores do povo e dos oprimidos, versus "eles", os burgueses e reacionários. Troque "nós" por "povo eleito" e "eles" por "infiéis" e você perceberá facilmente a identidade essencial entre ideologia esquerdista e crença religiosa.

Noam Chomsky é um intelectual respeitado, cuja opinião é levada em conta por muitos governos. Bin Laden é um terrorista, um fanático assassino, um inimigo da modernidade e da humanidade. Que um seja universalmente tido como exemplo de extremismo fundamentalista e o outro, louvado por muitos que se consideram racionais e progressistas, é um desses mistérios que desafiam a compreensão humana.

Um comentário:

Anônimo disse...

Bem, eu creio que a opinião dos moderados é usada pelos fanáticos para justificar a sua ação insana. Logo, Noam Chomsky não é aliado da Al Qaeda. O Osama usa dos argumentos inteligentes e coerentes do Noamn (e de outros intelectuais moderados) e os extrapola, a fim de dar siginificado à sua loucura.

É por isso que os moderados precisam sempre estar a vigiar os que tendem ao fanatismo, sendo eles candidatos à ditadores que darão um significado negativo a tudo que poderia ser feito de bom, com o uso da moderação.

Mas isso já não seria um fanatismo pela moderação? Agora complicou...