sábado, janeiro 26, 2008

SÍNDROME DE ESTOCOLMO


Aproveitando o ensejo do meu último artigo, em que comento a cortina de silêncio que há quase vinte anos desceu sobre o Foro de São Paulo, senti-me na obrigação de escrever mais algumas palavras sobre o assunto. Na verdade, devo confessar que fiquei tão entusiasmado com a - pequena, pequeníssima - referência da revista ao Foro - o maior tabu da imprensa brasileira na atualidade - que acabei esquecendo de observar algo fundamental. Algo que é a própria essência de todo o debate atual sobre a esquerda e os esquerdistas, no Brasil e no exterior.

Na edição anterior da revista, há uma reportagem sobre as FARC que, a certa altura, diz o seguinte (transcrevo ipsis literis):

"A organização que mantém cerca de oitocentas pessoas em seu poder, conhecida pela sigla Farc, não é formada por guerrilheiros marxistas, como repete a denominação usual. Nem Marx endossaria as barbáries cometidas pelas Farc, que se originaram numa querra civil ocorrida na Colômbia e depois tiveram inspiração esquerdista, mas há muito tempo degeneraram em uma espécie de seita de fanáticos que vive à custa do tráfico de cocaína.”

Malgrado a justeza da condenação das FARC no parágrafo transcrito acima, há nele três grandes erros. Erros graves, gravíssimos. Vamos a eles:

1) Ao contrário do que diz a Veja, as FARC são uma organização marxista, sim. Somente quem desconhece por completo a história do movimento revolucionário comunista, desde a Primeira Internacional, em 1864, passando pela Revolução bolchevique de 1917 na Rússia até as maquinações insurrecionais do Comintern e da OLAS, sem falar na própria essência do pensamento de Marx e Engels, pode alegar o contrário. Seu objetivo não é outro senão transformar a Colômbia numa ditadura comunista, como é a de Cuba. Não há contradição alguma entre o marxismo e o tráfico de drogas, os seqüestros, extorsões e assaltos a bancos. Na realidade, esses métodos sempre estiveram intimamente associados aos objetivos revolucionários comunistas, desde a segunda metade do século XIX - basta folhear qualquer biografia de Lênin ou Stálin para perceber que, na luta pelo socialismo, todos os meios são válidos. Matar, seqüestrar, roubar, corromper, traficar cocaína - o que é tudo isso, do ponto de vista marxista e revolucionário, comparado ao supremo objetivo da revolução? Até hoje os críticos liberais do marxismo - como os editores de Veja - ainda não se deram conta de que a moral marxista e revolucionária - a moral das FARC - não se guia pelos mesmos elevados princípios abstratos da moral burguesa. Ao contrário desta, a moral revolucionária é instrumental, e está resumida num pequeno livro escrito por Trotsky, cujo título já é bastante explicativo - "Nossa Moral e a Deles". O que é correto, o que é moral para um revolucionário marxista? Tudo o que conduza ao triunfo da revolução, diz Trotsky, que ninguém pode acusar de ter sido antimarxista. Se isso significa manter acorrentadas pelo pescoço, feito animais, centenas de pessoas no meio do mato, ou encher os cofres do partido-guerrilha com os lucros provenientes do tráfico de drogas, que o seja. É assim que pensam as FARC.

2) Pelos motivos enunciados acima, fica claro que, também ao contrário do que diz a revista, Marx endossaria tranqüilamente, sim, as barbáries das FARC (sem falar no seu objetivo final, que é nada mais nada menos do que a transformação da Colômbia numa ditadura comunista). Aliás, é muito estranha essa insistência em separar Marx de seus discípulos narcoterroristas. Não há razão alguma para isso, senão a vontade de preservar o mito revolucionário. Marx não foi apenas o criador do "socialismo científico", o filósofo e economista que quis transpor para o campo da realidade a dialética hegeliana, como é geralmente descrito de maneira anódina nos manuais de filosofia política. Foi um inimigo da liberdade, responsável direto pelas maiores tragédias do século XX. Além de um farsante e um grande charlatão, um tremendo hipócrita, que falava em acabar com as desigualdades sociais do capitalismo enquanto se dedicava a engravidar a empregada.

Essa busca incessante pela preservação do mito da pureza marxista não tem nada de novo, e encontra eco nos sucessores do marrano alemão. Do mesmo modo que, quando da revelação dos crimes do stalinismo por Krushev em 1956, tentou-se inicialmente atribuir a responsabilidade dos crimes - "erros", na visão oficial soviética - a subordinados de Stálin, e, quando da derrocada da ex-URSS, buscou-se culpar pelo fracasso do socialismo tão-somente Stálin e seus asseclas, preservando a figura de Lênin, o conjunto das esquerdas - e até a Veja, vejam vocês - tenta blindar a figura de Marx, protegendo-o de qualquer culpa pelo que sucedeu depois na ex-URSS e demais países comunistas. E, da mesma forma que as demais, esta é uma grande mentira, uma gigantesca tapeação.

Marx não foi, certamente, o criador da doutrina comunista. Antes dele, vieram os chamados "utópicos", como Babeuf, Proudhon e Fourier, sem falar em Rousseau e, ainda mais para trás, Morus e Platão. Mas foi, sem dúvida, seu sistematizador, o responsável pela transformação do ideal igualitário-totalitário numa doutrina política coerente e sistêmica, apresentada numa embalagem "científica". Foi essa doutrina que esteve por trás dos piores crimes já cometidos contra a humanidade. Sem Marx, não teria havido Lênin, nem Stálin, nem Mao Tsé-Tung, nem Pol Pot, nem Fidel Castro. Trocando em miúdos: não haveria gulag, processos de Moscou, guardas vermelhos, campos da morte. Nem paredón e FARC.

