Recapitulemos. As manobras e intrigas de bastidores que garantiram a absolvição de Renan obedeceram a um padrão bem conhecido da política nacional. Aliado do governo Lula, Renan é peça-chave no esquema lulo-petista. Como presidente do Senado, é o pilar fundamental para a aprovação na Casa da prorrogação da CPMF - imposto que, nascido provisório, dá sinais de vocação para a eternidade, e cuja extinção, assim como a "defesa da ética", já foi uma das bandeiras de campanha de Lula e da companheirada. Só isso já explica o apoio prestado pela bancada petista ao companheiro Renan, seja pelo voto a favor ou pela abstenção - caminho seguido corajosamente pelo senador Aloízio Mercadante, por exemplo. Acrescente-se o rabo preso dos demais senadores dos outros partidos, todos lembrados discretamente por Renan de que seus votos certamente teriam conseqüências (uma forma suave de descrever a velha tática da chantagem) e está explicada a maioria contrária à cassação do distinto senador, que poderá, pelo menos por enquanto, continuar a presidir a instituição como se fosse mais uma de suas fazendas em Murici.
Que lição fica de tudo isso? A seguinte: o PT, Partido dos Trabalhadores, da estrela vermelha e do presidente Lula; o PT, outrora conhecido como o campeão infatigável das causas populares e da ética na política; o PT, o maior partido de esquerda do Ocidente; o PT, que se meteu até o pescoço nos escândalos do assassinato de Celso Daniel, do mensalão, do valerioduto, do dossiêgate e outros rolos mal-explicados; o PT, enfim, acaba de assinar seu atestado de óbito. E, com ele, toda a esquerda, a própria noção de esquerda.
Tendo nascido sob o signo da luta pela redemocratização do País e da justiça social, tendo abraçado, antes de desfrutar as delícias do "pudê", a bandeira da ética, o PT culmina melancolicamente sua trajetória trabalhando para livrar a cara do ex-collorido Renan Calheiros. Tendo durante quase três décadas se apresentado como o único e legítimo defensor da virtude na política, acaba rebaixado à condição de partido da barganha e do toma-lá-dá-cá, da corrupção e da condescendência com corruptos. Com isso, fica mais que demonstrado, para quem quiser ver, que toda aquela discurseira sobre ética, toda aquela retórica repetida ad nauseam em favor dos pobres e humildes, e em defesa da moralidade na vida pública, não passava de mera demagogia oportunista para vencer as eleições.
Não apenas a bandeira da ética foi pelo ralo - a da democracia também. Assim como fez com a ética, o PT tentou partidarizar e ideologizar a democracia, tentando impor goela abaixo de todos a falácia de que a defesa da legalidade democrática pertence exclusivamente à esquerda. E, assim como ocorreu com seu tão decantado "patrimônio ético", tal visão falsa e deturpada caiu totalmente por terra, na forma de manifestações públicas de apoio ao tiranossauro Fidel Castro e a seus discípulos Hugo Chávez e Evo Morales (o apoio de Lula à retirada do ar da RCTV na Venezuela, assim como a PF servindo de capitão do mato no episódio dos pugilistas cubanos deportados para a ilha-prisão, ainda está fresco na memória). Tais fatos demonstram que não somente a discurseira demagógica sobre honestidade na política era pura fachada eleitoreira, mas o discurso da democracia e dos direitos humanos, ainda hoje repetido por muitos petistas e gente da esquerda em geral, não passa de mais uma forma de engabelar os incautos.
Ao ajudar Renan a se safar, o PT cravou o último prego no caixão do discurso democrático. Isso porque, com escândalos como o do mensalão e agora com Renan, é tentador afirmar que a avacalhação das instituições políticas brasileiras é parte inseparável da estratégia lulo-petista de conquista e manutenção do poder. Não por acaso, Renan Calheiros citou Gramsci ao se defender. É que os lulo-petistas, em sua grande marcha para construir um paraíso dos trabalhadores, não se contentaram em encher a máquina estatal com companheiros (vejam o caso da ANAC, por exemplo), nem em desmoralizar a Câmara com o mensalão; agora, tratam de enxovalhar também o Senado, completando o serviço. Enquanto isso, Lula continua fazendo suas viagens, que ele tanto criticava na época que era oposição, mobilizando a militância petista, distribuindo uma verbinha aqui, outra acolá para os companheiros dos "movimentos sociais" como MST, UNE, CGT etc., empenhados em convocar um plebiscito para reestatizar a Vale do Rio Doce. Ao mesmo tempo, embora o negue de pés juntos em público, já começa a articular, malandramente, para garantir seu terceiro, quarto, quinto ou sexto mandato, à moda chavista... Que melhor caminho para preparar o terreno para esse projeto continuísta que a enxovalhação do Congresso?
Tão entranhada está a idéia da esquerda-defensora-exclusiva-da-ética-e-da-democracia que mesmo os que queriam a cabeça de Renan e se opõem ao Apedeuta terminam reproduzindo esse discurso, chegando, inclusive, a radicalizá-lo. É o caso do PSOL da destrambelhada (ou muito cara-de-pau mesmo) Heloísa Helena, para quem a corrupção foi o resultado da "inflexão à direita" do PT após a subida ao poder. Essa tese, que só poderia ter surgido da cabeça de um esquerdista, tem por objetivo salvar a própria noção de esquerda, dissociando-a daqueles que dela se "desviaram" ou se deixaram "corromper pelo poder" (como se o poder, em vez de desmascarar, corrompesse). Em outras palavras: corrupção é de direita; a honestidade, a ética, são de esquerda. É como se, para falar de corrupção, fosse preciso ter atestado de pureza ideológica, tal como o PT de outra época. É impossível evitar a sensação de déjà vu.
Enquanto aqueles que se dizem oposicionistas não atentarem para os fatos acima, as demonstrações de oposição ao lulo-petismo vão continuar restritas a alguns editoriais indignados e a movimentos caricatos como o "Cansei", envergonhado de se assumir como oposição a Lula e ao governo. O PT morreu. A esquerda morreu. Deles, só sobrou o cadáver. Mas é um cadáver insepulto. E, como tal, continuará a exalar odores nauseabundos, empesteando tudo que o cerca.
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