sábado, agosto 11, 2012

A FALSA MEMÓRIA DA DIREITA - UM TEXTO DE OLAVO DE CARVALHO

Como adendo a meu post anterior, reproduzo a seguir texto de Olavo de Carvalho. Trata-se da melhor análise disponível - na realidade, a única, até agora - sobre um fenômeno tipicamente brasileiro: a ausência, no Brasil, de uma direita que valha o nome. Tanto que os "direitistas" brasileiros (se é que existe algum) se resumem a alguns saudosistas do regime militar - a única "direita" que a maioria dos brasileiros conhece ou conheceu um dia.
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O texto confirma aquilo que venho dizendo neste blog há tempos: que o regime militar, apesar de alguns êxitos alcançados (particularmente na área econômica e no combate às guerrilhas), prestou um serviço inestimável à esquerda, ao decapitar toda uma geração de políticos de direita que fizeram o movimento de 64, substituindo o pensamento conservador pela tecnocracia e abrindo o caminho, assim, para a hegemonia cultural e ideológica da esquerda.  Os militares acabaram com partidos como a UDN de Carlos Lacerda, queimando as pontes que os uniam à sociedade civil, em nome de uma visão antipolítica e autoritária herdada do positivismo. O resultado foi um imenso vazio, logo preenchido pela esquerda. Estamos hoje colhendo os frutos desse erro histórico gigantesco.  
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É por essa razão que propostas como a da refundação da ARENA, o partido de sustentação política do regime militar, é um tiro na água. Pior: é um tiro no próprio pé. Se o objetivo é romper com o monopólio ideológico esquerdista e construir uma verdadeira alternativa conservadora de direita, o primeiro passo é se livrar do legado histórico do regime dos generais - e não reivindicá-lo, como querem alguns generais aposentados. É algo que deveria ser óbvio, mas em um país sem memória - ou melhor, com falsa memória, como diz o prof. Olavo -, afirmar o óbvio é a maior das heresias. (GB)  

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A FALSA MEMÓRIA DA DIREITA
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por Olavo de Carvalho

O positivismo nada tem de conservador: é, com o marxismo, uma das duas alas principais do movimento revolucionário.

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Dizem que o Brasil é um país sem memória, mas isso não é verdade: o Brasil é um país com falsa memória. Esquecer o passado é uma coisa, reinventá-lo conforme as ilusões do dia é bem outra. É desta doença que a memória do Brasil padece, e ela é bem mais grave que a amnésia pura e simples.
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Não, não estou falando da manipulação esquerdista do passado. Ela existe, mas é apenas um aspecto parcial da patologia geral a que me refiro. Esta infecta pessoas de todas as orientações ideológicas possíveis e algumas sem orientação ideológica nenhuma. Ela é um simples resultado da ojeriza nacional à busca do conhecimento, portanto à reflexão madura sobre o que quer que seja.
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Querem um exemplo de falsa visão do passado que não foi produzida por nenhum esquerdista? O País está cheio de almas conservadoras e cristãs que ainda idealizam o regime militar, como se ele fosse uma utopia retroativa, a encarnação extinta das suas esperanças.
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É verdade que os militares não roubavam, que eles fizeram o Brasil crescer à base de quinze por cento ao ano, que eles construíram praticamente todas as obras de infra-estrutura em que a economia nacional se apoia até hoje, que eles acabaram com as guerrilhas, que no tempo deles a criminalidade era ínfima e que os índices de aprovação do governo permaneceram bem altos pelo menos até a metade da gestão Figueiredo. Que tudo isso são méritos, ninguém com alguma idoneidade pode negar.
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Mas também é verdade que, tendo subido ao poder com a ajuda de uma rede enorme de instituições, partidos e grupos conservadores e religiosos, a primeira coisa que eles fizeram foi desmanchar essa rede, cortar as cabeças dos principais líderes políticos conservadores e privar-se de qualquer suporte ideológico na sociedade civil.
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Fizeram isso porque não eram conservadores de maneira alguma; eram indivíduos formados na tradição positivista – forte nos meios militares até hoje – que abomina o livre movimento das ideias na sociedade e acredita que o melhor governo possível é uma ditadura tecnocrática.
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Pois foi uma ditadura de militares e tecnocratas iluminados o que impuseram ao País por vinte anos, rebaixando a política à rotina servil de carimbar sem discussão os decretos governamentais. Suas mais altas realizações foram triunfos típicos de uma tecnocracia, seus crimes e fracassos o efeito incontornável do desejo de tudo controlar, de tudo reduzir a um problema tecnoburocrático, em que o debate político é reduzido a miudezas administrativas e a iniciativa espontânea da sociedade não conta para nada.
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O positivismo nada tem de conservador: é, com o marxismo, uma das duas alas principais do movimento revolucionário. Compartilha com a sua irmã inimiga a crença de que cabe à elite governante remoldar a sociedade de alto a baixo, falando em nome do povo para que o povo não possa falar em seu próprio nome.
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Tal foi a inspiração que acabou por predominar nos governos militares. Que dessem ao movimento de 1964 o nome de "Revolução" não foi mera coincidência, nem usurpação publicitária de um símbolo esquerdista, mas um sinal de que, por baixo da meta de derrubar um governo corrupto e devolver rapidamente o País à normalidade, tinham planos de longo prazo, ignorados da massa que os aplaudia e até de alguns dos líderes civis de cuja popularidade se serviram para depois jogá-los fora com a maior sem-cerimônia.
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Todas as organizações civis conservadoras e de direita que criaram a "Marcha da Família com Deus pela Liberdade", a maior manifestação popular da história brasileira até então, foram depois extintas, marginalizadas ou reduzidas a um papel decorativo.
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Como bons tecnocratas, os militares acreditavam piamente que podiam governar sem sustentação cultural e ideológica na sociedade civil, substituindo-a com vantagem pela pura propaganda oficial. Esta, por sua vez, era esvaziada de toda substância ideológica, reduzida ao triunfalismo econômico e à luta contra o "crime".
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Gramsci, no túmulo, se revirava, mas de satisfação: que mimo mais delicioso se poderia oferecer aos próceres da "revolução cultural" do que um governo de direita que abdicava de concorrer com eles no campo cujo domínio eles mais ambicionavam? Naqueles anos, e não por coincidência, o monopólio do debate ideológico foi transferido à esquerda, que ao mesmo tempo ia dominando a mídia, as universidades, o movimento editorial e todas as instituições de cultura, sob os olhos complacentes de um governo que se gabava de ser "pragmático" e "superior a ideologias".
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A esquerda, quando caiu do cavalo, em 1964, teve ao menos o mérito de se entregar a um longo processo de autocrítica e até de mea culpa, de onde emergiu a dupla e concorrente estratégia das guerrilhas e do gramscismo, calculada para usar os guerrilheiros como bois-de-piranha e abrir caminho para a "esquerda pacífica", na qual o governo militar não viu periculosidade alguma – até que ela, por sua vez, o derrubou do cavalo com o escândalo do Riocentro e a enxurrada de protestos que se lhe seguiu.
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Aqueles que, na "direita", ou no que resta dela, se apegam ao regime militar como um símbolo aglutinador, em vez de examinar criticamente os erros que o levaram ao fracasso, estão produzindo um falso passado. Não o fazem por esperteza, como a esquerda, mas por ingenuidade legítima, com base na qual a única coisa que se pode construir é um futuro ilusório.


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