quinta-feira, dezembro 30, 2010

O CLUBE DOS RESSENTIDOS


Quando eu era criança, no final dos anos 70, não perdia um episódio do Sítio do Pica-Pau Amarelo. O seriado da Rede Globo foi meu primeiro contato com a obra de Monteiro Lobato, o genial escritor paulista que encantou e alimentou a imaginação de gerações de brasileiros, com um universo abertamente anárquico (burros falantes e leitões como marqueses, entre outras transgressões ao gosto tradicional) e uma síntese ousada de folclore caipira e mitologia grega. Um oásis de vida inteligente em meio ao deserto de mediocridade imperante na televisão, o Sítio abriu as portas, para muita gente, da literatura clássica e para as delícias do conhecimento. Graças a ele e a seu autor, Teseu e o Minotauro, Dom Quixote e Cervantes, tornaram-se para mim personagens tão familiares quanto Dona Benta e o Visconde de Sabugosa, Emília e o Saci-Pererê. Graças a isso, minha infância não foi totalmente desperdiçada em peladas de várzea e em brincadeiras idiotas, tendo sido, em vez disso, povoada por uma chispa de inteligência. Na era pré-videogame e pré-internet, o Sítio era minha Disneyworld, e Lobato era meu Nintendo, era meu Playstation.

Pois não é que apareceu um burocrata (ou melhor: um burrocrata) no governo federal dizendo que Monteiro Lobato, o autor de Reinações de Narizinho, é um escritor perigoso, impróprio para crianças? Pior: era um "racista"? Isso por causa de algumas frases consideradas ofensivas (como é sensível esse pessoal!) pela patrulha politicamente correta incrustrada na máquina governamental desde há oito anos, sobre a empregada negra da Dona Benta, a simpática Tia Nastácia. Monteiro Lobato, o racista odioso, não deve ser lido nas escolas, decretaram os vigilantes da cultura e da correção politica. Monteiro Lobato, o membro da Ku Klux Klan, deve ser expulso da cultura brasileira, decidiram os sábios.

A censura à obra de Monteiro Lobato é uma dessas coisas só possíveis de acontecer em épocas de rebaixamento intelectual e embrutecimento mental como a que estamos atravessando. É o retrato de uma Era. Classificar Monteiro Lobato por supostas ofensas aos negros em seus livros - e querer bani-lo do ensino por isso - é algo tão estúpido e tão idiota quanto querer censurar a obra de Aristóteles, Shakespeare ou Mark Twain pelo mesmo motivo. É, enfim, tentar castrar a inteligência.

Assim como o criador de O Sítio do Pica-Pau Amarelo, também sou perigoso. Também sou impróprio para cérebros infantis. Não aceito, por exemplo, os argumentos usados para justificar a introdução de cotas raciais em concursos públicos. Não vejo justificativa para dar tratamento diferenciado a candidatos a uma vaga na Universidade ou no Itamaraty, por exemplo, com base na auto-proclamada "raça" ("negro" ou "afro-descendente"). Não consigo ver isso senão como a oficialização do contrário do que se alega combater: o racismo. Toda vez que alguém entra na UnB ou no Itamaraty por causa de algum programa de cotas raciais, o Brasil fica menos parecido com o Brasil, e mais parecido com o Mississípi dos anos 50 ou com a África do Sul dos tempos do apartheid. Além do mais, quem tem raça é cachorro, como bem definiu o mulato João Ubaldo Ribeiro.
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Não vejo provas de que nós, brasileiros, somos racistas. Muito pelo contrário. Se há um país em que o conceito de raça – um conceito ideológico, não biológico, diga-se de passagem – tem pouca ou nenhuma importância, se tem um lugar em que a idéia de discriminação por raça ou pela cor da pele é algo completamente estranho à cultura nacional, é o Brasil. Se duvidam disso, leiam Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre (livro que muitos, principalmente os que não o leram, odeiam).
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Há quem veja, na tentativa absurda – e burra – de atrelar Monteiro Lobato aos dogmas da militância racialista – esta, sim, racista, pois enxerga o Brasil dividido em raças, como se aqui não tivesse havido mistura racial -, um simples "excesso" de pessoas no fundo bem-intencionadas, uma distorção de uma causa justa. Nada mais falso. O Brasil é um país cheio de defeitos, mas, se tem um que, felizmente, ninguém, muito menos os brasileiros, pode dizer que temos é que seríamos racistas. Aqui, nunca houve (pelo menos até agora nunca houve) o que foi regra nos países anglo-saxões – a segregação racial, a separação total – física, jurídica, cultural – entre as raças. Pelo contrário, o colonizador português, ele mesmo muito pouco "puro" racialmente falando (era o produto de séculos de mistura entre europeus, judeus e africanos, via dominação muçulmana), entregou-se gostosamente e sem preconceitos ao esporte priápico do cruzamento com índias, negras, caboclas, mulatas e cafuzas, até não sobrar nem resquício do que seria "raça". Se houve algum "excesso", por essas bandas, não foi de racismo, mas do seu contrário, ou seja: a miscigenação.

