Ao contrário do que insinua a pergunta que Dawkins se propõe a responder, Hitler certamente não era ateu, e seus crimes eram motivados, na realidade, por uma crença (no caso, a idéia de "pureza de raça") que ele considerava inspirada divinamente e que, por sua irracionalidade, só pode ser descrita como religiosa. Isso está fora de dúvida. Mas e Stálin? Sim, o que dizer do tirano comunista, responsável por um dos regimes mais assassinos de todos os tempos, e cujo número de vítimas, ao lado de outros criminosos em série como Mao Tsé-Tung, Pol Pot e Fidel Castro, na verdade seus êmulos, ultrapassa tudo que as ditaduras de direita, inclusive a nazista na Alemanha, fizeram no século XX? Dawkins afirma que, diferentemente de Hitler, Stálin era, sim, ateu, mas não há nenhuma prova de qualquer relação entre seu ateísmo e as atrocidades por ele praticadas. Enfim, ele não acreditava em Deus, mas isso não tem nada a ver com o que ele fez ou deixou de fazer.
Confesso que o argumento de Dawkins não me satisfez nem um pouco, e que essa é a parte mais fraca do livro (no mais, excelente). Ele está certo ao apontar o falso ateísmo de Hitler. Mas, talvez por sua formação acadêmica - a biologia evolucionista, e não a ciência política ou a filosofia -, parece desconhecer os aspectos essenciais da ideologia totalitária comunista, de que Stálin foi o maior praticante. Em primeiro lugar, é preciso responder a pergunta: afinal, os comunistas, como Stálin e Pol Pot, são ou não são ateus? A resposta é sim e não.
Sim, pois os comunistas, em todos seus matizes, partem de uma filosofia política - o marxismo-leninismo, o materialismo histórico e dialético - que exclui a idéia de Deus, ao afirmar deterministicamente o primado das relações materiais - no caso, econômicas - sobre todas as demais (a superestrutura). Em outras palavras, a crença religiosa, para os comunistas, é mero reflexo de uma situação de miséria material, da infra-estrutura econômica da sociedade. Elimine-se essa base material da carência religiosa - derrubando o capitalismo e impondo, em seu lugar, um regime comunista - e se eliminará, por conseguinte, a própria razão de ser da religião, o "ópio do povo", segundo célebre definição atribuída a Marx. Daí porque a religião e o marxismo, ao contrário do que dizem os padres bobalhões da teologia da libertação, são incompatíveis.
Mas não, Stálin e os comunistas não podem ser definidos como ateus, pelo menos não no sentido em que o eram figuras como Bertrand Russell e Albert Einstein, sem falar no próprio Richard Dawkins. O motivo é o seguinte: embora Lênin e Stálin se declarassem abertamente ateus, o regime que implantaram na Rússia e que foi depois exportado para outros países no Leste Europeu, por suas próprias características - partido único no poder, eliminação sistemática de qualquer forma de oposição, imposição de um pensamento único, mobilização permanente e compulsória da população, mediante a substituição do pensamento crítico pela repetição mecânica de slogans - só pode ser implantado e conservar-se apelando para o que há de mais irracional, de mais supersticioso, na natureza humana. O fanatismo político, exacerbado pela propaganda, foi um traço fundamental desses regimes. Trocando em miúdos: não queriam eliminar Deus, mas substituí-lo. No caso, pelo Partido e pelo Estado todo-poderosos, identificados como a única e mesma coisa.
Essa associação entre o Partido e o Estado - não é que o Partido seja parte do Estado, ele é o próprio Estado, e vice-versa -, a imposição do controle estatal sobre todos - absolutamente todos - os aspectos da vida social e particular dos indivíduos, é o que torna os regimes comunistas muito semelhantes, em sua estrutura básica, a ditaduras teocráticas como a do Irã e do Afeganistão sob os Talibãs. Não por acaso, todos os regimes comunistas instituíram o culto da personalidade do Líder, mantido graças a um ultra-eficiente sistema de repressão, espionagem e propaganda. Em todos eles - novamente, todos, sem exceção -, imperou um sistema político baseado numa tentativa radical de engenharia social, que não se limitava a alterar substancialmente as estruturas políticas ou econômicas, mas a própria mente das pessoas e, no limite, a própria natureza humana, criando um "homem novo". Para atingir esse objetivo, eivado de aspectos herdados da cosmovisão religiosa judaico-cristã - o paraíso terrestre, o dia do julgamento, a redenção final pelo expurgo dos "impuros" etc. - os regimes comunistas não hesitaram em criar rígidas estruturas calcadas no modelo religioso, instituindo uma verdadeira religião estatal, completa, com um sumo-sacerdote (Stálin, Mao etc.), clero (os intelectuais e ideólogos do Partido), iconografia (estátuas, pinturas, imagens - como a de Trotsky representado como S. Jorge matando o dragão capitalista, mostrada acima), hagiografia (os mártires e heróis da "causa") e uma liturgia própria (os ensinamentos e rituais do Partido, com uniforme, hino, desfiles etc.). E, assim como as religiões, trataram de criar sua própria lenda, distorcendo e falsificando a História para melhor ajustá-la a seus objetivos revolucionários. Ao mesmo tempo, buscaram eliminar a religião por decreto, mais por medo da concorrência e para suprimir a liberdade de pensamento do que por compromisso com a verdade (em Cuba, Fidel Castro chegou a proibir a festa de Natal por trinta anos, e o Estado era até recentemente oficialmente ateu, como em todas as demais "democracias populares" do Leste Europeu. Além disso, em países como China e Vietnã ainda hoje pode-se ser preso por rezar em público). Que ninguém se iluda: o comunismo não é um humanismo. Muito pelo contrário: é a supressão do homem, o esmagamento do indivíduo e da liberdade em favor do culto ao Deus-Estado, ao Deus-Partido, ao Deus-Stálin.
