Há exatos cinquenta anos, o mundo quase acabou.
Quem conhece um pouco de História sabe que não exagero. Em outubro de 1962, as duas superpotências da época, os EUA e a finada URSS, encararam-se na Crise dos Mísseis em Cuba, que por pouco – muito pouco mesmo –, não levou a uma guerra nuclear, o que significaria a destruição de toda a vida no planeta. Foi simplesmente a maior confrontação da história da humanidade.
Tudo começou quando o então premiê da extinta URSS, Nikita Krushev, decidiu enviar algumas dezenas de mísseis balísticos nucleares (e, soube-se depois, alguns milhares de tropas) para a ilha de Cuba, situada a apenas 120 quilômetros da Flórida. Seu objetivo era, a pretexto de proteger o regime castrista – que havia rompido com os EUA e sido alvo de uma tentativa fracassada de invasão na Baía dos Porcos, em 1961 –, alterar o equlíbrio nuclear na Guerra Fria, a favor da URSS. A operação, altamente secreta, foi descoberta pelos aviões espiões norte-americanos (os U2), que sobrevoavam a ilha.
Seguiram-se treze dias em que a própria sobrevivência da espécie humana esteve por um fio. O então presidente dos EUA, John Kennedy, pressionado para declarar guerra, decidiu instalar uma quarentena militar em volta da ilha. Nos EUA, milhares de pessoas, já esperando o pior, corriam para estocar alimentos em abrigos subterrâneos. Os líderes soviéticos pareciam inflexíveis. Nunca o mundo esteve tão perigosamente próximo do Apocalipse (leiam Um Minuto para a Meia-Noite, de Michael Dobbs, para saberem em detalhes sobre o que estou falando).
Felizmente, as mentes racionais, que sempre são minoria, acabaram predominando, e prevaleceu o bom-senso: em um acordo secreto, Krushev concordou em retirar os mísseis de Cuba, em troca da promessa de Kennedy, fielmente cumprida, de que não invadiria a ilha caribenha (de bônus, recebeu a retirada de mísseis obsoletos norte-americanos da Turquia). O mundo respirou aliviado. Provavelmente foi graças à essa decisão que você está agora lendo estas linhas.
Momento culminante da Guerra Fria, a Crise dos Mísseis (ou Crise de Outubro) marcou para sempre a História do século XX, inaugurando a política de "détente" (ou contenção) entre Washington e Moscou, que perdurou ate o fim da URSS, em 1991. Paralisadas pelo terror suscitado pela perspectiva de aniquilamento mútuo em uma guerra nuclear, as duas superpotências nunca ousariam enfrentar-se em um confronto direto. Jamais o mundo seria o mesmo desde então.
Muito se fala sobre o papel de Kennedy e de Krushev na crise, mas geralmente se deixa em segundo plano um ator fundamental: Fidel Castro.
O líder cubano, então um jovem revolucionário de 36 anos, tomara o poder em 1959 à frente de uma revolução popular que empolgara o mundo, prometendo democracia para a ilha. Em poucos meses, mandou as promessas democráticas às favas, transformando-se num ditador. Nesse caminho, aproximou-se dos comunistas, que antes desprezava (e que o desprezavam), tornando-se, numa manobra que desnorteou a muitos, aliado da URSS, instaurando o único regime marxista do Ocidente. Foi a seu convite que Krushev, interessado, em suas próprias palavras, em "colocar uma marmota nas calças de Tio Sam", tomou a decisão mais perigosa de sua vida (e que certamente contribuiu para sua queda, em 1964).
Fidel Castro pensava bem diferente de Kennedy e de Krushev. Tanto que, dizem, ao saber da decisão deste último de retirar os mísseis de Cuba, sem o seu consentimento, ficou furioso e quebrou um espelho a pontapés. "Nikita, mariquita, lo que se da no se quita", passou a ser um slogan gritado, nos anos seguntes, por claques amestradas em manifestações de apoio ao regime castrista.
Qual foi o papel de Castro na Crise? Até hoje os cubanos, submetidos à mais estrita censura, não sabem, e muitos fora de Cuba, que ainda têm uma imagem romântica do ditador cubano – geralmente os mesmos que consideram Cuba um exemplo de democracia... –, tampouco sabem ou querem saber. Mas o fato é que o líder cubano era abertamente a favor do confronto com os EUA, mesmo que isso resultasse na destruição total de Cuba – e do planeta – em um holocausto nuclear. Fidel Castro, o humanista, não queria a paz. Queria a guerra. Queria o fim do mundo.
É o próprio Krushev quem diz. Em sua autobiografia, o dirigente soviético afirma que (os grifos são meus)
“Castro sugeriu que a fim de impedir a destruição dos nossos mísseis, nós os usássemos contra os Estados Unidos num golpe preventivo. Achava que um ataque americano era inevitável e que cumpria que nos antecipássemos a ele. Em outras palavras: tínhamos de lançar imediatamente um ataque com mísseis nucleares contra os Estados Unidos. [...] Ficou claro para nós que Fidel Castro não havia entendido os nossos propósitos”. (KHRUSHCHEV, Nikita, As fitas da glasnost: memórias de Khrushchev, São Paulo, Siciliano, 1991, p. 224)
Pois é. Muito antes de George W. Bush, Fidel Castro já defendia um "ataque preventivo". E contra os EUA. E com armas nucleares...
