quinta-feira, maio 29, 2008

1968: O ANO QUE PRECISA ACABAR


Algum tempo atrás, em um comício, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, exortou os franceses a "liquidar a herança de Maio de 1968".
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Sarkozy tem muitos defeitos - seu estilo está mais para Berlusconi, por exemplo, do que para De Gaulle -, mas, aparentemente, o deslumbramento e a reverência beata em relação ao que foi o "ano que não acabou" não é um deles. Ele não padece do mal bastante comum entre muitos de sua geração, e principalmente entre os mais jovens, que insistem em ver os acontecimentos de 1968 com devoção supersticiosa, como se tivessem sido uma espécie de catarse libertária coletiva, de revolta geral contra o autoritarismo dos mais velhos e pela libertação individual. A lucidez de sua exortação só é comparável a seu bom gosto para as mulheres e talento para a autopromoção. Palmas para ele.

Este ano, 1968 completa quatro décadas. Como ocorreu dez anos atrás, a efeméride está sendo lembrada com uma nova enxurrada de livros, filmes e entrevistas, entremeada por um clima irritante de nostalgia, em que senhores e senhoras grisalhos relembram aquele período áureo de sua juventude, em que sonhavam mudar o mundo (para melhor? duvido muito). Via de regra, os mais jovens só ouviram falar de 1968 e dos anos 60 em geral por intermédio dessas lembranças, bastante seletivas, de velhos intelectuais "meia-oito" ou soixante-huitards. Natural que sua visão sobre as barricadas de maio de 68 em Paris e os protestos estudantis ao redor do mundo, assim como sobre a flower generation e os hippies, seja tão fiel à realidade dos fatos quanto a série O Senhor dos Anéis...

Nos países ocidentais, o ano de 1968 já adquiriu o status de mito, um divisor de águas da segunda metade do século XX. E, como ocorre com todos os mitos, sua base fundamental não é a dura e feia realidade, mas o desejo, a vontade de que as coisas se encaixem em nossos sonhos. A lenda mais persistente sobre aquele período é que este teria sido um momento de explosão libertária. Trata-se de um equívoco, fruto da ignorância e da manipulação. De libertário, 1968 não teve nada, ou muito pouco. Basta ver os slogans dos estudantes rebelados em Paris: ao lado de bordões anarquistas como "É proibido proibir", ou românticos como "Sejamos realistas: exijamos o impossível", encontravam-se platitudes marxistóides como "Abaixo o imperialismo norte-americano no Vietnã", "Viva Che Guevara", ou "Deus: te suponho um intelectual de esquerda" (este último, um lema da então nascente teologia da libertação, de famigerada memória).

O caráter muito pouco libertário de 1968 pode ser atestado pelo seguinte fato: aquele foi o ano da retomada mundial das esquerdas, desgastadas após décadas de stalinismo e burocratismo dos antigos partidos comunistas, vistos com cada vez mais desconfiança pelos mais jovens. Foi o momento em que a geração nascida durante ou após a Segunda Guerra Mundial - a geração de meus pais - se insurgiu não apenas contra o "velho", tudo que era antigo e cheirava à autoridade, mas também contra o que, até os dias de hoje, é novo - os valores da democracia liberal, como a tolerância e a liberdade de pensamento, algo ainda tão estranho a nós, deste subdesenvolvido Brasil. De certo modo, o conjunto de revoltas estudantis ocorridas quase simultaneamente naquele ano - em Paris, Roma, Berlim, Tóquio, Rio de Janeiro - foi uma revolta não contra as velhas práticas e objetivos da esquerda, mas a favor delas. Buscava-se então recuperar aquilo que as esquerdas ocidentais haviam perdido durante os anos sombrios do pós-guerra na Europa - não por acaso, a palavra mais repetida em 1968 não foi "liberdade", mas "revolução". Daí o surgimento, nesse período, da "esquerda festiva" e da New Left, capitaneada por figuras como Noam Chomsky e Tariq Ali, campeões do antiamericanismo e do populismo terceiromundista mais vagabundos, recobertos com uma embalagem "pop-chique". Estes fizeram muito barulho protestando contra as atrocidades norte-americanas no Vietnã, onde trataram de transformar uma vitória militar numa derrota política, demonstrando assim os incríveis poderes de manipulação da televisão. Mas quase não se ouviu a voz deles quando se tratava de condenar os crimes do Vietcong... (é que estes, ao contrário das cenas de combate envolvendo os marines estadunidenses, não apareciam no noticiário da noite).