Mas atenção! Isso não significa que o comunismo, embora compartilhe com a religião alguns traços comuns, seja, ele mesmo, uma religião. A religião baseia-se na idéia de um outro mundo, um mundo além-túmulo, sobrenatural, que os comunistas rejeitam. À diferença de cristãos, muçulmanos, judeus ou budistas, os comunistas não se restringem à idéia de um paraíso imaginário após a morte, mas projetam esse paraíso num futuro distante, na sociedade comunista sem classes e sem Estado, onde o indíviduo, como afirmava Marx, ocupará seu tempo pescando e escrevendo peças de teatro. A religião idealiza um paraíso num plano metafísico e imaterial; o comunismo, por sua vez, promete realizar esse paraíso aqui na Terra, mesmo se esse objetivo conduza, literalmente, ao inferno (como de fato ocorreu em todos os países que tiveram a infelicidade de se transformarem em ditaduras do proletariado). Essa é a diferença fundamental entre a crença religiosa e a ideologia comunista, o que de modo algum a torna mais racional. Basta olhar seus pressupostos principais. Qual a base racional e científica, por exemplo, da crença marxista na inevitabilidade do socialismo e no futuro comunista da humanidade? Como explicar afirmações como essa senão pela fé, por uma crença cega, pelo triunfo da vontade sobre a realidade (e ainda deram a essa farsa monumental o nome pomposo de "socialismo científico"...)?
Richard Dawkins é ateu, e não há qualquer dúvida quanto a isso. Seu ateísmo está alicerçado numa sólida base racional e científica, balizada pela busca incessante da verdade - a raison d'être da ciência. Já os seguidores de Marx e Lênin não são, certamente, religiosos no sentido estrito da palavra, mas é óbvio que estão muito longe de se nortearem pelo mesmo compromisso com a razão e o humanismo. Assim como os astecas e outros povos da Antigüidade, eles também cultuam seus deuses. E, a exemplo daqueles, são deuses sangrentos, que exigem terríveis sacrifícios humanos.
3 comentários:
Muito bom o artigo. Aí vai o link do livro do Dawkins! http://www.4shared.com/file/26403389/4a68d13f/Deus_um_Delirio_-_Richard_Dawkins_-_Versao_Completa.html?s=1
Deixa abrir, espera uns 30 s e clica em Download file.
Grande abraço!
A questão é retórica: imaginemos um mundo onde todos seríamos cristãos, todos, sem exceção, com variação em grau apenas. Como seria esse mundo? Eu acho que a acusação (mesmo as mais sofisticadas) contra o ateísmo embutem gratuitamente a idéia de que no Cristianismo (fico só nesse por conta da retórica) estaremos livres disso ou daquilo. Ou, usando uma expressão que aparece repetidamente em Dawkins e outros: a religião surfa na gratuidade de que ela está livre de... (acrescenta-se aqui todas as acusações contra o ateísmo).
Stalin problema? Po^nham um teólogo crsitão bebado e ele descobre as razões religiosas desse "santo"! Estaline de pequenino atirado para um seminário religioso-cristão. E ali viveu a meninice até adolescência, quase até ser homem. Dizem ... que o ambiente daquela estrutura religiosa (à semelhança do seminário que o joão paulo II fechou na Áustria????)não era recomendável para rapazes! Isto é, na fase em que se formam os valores e interiorizam valores e conhecimentos, estaline foi encharcado do melhor cristianismo (na altura não se usava o termo pedofilia ...). Portanto, como marxista, colado a cuspe, foi um fracasso, mas como cristão, foi fabuloso ! Fodel Castro, tem uma história semelhante. Mau marxista e bom cristão. MAO e Polt Pot, foram o que foram sempre os asiáticos (os japoneses na II guerra mundial, eram muito pacifistas e meiguinhos ...). Os textos de Mao o que possuem de marxismo? O testamentário de marx, foi apelidado por Lenine, de renegado ... Kaustsky, NUNCA APOIOU Lenine. Plekanov idem ... Lenine, de famílias cristãs, sempre muito bom aluno e cristão, até entrar na universidade (onde czar mandara enforcar o seu querido irmão mais velho, órfãos recentes).
Se não fosse o Marketing ideológico tudo isto podia ser contado como desvios do judeo-cristianismo! Mas, sempre bíblico. Sempre! Maldito virus !
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