sexta-feira, dezembro 22, 2006

O DITADOR PREFERIDO


Outro dia, estava eu conversando com dois colegas meus, numa dessas cerimônias aborrecidas do Itamaraty, quando surgiu, de repente, a questão de Cuba (um dos colegas com quem eu conversava está de mudança para Havana). Confesso que o tema me é particularmente fascinante, e minhas opiniões sobre o assunto, em especial sobre a ditadura de Fidel Castro, não são segredo para ninguém (alguns me acham até meio obsessivo em relação ao tema). Mesmo assim, devido à ocasião não ser propícia, e também porque eu não estava muito a fim de polemizar naquele dia e naquela hora, resolvi não me contrapor às opiniões de um outro meu colega que, tendo estado na ilha recentemente, fez alguns comentários elogiosos ao regime cubano, ou melhor, buscou minimizar o que dizem do mesmo por aí, sobretudo no terreno econômico. Mesmo calado, não deixei de me surpreender por uma afirmação em particular: a de que o povo cubano, por ser orgulhosamente nacionalista, estaria profundamente melindrado e indignado com as demonstrações de júbilo dos EUA e de seus patrícios exilados pela notícia do afastamento, por doença, do amado líder e comandante Fidel Castro Ruz, em agosto passado.

Como diz a música, “calada a boca, ainda resta o peito”, e fiquei matutando sobre a conversa. Por respeito ao meu colega, não vou dizer seu nome aqui, até porque sei muito bem que é um direito do indivíduo não se ver envolvido em polêmicas quando não o deseja (creio ser este o caso dele). Mas quem faz uma afirmação como essa deve saber que o preço de ter uma opinião é que sempre haverá uma outra discordante. Assim, peço vênia para dizer algumas palavras sobre o assunto.

A primeira questão é a seguinte: por que celebrar o falecimento de Fidel Castro seria uma ofensa aos brios nacionalistas cubanos? Deixando de lado a discussão teórica sobre o nacionalismo – o último refúgio do velhaco, segundo uma definição bem conhecida –, por que se deveria considerar gesto de lesa-pátria comemorar a morte de um ditador?

Segunda pergunta: por que festejar o passamento do tirano em questão, Fidel Castro, seria algo menos nacionalista ou patriótico do que comemorar a morte de outros tiranos igualmente odiosos? Há poucos dias, milhares de chilenos manifestaram toda sua alegria pelo falecimento do general Augusto Pinochet, ex-ditador do Chile, e ninguém os acusou de falta de patriotismo por causa disso. Por que sair às ruas cantando e dançando pela morte de um déspota assassino como Pinochet seria algo correto, louvável até, mas não no caso de Fidel? De acordo com a afirmação de meu colega, os cubanos exilados celebrarem a doença do ditador caribenho é uma ofensa à bandeira, uma traição à pátria. Os chilenos ou espanhóis felicitarem-se pela morte de Pinochet ou de Franco – cuja longa agonia e morte foi também festejada pelos democratas e patriotas espanhóis – é uma alta demonstração de espírito cívico.

Uma resposta possível a ambas as questões seria que Fidel, ao contrário de Pinochet, Franco ou Salazar, é inimigo dos EUA. De esquerda, portanto. Nesse caso, fica demonstrado que todos os ditadores merecem um lugar no inferno, mas – ainda segundo o raciocínio acima exposto – os ditadores que se antagonizaram com os EUA deveriam estar no paraíso ou, pelo menos, num círculo menos escaldante que os demais. Não é preciso ir muito longe para perceber que, nesse círculo infernal, Fidel teria a companhia de outros tiranos igualmente antiamericanos, como Stálin, Mao, Hitler ou Mussolini, para citar apenas os mais célebres.

