segunda-feira, setembro 17, 2007

O FIM DA ESQUERDA



Sei que você já não agüenta mais ouvir falar em corrupção, Renan Calheiros, Lula, mensalão, Zé Dirceu etc. etc. Também já estou de saco cheio de tudo isso. Afinal, é difícil tratar de tema tão malcheiroso sem sentir náusea e ânsia de vômito. Mas vou pedir licença para falar mais uma vez do assunto. Por mais que nos cause repugnância remexer em tamanha imundície, alguém tem que tapar o nariz e fazer o papel de vira-bosta.

Já virou lugar-comum dizer que a absolvição do senador Renan Calheiros na sessão - secreta - de 12/09, por 40 votos a favor, 35 contra e 6 abstenções, no processo de quebra de decoro parlamentar pelas suas relações mal-explicadas com um lobista de empreiteira que pagava suas contas pessoais, é um dos capítulos mais vergonhosos da História nacional e, em particular, do Senado. Como já se tornou um clichê afirmar que, com tal decisão, o Senado Federal, veneranda instituição de 180 anos, cometeu um verdadeiro suicídio político, desmoralizando-se perante a opinião pública. Com Renan livre, leve e solto, os senhores senadores premiaram a impunidade, a corrupção, o patrimonialismo, a safadeza etc. etc. etc. Isso todos já estão cansados de saber.

A questão principal, aquela que ficou em segundo plano na maratona de informações sobre o caso Renan e seu último desdobramento, diz respeito não ao senador alagoano em si, ou a seus bois, sua ex-amante que vai posar para a Playboy e outras coisas do gênero. Diz respeito, na verdade, nem mesmo ao Senado, que Renan, com uma mãozinha dos companheiros petistas, acaba de desmoralizar por completo. A questão diz respeito a Lula, ao PT e à esquerda, ou ao que sobrou da esquerda, ou ao que se convencionou chamar de esquerda, no Brasil.

Recapitulemos. As manobras e intrigas de bastidores que garantiram a absolvição de Renan obedeceram a um padrão bem conhecido da política nacional. Aliado do governo Lula, Renan é peça-chave no esquema lulo-petista. Como presidente do Senado, é o pilar fundamental para a aprovação na Casa da prorrogação da CPMF - imposto que, nascido provisório, dá sinais de vocação para a eternidade, e cuja extinção, assim como a "defesa da ética", já foi uma das bandeiras de campanha de Lula e da companheirada. Só isso já explica o apoio prestado pela bancada petista ao companheiro Renan, seja pelo voto a favor ou pela abstenção - caminho seguido corajosamente pelo senador Aloízio Mercadante, por exemplo. Acrescente-se o rabo preso dos demais senadores dos outros partidos, todos lembrados discretamente por Renan de que seus votos certamente teriam conseqüências (uma forma suave de descrever a velha tática da chantagem) e está explicada a maioria contrária à cassação do distinto senador, que poderá, pelo menos por enquanto, continuar a presidir a instituição como se fosse mais uma de suas fazendas em Murici.

Que lição fica de tudo isso? A seguinte: o PT, Partido dos Trabalhadores, da estrela vermelha e do presidente Lula; o PT, outrora conhecido como o campeão infatigável das causas populares e da ética na política; o PT, o maior partido de esquerda do Ocidente; o PT, que se meteu até o pescoço nos escândalos do assassinato de Celso Daniel, do mensalão, do valerioduto, do dossiêgate e outros rolos mal-explicados; o PT, enfim, acaba de assinar seu atestado de óbito. E, com ele, toda a esquerda, a própria noção de esquerda.

Tendo nascido sob o signo da luta pela redemocratização do País e da justiça social, tendo abraçado, antes de desfrutar as delícias do "pudê", a bandeira da ética, o PT culmina melancolicamente sua trajetória trabalhando para livrar a cara do ex-collorido Renan Calheiros. Tendo durante quase três décadas se apresentado como o único e legítimo defensor da virtude na política, acaba rebaixado à condição de partido da barganha e do toma-lá-dá-cá, da corrupção e da condescendência com corruptos. Com isso, fica mais que demonstrado, para quem quiser ver, que toda aquela discurseira sobre ética, toda aquela retórica repetida ad nauseam em favor dos pobres e humildes, e em defesa da moralidade na vida pública, não passava de mera demagogia oportunista para vencer as eleições.

