Um leitor assíduo deste blog - sim, eu tenho leitores! -, o Augusto Araújo, me escreve pedindo que eu faça uma análise sobre a Comuna de Paris de 1871. O motivo para esse seu pedido me parece bastante lógico: assim como outros movimentos sociopolíticos do passado, este também é geralmente utilizado pelos esquerdopatas e comunofascistóides para distorcer a realidade dos fatos e tentar vender suas teses totalitárias. Sendo assim, e mesmo não sendo meu costume escrever algo sob encomenda, atendo ao pedido do Augusto com prazer.
O tema não me é totalmente estranho. Em minha época de porralouquice trotskista, cheguei inclusive a dar uma aula/comício sobre o tema, seguida de debate. Foi em 1996, quando o fato completava cento e vinte e cinco anos. A, digamos, platéia para a qual eu fiz minha palestra dispensa comentários: um camarada revolucionário, um servidor público e um punk. Primeiranista do curso de História da universidade federal, deitei falação durante uma hora e pouco sobre o levante dos comunards franceses, que se seguiu ao colapso do Segundo Império de Napoleão III após a derrota acachapante da França na Guerra com a Prússia, na batalha de Sedan - embrião do revanchismo francês, uma das causas, mais tarde, da Primeira Guerra Mundial. Como não poderia deixar de ser na época, eu, intoxicado de literatura marxista, usei como base para minha exposição o livro de Karl Marx, A Guerra Civil na França, numa versão empoeirada que eu acabara de comprar num sebo.
Basicamente, minha análise era a mesma de Marx, a quem considerava, então, a última palavra sobre esse ou qualquer outro assunto: os insurretos parisienses - operários, setores médios e também muitos membros do que Marx chamava de lumpen-proletariado (mendigos, prostitutas, cafetães, desocupados, punguistas etc.) - poderiam ter alcançado seus objetivos revolucionários e "assaltado o céu", desde que tivessem tido uma liderança política conseqüente, imbuída da concepção científica da História - em outras palavras: desde que houvesse o tal "partido revolucionário". Esta era a idéia central esboçada por Marx em seu livro, e que seria a base para a tese desenvolvida por Lênin, anos depois, em seu panfleto intitulado Que Fazer? (1902), segundo a qual a revolução socialista não poderia ser espontânea - pelo contrário: para que fosse vitoriosa, seria necessário o partido de militantes profissionais, que se encarregaria de injetar a "consciência revolucionária" nas massas, de fora para dentro. Caberia ao partido, segundo essa visão, conduzir a classe operária rumo ao caminho glorioso da tomada do poder e da construção do Estado socialista. Como, na Comuna de Paris, não havia essa agremiação de intelectuais iluminados, o movimento foi rapidamente e sangrentamente reprimido pelas forças francesas e prussianas. A Comuna teria servido, assim, como uma espécie de "ensaio" para o triunfo dos trabalhadores, mais ou menos como fora a Revolução de 1905 em relação à Revolução de 1917 na Rússia. Essa era a lição que nós, revolucionários marxistas, deveríamos tirar do episódio. Essa era, aliás, a lição que se deveria tirar de todos os fatos da História, que só existia, em nossas mentes, para comprovar a verdade insuperável da doutrina marxista.
É claro que, nessa época, eu não tinha ainda aberto os olhos para o que é óbvio, para o que está na cara, a ponto de me dar certa vergonha dizê-lo hoje: tudo aquilo que eu dizia, aquela patacoada toda sobre a necessidade do partido revolucionário e a luta de classes aplicada à Comuna de Paris, não passava de wishful thinking, um enorme exercício de masturbação intelectual. Mais que isso: era um exercício de mistificação histórica e de babaquice ideológica sem tamanho. A Comuna nada mais foi do que o resultado do vazio de poder surgido na França com a derrota na guerra e a queda do Império, o que levou ao surgimento, na ausência do Estado, de um embrião de "poder popular" que durou três meses, e que foi rapidamente destruído em função da repressão e de suas inconsistências internas. Marxistas, socialistas moderados e anarquistas - principalmente estes últimos, que tomaram a dianteira do movimento - não se entendiam entre si. O resultado foram dias de caos e baderna, semelhante a tantas outras mazorcas do tipo, e que terminaram num banho de sangue.
Pelo menos numa coisa Marx estava certo: não havia, entre os comunards, nada que pudesse ser chamado, sequer remotamente, de consciência política. Não se compararmos o que ocorreu em Paris em 1871 ao que teve lugar na mesma cidade em 1789 ou em 1848. Ao contrário dessas duas revoluções anteriores, os ideais dos insurretos, se vitoriosos, levariam não a um sistema político melhorado, a um regime democrático ou coisa que o valha, mas a um tipo de Estado totalitário. De fato, foi exatamente isso que aconteceu depois na Rússia, a partir de 1917, e em todos os países que tiveram o infortúnio de se transformarem em repúblicas socialistas. A Comuna de Paris, apesar das idéias libertárias de muitos de seus integrantes, apontava numa única direção: a destruição completa das liberdades individuais, em nome da "redenção da humanidade". Assim como todos os movimentos reverenciados pela esquerda, diga-se.