Que o libertarianismo associado aos anos 60 e às esquerdas seja uma farsa, não é algo muito difícil de constatar. Basta recordar que muitos dos estudantes franceses que ocuparam a Sorbonne ou seus colegas brasileiros que atiravam pedras na polícia tinham como modelos a China de Mao Tsé-Tung e a Cuba de Fidel Castro. Na China, na mesma época, o Grande Timoneiro, que já contava mais de setenta anos de idade, arregimentava a juventude fanatizada por seu Pequeno Livro Vermelho contra a "velha geração", na chamada "Revolução Cultural" (na verdade, anticultural). Milhares de adolescentes chineses, gritando slogans e usando o uniforme dos Guardas Vermelhos, dedicavam-se a espancar e a humilhar seus professores, em nome do presidente Mao. O resultado foi uma multidão de mortos, num dos períodos mais sombrios de um dos regimes mais sanguinários de todos os tempos. Em Cuba, o ditador Fidel Castro, visto como exemplo de revolucionário pelos jovens contestadores de então, mobilizava a polícia política para cortar à força os cabelos compridos dos jovens cubanos, enviando os homossexuais para "campos de reeducação" e tendo proibido, inclusive, o rock (em mais um exemplo de oportunismo ideológico, e percebendo o sex-appeal da cultura de 68, o tirano barbudo inaugurou em Havana, há alguns anos, uma estátua de John Lennon - um "antiimperialista", segundo ele...). O mesmo Fidel Castro, que na mesma época recolhia os dividendos do mito recém-criado em torno da morte de Che Guevara na Bolívia, justificou, num discurso vergonhoso, a invasão da Tchecoslováquia pelas tropas soviéticas, em agosto daquele mesmo ano. O que demonstra que toda a "onda jovem" geralmente associada aos anos 60 teve, na verdade, um forte componente de mentira e manipulação.
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No Brasil, o ano de 1968 também foi agitado, como sabemos. Aquele foi o ano das grandes demonstrações de protesto estudantil contra os militares no poder, como a Passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro ("não vi um negro", escreveu Nelson Rodrigues, certamente o melhor cronista daqueles tempos). Ao mesmo tempo, cozinhava-se na caldeira dos protestos o que seria o plat du jour daqueles tempos de chumbo: o terrorismo. No Rio de Janeiro, em julho, um comando terrorista de esquerda assassinou a tiros um major do Exército da Alemanha ocidental, tomando-o pelo militar boliviano que prendera, no ano anterior, Che Guevara... Em São Paulo, alguns meses depois, outro grupo metralhou na frente de sua família um capitão do Exército norte-americano, julgando-o, sem provas, agente da CIA e torturador. No final do ano, um discurso idiota e infantil de um deputado oposicionista serviu de pretexto para o fechamento do Congresso e a decretação do AI-5, o famigerado Ato Institucional Número 5. Nos anos seguintes, os atentados terroristas da esquerda se multiplicaram, assim como a tortura, resultando no mito de que os militantes da esquerda armada eram lutadores contra o "autoritarismo" e a favor da democracia. Até hoje os sobreviventes da luta armada do período apresentam-se como tais, não raro apelando para suas credenciais de ex-torturados e supostos ex-combatentes da liberdade para justificar mensalões e dossiês.