3) As FARC são, sim, um bando de fanáticos terroristas e narcotraficantes, mas não deixaram de ser marxistas por causa disso. Muito pelo contrário. Os motivos estão expostos acima. De nada adianta mostrar indignação com o banditismo das FARC sem vinculá-lo a seus objetivos revolucionários e à ideologia comunista que lhe dá sustentação. Enquanto não se perceber isso, enquanto não se atentar para a relação inseparável entre a barbárie das FARC e sua ideologia marxista, qualquer condenação de seus métodos terroristas cairá no vazio.

Toda essa recusa em enxergar uma realidade tão óbvia e irrefutável - tanto que chego a hesitar antes de escrever sobre ela, como algo realmente acaciano - só se explica, creio eu, por algum tipo de lavagem cerebral coletiva, uma espécie de síndrome de Estocolmo em massa. Isso ficou ainda mais claro para mim quando soube que alguns familiares dos reféns das FARC chegaram a agradecer a Hugo Chávez "por seus esforços para libertá-los". Ora, Chávez está tão interessado no bem-estar dos reféns das FARC quanto na preservação da democracia na Venezuela: ou seja, não dá a mínima para isso. Seu único interesse no assunto é político e propagandístico. Ele se aproveita do desespero dos parentes das vítimas das FARC para aparecer como um benfeitor aos olhos da opinião pública mundial. Assim, desvia a atenção do fato de que ele é um dos maiores parceiros e defensores das FARC, a ponto de afirmar, em alto e bom som, que elas não são terroristas. É, portanto, um cúmplice de seus crimes. Assim como Lula, que tem a cara-de-pau de "condenar" os seqüestros das FARC como "abomináveis" perante os jornalistas, enquanto seu governo se nega, sistematicamente, a reconhecer as mesmas FARC como terroristas, pois é parceiro destas no Foro de São Paulo. Assim como os parentes dos reféns das FARC que, iludidos, mostraram gratidão ao bufão venezuelano, fomos todos seqüestrados pela retórica esquerdista. Pior: sem nos termos dado conta disso.

Essa lavagem cerebral se intensificou, a meu ver, depois da queda do Muro de Berlim e do fim da URSS, quando se tornou lugar-comum proclamar aos quatro ventos o triunfo definitivo da democracia e do capitalismo sobre a ideologia comunista. Desde então, passou-se a acreditar que os remanescentes da esquerda, sobretudo aqueles que nunca se declararam abertamente marxistas - caso de Lula e do PT, por exemplo -, teriam abandonado qualquer veleidade revolucionária e socialista, por anacrônica e ridícula, e aderido, até mesmo por uma questão de sobrevivência, ao capitalismo e ao estado de direito democrático. A esse respeito, cita-se freqüentemente a política econômica do atual governo brasileiro, como uma prova do "amadurecimento" e da "responsabilidade" dos esquerdistas no poder.

É uma esperança tola, que só pode ser descrita como um enorme auto-engano. Primeiro, porque a História não caminha de forma linear. Não basta dizer que as palavras de ordem revolucionárias comunistas são anacrônicas e ridículas. Ridículo e anacrônico também o era, cinquenta ou mesmo cem anos atrás, o extremismo religioso islâmico, por exemplo. E, no entanto, quem ousaria dizer, em 1950 ou 1900, ou mesmo em 1800, sem o risco de virar alvo de chacota, que, no limiar do século XXI, em plena época do celular e da internet, a maior ameaça à civilização ocidental e à democracia no mundo seria representada por um fanático barbudo e de turbante, adepto de uma visão religiosa do século VII D.C., escondido em alguma caverna nos confins do Afeganistão?

Segundo, que ninguém se engane com as declarações dos esquerdistas de conversão ao capitalismo. O fato de o governo Lula manter intocada a política econômica do governo tucano não denota compromisso algum com a responsabilidade fiscal ou metas de inflação, como comumente se diz, mas unicamente com a preservação do poder, o que é também uma característica da política comunista. Além do mais, o fato de um partido ou governo marxista adotar práticas capitalistas não os faz deixarem de ser marxistas. A própria URSS sob Lênin adotou, em 1921, uma política econômica - a NEP, Nova Política Econômica - que na prática restaurou a economia de mercado e o direito de propriedade, e nem por isso deixou de ser um Estado marxista e uma ditadura do proletariado. China e Vietnã há décadas aderiram na prática à economia de mercado, e também nem por isso deixaram de ser ditaduras comunistas, com partido único e censura à imprensa. Quem conhece um pouco de história do movimento comunista sabe perfeitamente que ganhar dinheiro como capitalistas para aplicá-lo como socialistas - na forma de tráfico de drogas, por exemplo - não está em contradição com os objetivos do marxismo.
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Como sempre, a ingenuidade dos meios de comunicação em relação a movimentos marxistas e revolucionários como as FARC e o Foro de São Paulo advém, também, da ignorância. Com exceção dos que um dia militaram nas hostes da esquerda mas que renunciaram às ilusões esquerdistas, deixando claro e sem ambigüidades que o capitalismo é o único sistema social capaz de gerar riqueza e que o socialismo é intrinsecamente totalitário - coisa que o PT, por exemplo, nunca fez -, não há, como eu já disse antes, esquerdista light ou moderado. Há apenas inocentes úteis ou mestres da dissimulação. O esquerdismo, em todos os seus matizes, é como o sarampo ou a catapora: é preciso ter sido acometido dessas doenças infantis para ficar imunizado contra elas. Somente os que, um dia, imergiram no universo de slogans e chavões das organizações marxistas - como este que vos escreve - podem compreender como realmente funciona a mente revolucionária. A maioria da humanidade, que jamais teve essa experiência, será sempre facilmente enganada por esses lobos em pele de cordeiro.

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