Não apenas a bandeira da ética foi pelo ralo - a da democracia também. Assim como fez com a ética, o PT tentou partidarizar e ideologizar a democracia, tentando impor goela abaixo de todos a falácia de que a defesa da legalidade democrática pertence exclusivamente à esquerda. E, assim como ocorreu com seu tão decantado "patrimônio ético", tal visão falsa e deturpada caiu totalmente por terra, na forma de manifestações públicas de apoio ao tiranossauro Fidel Castro e a seus discípulos Hugo Chávez e Evo Morales (o apoio de Lula à retirada do ar da RCTV na Venezuela, assim como a PF servindo de capitão do mato no episódio dos pugilistas cubanos deportados para a ilha-prisão, ainda está fresco na memória). Tais fatos demonstram que não somente a discurseira demagógica sobre honestidade na política era pura fachada eleitoreira, mas o discurso da democracia e dos direitos humanos, ainda hoje repetido por muitos petistas e gente da esquerda em geral, não passa de mais uma forma de engabelar os incautos.

Ao ajudar Renan a se safar, o PT cravou o último prego no caixão do discurso democrático. Isso porque, com escândalos como o do mensalão e agora com Renan, é tentador afirmar que a avacalhação das instituições políticas brasileiras é parte inseparável da estratégia lulo-petista de conquista e manutenção do poder. Não por acaso, Renan Calheiros citou Gramsci ao se defender. É que os lulo-petistas, em sua grande marcha para construir um paraíso dos trabalhadores, não se contentaram em encher a máquina estatal com companheiros (vejam o caso da ANAC, por exemplo), nem em desmoralizar a Câmara com o mensalão; agora, tratam de enxovalhar também o Senado, completando o serviço. Enquanto isso, Lula continua fazendo suas viagens, que ele tanto criticava na época que era oposição, mobilizando a militância petista, distribuindo uma verbinha aqui, outra acolá para os companheiros dos "movimentos sociais" como MST, UNE, CGT etc., empenhados em convocar um plebiscito para reestatizar a Vale do Rio Doce. Ao mesmo tempo, embora o negue de pés juntos em público, já começa a articular, malandramente, para garantir seu terceiro, quarto, quinto ou sexto mandato, à moda chavista... Que melhor caminho para preparar o terreno para esse projeto continuísta que a enxovalhação do Congresso?

Tão entranhada está a idéia da esquerda-defensora-exclusiva-da-ética-e-da-democracia que mesmo os que queriam a cabeça de Renan e se opõem ao Apedeuta terminam reproduzindo esse discurso, chegando, inclusive, a radicalizá-lo. É o caso do PSOL da destrambelhada (ou muito cara-de-pau mesmo) Heloísa Helena, para quem a corrupção foi o resultado da "inflexão à direita" do PT após a subida ao poder. Essa tese, que só poderia ter surgido da cabeça de um esquerdista, tem por objetivo salvar a própria noção de esquerda, dissociando-a daqueles que dela se "desviaram" ou se deixaram "corromper pelo poder" (como se o poder, em vez de desmascarar, corrompesse). Em outras palavras: corrupção é de direita; a honestidade, a ética, são de esquerda. É como se, para falar de corrupção, fosse preciso ter atestado de pureza ideológica, tal como o PT de outra época. É impossível evitar a sensação de déjà vu.

Enquanto aqueles que se dizem oposicionistas não atentarem para os fatos acima, as demonstrações de oposição ao lulo-petismo vão continuar restritas a alguns editoriais indignados e a movimentos caricatos como o "Cansei", envergonhado de se assumir como oposição a Lula e ao governo. O PT morreu. A esquerda morreu. Deles, só sobrou o cadáver. Mas é um cadáver insepulto. E, como tal, continuará a exalar odores nauseabundos, empesteando tudo que o cerca.

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