Posteriormente, como é de seu feitio, Castro tentou negar que tivesse feito semelhante proposta, cujo resultado inevitável seria a deflagração de uma guerra nuclear de proporções inimagináveis. Em sua primeira visita à URSS, em 1963, Castro encontrou-se com Krushev. Na ocasião, os dois tiveram o seguinte diálogo, narrado por Krushev em suas memórias:
Posteriormente, como é de seu feitio, Castro tentou negar que tivesse feito semelhante proposta, cujo resultado inevitável seria a deflagração de uma guerra nuclear de proporções inimagináveis. Em sua primeira visita à URSS, em 1963, Castro encontrou-se com Krushev. Na ocasião, os dois tiveram o seguinte diálogo, narrado por Krushev em suas memórias:
[Krushev, dirigindo-se a Fidel] Eu disse a ele: “Você queria iniciar uma guerra com os Estados Unidos. Por quê? Afinal, se uma guerra começasse, nós teríamos sobrevivido, mas Cuba provavelmente não mais existiria. Seria pulverizada. Mas você estava propondo que fizéssemos um ataque preventivo!”
Ele disse: “Não, eu nunca propus isso.”
Eu disse: “Como você pode dizer que nunca o propôs?”
O intérprete falou: “Fidel, Fidel, você me falou pessoalmente sobre isso.”
Fidel novamente insistiu: “Não!”
Então começamos a procurar os documentos. É uma coisa boa que Fidel não tenha feito essa declaração apenas oralmente, mas nos enviou um documento escrito.
O intérprete mostrou-o a ele: “Como você interpreta esta palavra aqui? Não significa guerra? Um ataque nuclear?”. (KHRUSHCHEV, Sergei (ed.), Memoirs of Nikita Khrushchev, v. 3: statesman, 1953-1964, Providence, RI: Watson Institute; The Pennsilvannia State University Press, 2007, p. 348)
A memória de Castro realmente era falha. Em mensagem a Krushev, datada de 27 de outubro de 1962, assim ele expressou, de forma dramática, seu descontentamento com a decisão soviética de retirar os mísseis da ilha:
“Muitos olhos de homens, cubanos e soviéticos... dispostos a morrer com suprema dignidade, verteram lágrimas ao conhecer a decisão surpreendente, inesperada e praticamente incondicional, de retirar as armas... Nós sabíamos – não presuma que ignorávamos – que haveríamos de ser exterminados, no caso de estalar a guerra termonuclear. Contudo, nem por isso lhe pedimos que cedesse [...] Entendo que não se deve conceder aos agressores o privilégio de decidir, ainda mais quando há de se usar a arma nuclear... E não sugeri ao senhor, camarada Krushov, que a URSS fosse agressora, porque isso seria algo mais que incorreto... imoral e indigno de minha parte, mas que, desde o instante em que o imperialismo atacasse... as forças armadas destinadas à nossa defesa... respondessem com um golpe aniquilador...”. (citado em FURIATI, Claudia, Fidel Castro, uma biografia consentida, tomo II – do subversivo ao estadista, São Paulo: Record, 2002, p. 133)
O recentemente falecido historiador marxista inglês Eric Hobsbawn certa vez declarou em entrevista que não se importaria se morressem 15 ou 20 milhões de pessoas se fosse para construir um "amanhã radiante" socialista. O ditador cubano também não via problema algum em exterminar milhões de pessoas, ainda que o resultado disso fosse amanhã nenhum. Cada vez entendo mais por que Hobsbawn era fã de Fidel Castro.
Hoje um ancião decrépito, dedicado a desmentir boatos sobre sua morte, Fidel Castro pouco lembra o ardoroso revolucionário disposto a sacrificar a vida de milhões de seres humanos em uma hecatombe nuclear. Muitos – e isso é o mais surpreendente – ainda o vêem como um símbolo humanista de resistência e líder de um regime vítima de agressão. Mal sabem que, se dependesse daquele velhinho de barbas brancas, sequer estaríamos aqui para contar a história. Se o mundo não é hoje um monte de cinzas, certamente não é por vontade de Fidel.
Hoje um ancião decrépito, dedicado a desmentir boatos sobre sua morte, Fidel Castro pouco lembra o ardoroso revolucionário disposto a sacrificar a vida de milhões de seres humanos em uma hecatombe nuclear. Muitos – e isso é o mais surpreendente – ainda o vêem como um símbolo humanista de resistência e líder de um regime vítima de agressão. Mal sabem que, se dependesse daquele velhinho de barbas brancas, sequer estaríamos aqui para contar a história. Se o mundo não é hoje um monte de cinzas, certamente não é por vontade de Fidel.
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