Mas qual a razão de lembrar esses fatos sobre um acontecimento pouco conhecido, de mais de um século atrás? A razão principal é que os "intelequituais" de esquerda, em seu afã de poder total, construíram um discurso eficiente, baseado na monopolização da interpretação de certos fatos históricos. Reunidos num conjunto mais ou menos coerente, esses fatos - a Comuna de Paris, a Revolução Russa de 1917, as revoluções chinesa e cubana etc. - formam uma espécie de calendário revolucionário, paralelo ao calendário oficial, mediante o qual as esquerdas buscam reverenciar seus mártires e heróis e manter viva a chama da revolução proletária, descambando para a apologia e o panegírico. É somente por esse motivo que os esquerdistas se interessam pela História. O uso que fazem dela é puramente instrumental, não tem outra finalidade senão reforçar suas crenças. Não é difícil perceber que a principal vítima disso é a própria verdade histórica, a honestidade intelectual. Afinal, essa gente não está interessada em pesquisar seriamente os fatos históricos, mas apenas em usá-los como um pretexto para fazer proselitismo político e propaganda revolucionária. Para tanto, eles distorcem e mistificam fatos a seu bel-prazer, fazendo analogias impossíveis e desafiando as leis mais elementares da lógica. Dou um exemplo: certa vez, quando eu estava lecionando na universidade, um grupo de grevistas invadiu minha sala de aula e tentou convencer os alunos a aderirem à greve. Na ocasião, falaram em revolução. Perguntei então ao grupo como eles pretendiam fazer uma revolução impedindo os alunos que o quisessem de assistir às aulas. Um dos militantes, aliás estudante universitário, mencionou então o levante dos marinheiros alemães em Kiel, em 1918... Por aí se vê.
Alguns anos depois daquela minha inesquecível palestra para três pessoas, li outro livro sobre a Comuna de Paris, História da Comuna de 1871, de Prosper-Olivier Lissagaray (Editora Ensaio, 1991). O livro é basicamente uma narrativa clássica e factual sobre a revolta. Dele retirei a epígrafe que utilizei em minha dissertação de final de curso, e que desde então passou a ser uma das minhas citações preferidas: "Aquele que conta ao povo falsas lendas revolucionárias, que o diverte com histórias sedutoras, é tão criminoso quanto o geógrafo que traça falsos mapas para os navegadores". Poucas frases descrevem tão acuradamente o que as esquerdas fazem com a História. Parafraseando Marx, o que querem não é interpretar a História, mas modificá-la.
E isso não somente em relação à Comuna, é bom que se diga. Em praticamente todos os personagens e movimentos sobre os quais a esquerda se debruça, percebe-se o peso da falsificação histórica. Quem, entre nossos "intelequituais", teria a ousadia de lembrar, por exemplo, que Marx era um renomado racista que desprezava os povos eslavos e outros como "raças inferiores"? Ou que Lênin, e não Stálin, foi o criador dos campos de concentração na Rússia? Ou que foi o governo comunista do Vietnã do Norte, e não os EUA, que começou o conflito no Sudeste Asiático? Ou que a luta armada no Brasil nos anos 60 e 70 não visava à restauração das liberdades democráticas, mas sim ao estabelecimento de um regime totalitário no País? Quem, das hostes esquerdistas, teria coragem de admitir esses fatos publicamente?
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Se nossos esquerdopatas e marxistas de galinheiro estudassem a sério, sem maniqueísmos idiotas, os fatos e personagens que costumam louvar, ao invés de simplesmente tentarem manipular a História para gritar slogans e defender o fim do capitalismo, ficariam certamente decepcionados. Cairiam em si e perceberiam o quão tontos são, ao quererem que os fatos se adaptem a suas idéias, e não o contrário. Tomei essa decisão - estudar a História, e não distorcê-la para atender a objetivos políticos - alguns anos atrás. Por isso deixei de ser de esquerda. Não sei se quem me pediu esse texto ficará satisfeito. Mas é o que eu tinha a dizer.
Um comentário:
Obrigado Gustavo, era isso mesmo q queria saber
é q segundo os neomarxistas a comuna de paris seria ótima mas foi esmagada pela burguesia francesa
olhe estes links sobre a comuna e a rev de 1848
http://aprender.unb.br/mod/resource/view.php?id=21498
http://www.espacoacademico.com.br/000/0fontana.htm
http://www.piratininga.org.br/memoria/bandeiras.html
é sempre a mesma vleha história de bem contra o mal e o bem perdendo
abs!
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