Também na área da mudança comportamental, os efeitos de 68 trazem um inconfundível sabor de farsa. A apologia do "amor-livre", graças à popularização da pílula anticoncepcional, assim como das drogas como a maconha e o LSD, longe de constituírem uma celebração da liberdade, parecem, hoje em dia, simples manifestação de tendências autodestrutivas, uma espécie de tentativa de suicídio coletivo. Hoje, a liberdade sexual deu lugar ao flagelo da AIDS, e a "expansão da mente" por meio de alucinógenos pregada por Timothy Leary resultou não em liberdade e autoconhecimento, mas nas batalhas entre narcotraficantes e polícia nas favelas cariocas. Outros movimentos fortes na época, como o feminismo e a luta pelos direitos civis dos negros nos EUA, ensejaram não a tolerância, mas cretinices como o sistema de cotas e a moda totalitária do politicamente correto, com sua novilíngua.
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No campo das idéias, a década de 60 também deixou um rastro de destruição em seu caminho. Assistiu-se, desde então, ao triunfo do relativismo, mediante a onda "desconstrucionista" e "pós-moderna", embalada pelas teorias de Marcuse e da Escola de Frankfurt, que buscavam injetar vida nova no velho marxismo. A conseqüência desse gigantesco exercício de desconstrução mental foi a produção de uma vasta literatura desbancando as certezas da moral e da ética - tidas como meros "preconceitos burgueses" - e a implantação, em lugar destas, de uma visão de mundo relativista, que rapidamente descambou para o niilismo. Em um mundo onde não se poderia mais ter certeza sobre nenhum assunto, a "desconstrução" tornou-se a nova palavra de ordem. Daí para a justificação de fenômenos como o terrorismo ("uma manifestação legítima de resistência contra a opressão colonial e capitalista") foi um pulo. De certo modo, pode-se traçar uma linha entre 1968 e Bin Laden.

Mas, acima de tudo, 68 foi o ano do surgimento, ou pelo menos da entronização no insconsciente coletivo, do "jovem". Este tornou-se, desde então, uma figura verdadeiramente totêmica, objeto de culto e de veneração respeitosa, acima do bem e do mal. Como reposítório das "idéias novas" de então, tudo passou a ser-lhe permitido. Nunca, em toda a História, a imaturidade foi tão louvada e reverenciada. "Não confie em ninguém com mais de 30 anos", tornou-se moda dizer. O resultado foi o surgimento de uma geração de adultos imaturos e despreparados, eternos adolescentes, mimados e narcisistas, incapazes de encarar a vida de forma serena e minimamente responsável. Seus filhos e netos, atingidos de irrestível nostalgia por aquilo que não viveram, se encarregaram de manter acesa a chama da religião meia-oito.

Enfim, 1968 passará à História não como o ano da liberdade, mas do flerte com o totalitarismo. Não o ano do surgimento de uma nova geração, mais consciente e politizada, mas de uma multidão de palermas e zumbis ideológicos. Muito mais importante, do ponto de vista político, foi 1989, a meu ver este sim o ano que não terminou. Não apenas porque, tendo nascido em 1974, pude presenciar, ao vivo e a cores, os acontecimentos desta última data, ao contrário daquela, que só existe para mim em livros e documentários em preto-e-branco. Mas principalmente porque, ao contrário de 1968, 1989 foi uma data verdadeiramente libertária, em que os ventos da mudança realmente sopraram em vários países, levando consigo o regime totalitário mais odioso da História. Infelizmente, esse processo ainda não se completou, abortado em nosso continente pelos remanescentes de 1968, que insistem em restabelecer, na América Latina, o que se perdeu no Leste Europeu. O ano de 1989 ainda não terminou. O de 1968 precisa acabar.
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P.S.: Para mim, o legado de 1968 é como o Fusquinha da foto (aliás, ano 68): até simpático, mas caindo pelas tabelas, e dificilmente vai te levar muito longe...

2 comentários:

Augusto Araújo disse...

velho continue com essa fonte, melhorou muito

ne meu blog coloquei uma maior, ficou tipo negrito

é q tinha nojo de sites q tinham letra miudinha, e como sou míope já viu né?

pior é q o site do Xico Graziano q tem ótimos artigos e seu blog possuem (ou possuíam) letrinha pequena

continue com essa fonte. abs!

Augusto Araújo disse...

e quanto ao texto

putz, primoroso, acho q o país é governado por pessoas desse signo mitologista da geraçao de 68

posso postar no meu blog com os devidos créditos?