"Ah, mas e a escravidão? Os 'brancos' não têm aqui uma dívida histórica a pagar?" etc. Essa tem sido uma frase-clichê repetida ad nauseam pelos militantes racialistas, e por muitos ingênuos que caíram na deles (sem falar nos espertalhões em busca de uma grana dos trouxas que pagam impostos). Respondo com outra pergunta: Que dívida, cara-pálida? Olhem a História: a escravidão já existia na África séculos antes de o primeiro navegador português botar os pés no continente, e continua a ser praticada em terras muçulmanas, com as bênçãos de Alá e do multiculturalismo (no Sudão ela segue sendo uma realidade, e na Arábia Saudita a prática de ter escravos só foi oficialmente abolida em 1964). Milhares de europeus loiros e de olhos azuis foram escravizados por sultões turcos morenos e de olhos azeitonados (a primeira guerra que os EUA fizeram fora de seu território, no começo do século XIX, foi contra os piratas e mercadores árabes de escravos que agiam no Norte da África). Sem falar que, no Brasil, até mesmo ex-escravos, como Zumbi – o maior símbolo da "resistência negra contra a escravidão" –, eram eles mesmos donos de escravos e exploravam o tráfico escravista. Este não teve nada a ver com "raça", no sentido em que o tomam os ativistas de ONGs e movimentos racialistas – ou seja: não eram brancos escravizando negros, até porque de "brancos" os escravizadores tinham muito pouco. Sem falar que o escravismo esteve longe de caracterizar toda a sociedade colonial. Qual a "dívida" a ser paga por um descendente da oligarquia do sertão cearense, onde a presença escrava foi ínfima, para nao dizer inexistente? E qual peso deve recair na consciência de um filho ou neto de imigrantes alemães ou italianos do Rio Grande do Sul ou de Santa Catarina pela escravidão africana (a maioria dos quais chegou ao Brasil depois da Lei Áurea)? Dívida histórica? Quem vai pagar a dívida dos faraós?

A verdade é que episódios bizarros como o da censura a Monteiro Lobato refletem um fenômeno maior. Vivemos, atualmente, uma verdadeira revolução na linguagem. Miscigenação, por exemplo, virou uma palavra proibida. "Afro-descendente", ao contrário, tornou-se uma espécie de senha, uma palavra mágica capaz de mudar a realidade. Mas o que raios vem a ser "afro-descendente"? A Ciência já comprovou que os primeiros humanos surgiram na África. Logo, toda a humanidade, até mesmo o mais alvo norueguês, é afro-descendente. Dizer que essa categoria se refere unicamente aos negros ou aos descendentes de escravos africanos trazidos, a partir do século XVI, para as Américas (muitos deles vendidos por chefes de tribos inimigas aos mercadores europeus) é, portanto, um contra-senso, um absurdo lógico, e uma mentira histórica. Dizer "afro-descendente" é o mesmo que dizer "descendente de Eva". Ou seja, todos nós.

A revolução lingüística a que estamos assistindo não se restringe ao campo racial. Do mesmo modo que os militantes racialistas em relação a termos como "afro-descendente" ou "afro-brasileiro" (outra expressão que não quer dizer rigorosamente nada), será que os militantes gayzistas, que querem impor uma lei que criminaliza piadas de bichinha (a PLC 122/06), sabem do que estão falando quando acusam alguém – geralmente, alguém que não concorda com eles – de "homofóbico"? Será que têm consciência que "homofobia" simplesmente não existe? Ora, fobia é sinônimo de medo. Conheço medo de avião, medo da morte, medo de barata, medo do escuro. Medo de quem é homossexual, não, nunca ouvi falar. Há quem não goste de gays e, inclusive, bata neles? Certamente que sim, principalmente garotões inseguros sobre sua própria sexualidade que tentam, com isso, provar que são "machos". Ou seja: morrem de medo de dar bandeira. Não são homossexuais também?