Claro está que, por trás da afirmação de meu colega, a quem estimo bastante, está, na verdade, a velha distinção entre ditaduras “boas” e “más”, comum tanto à direita quanto à esquerda (embora muito mais utilizada por esta do que por aquela). Ou, na expressão de Jean-François Revel, a teoria do “totalitarismo preferido”, embora, nesse caso, a escolha não seja entre dois totalitarismos (Revel falava da preferência de muitos intelectuais franceses pelo comunismo em relação ao fascismo), mas entre o totalitarismo cubano e o autoritarismo militar chileno (para quem acha que a diferença é pequena ou sutil, poderei estender-me depois sobre o tema). Em outras palavras, a preferência ideológica por um regime tirânico em vez de outro, pura e simplesmente.

Vejamos a primeira questão. Meu colega disse, embora não com essas mesmas palavras, que os cubanos que se alegram pela aproximação da morte de Fidel são impatriotas. Tal afirmação só é aceitável se concordarmos com a lógica dos regimes totalitários, que identificam a figura do “líder” (Duce, Führer etc.) com o próprio Estado, e este, com a própria Nação. Isso significa chancelar plenamente toda e qualquer determinação do regime cubano, visto como o único e legítimo defensor das aspirações do povo. Trocando em miúdos, trata-se tão-somente da defesa apaixonada e a-crítica da ditadura castrista.

A segunda questão decorre diretamente da primeira. Se Fidel é o supra-sumo do nacionalismo cubano, e, por conseguinte, todos aqueles que se rejubilam com a perspectiva de sua morte não passam de “gusanos”, de mercenários e lacaios do imperialismo ianque, é lícito e correto contentar-se pelo fim de outros ditadores, desde que estejam na trincheira ideológica oposta. O desaparecimento do ditador inimigo é sempre bem-vindo; a do ditador preferido, porém, é sempre lamentável. A morte de Hitler é motivo de júbilo; a de Stálin, uma tragédia.

Dessas duas questões resulta uma terceira, mais creio que aqui meu colega não teria coragem de avançar, ao menos publicamente. Se condenar Fidel é antipatriótico, e se se deve desejar a morte de ditadores, mas somente se forem inimigos de Fidel, o ditador preferido, a conclusão lógica é que Fidel, o símbolo-vivo da Pátria, o verdadeiro e legítimo representante da nacionalidade cubana, não é um ditador. Ou seja: que todo esse papo de condenar o regime cubano pelos fuzilamentos, violações dos direitos humanos, prisões de dissidentes, partido único, censura etc., não passa de mera propaganda imperialista da mídia burguesa e contrarrevolucionária etc. Inclusive seria falsa toda e qualquer comparação entre Fidel, que está no poder há 47 anos e mandou exterminar milhares de opositores (estima-se em cerca de 17 mil mortos, sem falar dos que morreram tentando fugir da ilha desde 1959) e Pinochet, que governou 17 anos, 30 a menos que Fidel, matou 3 mil e aceitou deixar voluntariamente o poder há 16. Mais: seria uma cínica manobra propagandística essa comparação, pois, mesmo que Fidel tenha despachado para o além muito mais gente do que Pinochet, e que Stálin e Mao tenham matado muito mais do que todas as ditaduras de direita juntas, uma morte é uma morte e a dor é imensurável (curioso como somente os que têm os maiores crimes em sua conta são sempre os que se opõem a qualquer comparação). O mesmo para qualquer analogia entre a situação econômica e social em que cada ditador deixou seu respectivo país: o Chile, um país próspero e estável, o mais promissor da América Latina; Cuba, um ex-país, uma ruína econômica (outro golpe de propaganda imperialista, segundo a teoria do “totalitarismo preferido”, nova versão).

Como se vê, esses cubanos de Miami que celebram a doença de Fidel são mesmo uns canalhas, uns entreguistas, uns pró-imperialistas.

2 comentários:

regina claudia brandão disse...

confesso que me senti em casa - ainda bem que neruda não inventou deste jeito, seria péssimo ter que plageá-lo.
o seu about me convenceu e, juro, nunca mais vou desgrudar de vc.
um sensacional e doce beijo, por conta da alegria de te encontrar, diga-se de passagem, sem querer.
regina claudia.

regina claudia brandão disse...

ah! ia esquecendo: 1) roubei a figurinha do fidel com o chave de cadeia; 2) o seu link estará permanentemente pendurado no meu rebloggando.
é isso. vou dormir.