A mesma manipulação semântica ocorre com a palavra "homoafetivo". O que é isso? Qualquer relação afetiva entre pessoas do mesmo sexo. Amizade, por exemplo, ou o amor de um irmão pelo irmão, ou de um filho pelo pai. Quem falou que "homoafetivo" se refere somente a amantes do mesmo sexo? Aqui o sequestro do vocabulário também é evidente.

Tudo isso aponta para o seguinte: a discriminação, no Brasil da Era da Mediocridade lulo-petista, não é contra negros, ou gays, ou índios, ou mulheres – é contra quem pensa diferente do resto da manada. Isso significa que o verdadeiro negro no Brasil, o judeu do Brasil de hoje, a verdadeira vítima de preconceito e perseguição, atende ao seguinte perfil: é homem, branco, de classe média (ou alta), cristão e heterossexual. E que acredita que todos são iguais perante a Lei, e não que a cor da pele ou o que se faz na cama dão a alguem direitos especiais – privilégios, em bom português.

Se os militantes de ONGs racialistas e gayzistas usassem um milésimo da sensibilidade que demonstram buscando racismo e homofobia onde isso não existe para denunciar a corrupção e as pilantragens da quadrilha lulo-petista no poder há oito anos, o governo do Capo di Tutti Capi ja teria virado poeira há muito tempo. Sem querer, os membros desse clube de ressentidos repetem outro personagem de Monteiro Lobato: o Jeca Tatu. Se estivesse vivo, o criador de Dona Benta certamente perceberia pouca diferença entre o Brasil de hoje e a Botocúndia.

4 comentários:

Alberto disse...

Concordo com o texto. Já a algum tempo percebo uma certa inversão de valores na nossa sociedade, além de um excesso de puritanismo. Hoje tudo é politicamente incorreto. Palavras ganham novos significados, tornando-se proibidas.
Um dia desses assisti um episódio dos Trapalhões com o Mussum. Nesse episódio, como quase sempre, ele fazia piada com sua fixação por álcool/cachaça/"mé". Na época todos assistíamos em família, e ríamos bastante. Fiquei imaginando como seria se algum humorista ousasse criar algo parecido hoje em dia. Porque hoje tudo é proibido, de forma que ser politicamente correto tem se tornado missão impossível, exceto se você escolhe não expressar mais nenhuma opinião.

Quanto à política de cotas, vejo como um paliativo, que mascara o cerne do problema: O acesso a um ensino básico de qualidade, que permita a todos, independente de raça, crescer por mérito próprio.
E quando essas pessoas - que não tiveram acesso a um bom ensino básico - concluírem a graduação de forma sofrível e forem preteridas no mercado de trabalho em favor de outras mais preparadas, o governo vai criar cotas de vagas nas empresas também?
No fim, na ânsia de se estabelecer a igualdade, mascara-se a desigualdade.

Anônimo disse...

Gustavo, você jamais poderá afirmar que " no Brasil não há racismo" e sabe por que ?, Por que você não é negro.
E não escrevo isso com ressentimento ou qualquer tipo de rancor, apenas aponto os fatos.
As pessoas que me olham diferente, vendedores de loja que me ignoram, seguranças de banco que me barram ( sem eu ter algo metálico no corpo), atendentes que me destratam por acaso estão ligando para o fato de o Brasil ser um país de miscigenados ? claro que não.

A mídia que em geral usa 2% de negros nos castings de novelas e seriados também não, então em termos práticos isso não vale de nada.

Eu acredito que enquanto não tivermos um sistema educacional que permita a todos competirem em pé de igualdade o sistema de cotas é sim válido. Eu reconheço que é um paliativo ,mas enquanto não evoluirmos em educação é a arma que nos resta para uma sociedade mais justa.

Anônimo disse...

Simplesmente delicioso

Alan disse...

Ótimo texto!